A hipótese anarquista

De Protopia
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Moysés Pinto Neto


1 - Há uma linha de continuidade entre os movimentos espalhados pelo mundo em 1968, os protestos anti-globalização dos anos 90 e os movimentos das diversas "Primaveras", começando pela Primavera Árabe, passando pelo 15-M e Occupy Wall Street até as recentes revoltas na Grécia, Chile, Egito (novamente), Brasil, Turquia e outros países. Apesar das diferenças, movimentos contra as ditaduras na América Latina, o totalitarismo do bloco soviético, a Guerra Fria, a estagnação e o moralismo da sociedade burguesa, o domínio transnacional avassalador do capitalismo enquanto nova pax mundial, as cleptocracias do Oriente Médio, a plutocracia do capital financeiro, a corrupção generalizada e a destruição dos espaços urbanos têm um comum a Grande Recusa, que é também, ao mesmo tempo, um devir-revolucionário.

Quanto a todos eles, existe uma perplexidade geral comum aos meios midiáticos, acadêmicos e políticos. Para além das hostilidades previsíveis da direita política, que quer conservar a todo custo a injustiça enquanto fenômeno natural nas sociedades humanas e não-humanas, os tanques soviéticos e as teorias conspiratórias governistas confessam que mesmo a esquerda continua sem entender o que está acontecendo, pois os movimentos sociais (no mínimo) desde 1968 empregam meios e procuram objetivos distintos dos movimentos sociais clássicos, especialmente do movimento operário.


2 - O que caracteriza os movimentos sociais pós-68, então, é a indissociabilidade entre público e privado, institucional e individual, intelectual e corporal, política e dança. Contrariando o tabuleiro moderno em que cada indivíduo é uma consciência utilitária que constrói, pelo acúmulo de vontades, uma instituição, os movimentos contemporâneos sabem que o que está em jogo na política não são organizações burocrático-normativas, mas a própria vida naquilo que os gregos chamavam de ethos – o habitar o mundo segundo uma forma, na união indissociável das redes que constituem esse viver enquanto ética, política, economia e estética. Hoje, simplificando o vocabulário, poderíamos atualizar a palavra ethos utilizando, no sentido mais lato, forte e abrangente possível, o termo "cultura". O que as insurgências colocam em questão é esse fundo cultural.


3 - A colocação em jogo da própria vida na esfera política, contrariando o indivíduo burguês que separa público e privado, advém do próprio fracasso da experiência liberal na conquista do "consenso sobreposto" baseado na tolerância recíproca e identificado como a própria "democracia". Mais do que nunca é evidente pela própria experiência cotidiana que as instituições não são neutras, pois, quando não diretamente a serviço do status quo, mesmo a sua ineficácia é resultado de uma construção intencionalmente defeituosa que mitiga seus resultados. Na esfera da geopolítica internacional, essa experiência é tão cristalina que chega a ser vertiginosa, provocando a sensação de total descrédito dos órgãos encarregados de mediar e arbitrar os conflitos entre Estados soberanos. Ela reproduz de forma ostensiva o modo cotidiano de funcionamento interno dos Estados, cujas instituições servem às relações de poder instituídas chanceladas com o pretexto da neutralidade da democracia.

A tese dos movimentos se enriquece ainda com a vivência no próprio corpo da violência estatal exercida sem observância de qualquer critério jurídico e sempre a serviço do poder, ainda que porventura circunstancialmente, do ponto de vista da "neutralidade democrática", ela devesse estar de outro lado. A convicção com que os órgãos repressivos (em especial a polícia) exercem a violência seguindo o poder confessa, sem as mesmas tergiversações do mundo jurídico e político, quem efetivamente detém o comando, o que sempre é possível testemunhar a partir dos golpes e atentados à democracia que esses poderes realizam quando o resultado das urnas e das políticas públicas contrariam radicalmente seus interesses.


4 - Que toda política seja biopolítica não se trata apenas de uma tese subscrita por diversos intelectuais nas últimas décadas. Uma vez eliminado o "estadocentrismo", vício analítico da Modernidade que (à direita ou à esquerda) só consegue pensar a política a partir de um ente burocrático centralizado (ou seja, política enquanto administração e governo), mais do que nunca está claro que o que está em jogo em cada disputa é nada menos que nosso próprio corpo enquanto recurso energético, enquanto esfera material. Um materialismorenovado não pode ser senão a investigação em torno da guerra – declarada explicitamente ou não – que se trava pela energia (humana e não-humana) no mundo hiperprodutivo do capitalismo do consumo. Para além da economia política clássica e marxista, trata-se da "economia geral" que Georges Bataille nos ajudou a pensar. Para além dos juridicismos ocos que pensam as relações mundiais a partir dos aparatos formais que a prática política não cansa de desconsiderar, trata-se de observar as relações políticas a partir da exploração energética, a começar pelo próprio bloco de conflitos que hoje constitui o Oriente Médio pela reserva de petróleo que detém, fazendo visíveis e explícitas as razões perversas que comandam o mundo na forma de um estado de exceção permanente.


5 - Fazendo uma provocação à "hipótese comunista" de Alain Badiou[1], talvez não seja o comunismo a utopia que guia os manifestantes de todo mundo. Tampouco que os movimentos estejam dispostos a aderir à matriz econômico-industrial produtivista e crescimentista, aliada a "disciplina política" ("militância")[2] e o humanismo antropocêntrico[3], todos a irrigar boa parte do pensamento que coloca como hipótese de trabalho a "ideia comunista".

Proponho a "hipótese anarquista" para explicar, desde 1968 até nossos dias, a revolta difusa e experimental contra as instituições burguesas e suas raízes mais antigas. Longe do pragmatismo rasteiro que coloca a vitória na eleição ou a tomada do poder como ponto central para a transformação social, o que estes manifestantes propõem é nada menos que a transformação da nossa cultura no sentido estruturante que Marcel Mauss nos ensinou a pensar, ou seja, o "fato social total" que constituímos e nos constitui, que repetimos diferencialmente a cada geração, numa iteração cuja continuidade hoje nos parece insuportável. Cada "onda" geracional é um golpe a mais nas placas tectônicas que regem nosso mundo: o Estado e o capitalismo. Se as instituições normativo-burocráticas não são senão um efeito da cultura, caldo político-vital que é a condição de possibilidade para sua emergência, é essa a raiz que as manifestações buscam, nos seus gestos que, sem finalidade, contestam a própria lógica utilitária que nos rege, movendo-se em um trabalho lento e descontínuo, em passo de dança, contra o próprio trabalho. Por isso, contrariando a lógica política com a qual se costuma avaliar os resultados das revoltas em geral, a revolução que virá não será a tomada do governo, mas sua morte diante da indiferença dos corpos libertos.

Notas

  1. Ver BADIOU, Alain. A Hipótese Comunista. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 113ss
  2. Como é defendida, por exemplo, por Slavoj Zizek em diversos textos e entrevistas, e cujo pensamento Badiou coloca como a outra forma, além da sua, da "salvar a Ideia do comunismo" (BADIOU, Alain. A Hipótese Comunista, p. 127, nota 5). Ver, p.ex., ZIZEK, Slajov. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Trad. Maria Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 108.
  3. BADIOU, Alain. A Hipótese Comunista, pp. 115-116; ZIZEK, Slajov. Primeiro como tragédia, depois como farsa, p. 86ss.