Dominação da natureza, ideologias e classes
(texto incompleto)
Vaneigem expõe em Banalidades Básicas o movimento de dissolução do pensamento religioso, sua substituição inferior, no que diz respeito à função analgésica, hipnótica e calmante, pela ideologia. A ideologia, assim como a penicilina, se tornou menos se tornou menos operante à medida que se espalhou cada vez mais massivamente. É preciso aumentar incessantemente a sua dose e a sua apresentação – basta pensar nos excessos diversos do nazismo e da propaganda de consumo atual. Pode-se considerar que, desde o desaparecimento da sociedade feudal, as classes dominantes estão cada vez mais mal servidas por suas próprias ideologias, no sentido de que essas ideologias – enquanto pensamentos críticos petrificados – lhes serviram de armas universais para a tomada do poder, e neste momento apresentam contradições ao seu domínio particular. O que estava na ideologia como mentira inconsciente (estagnada sobre conclusões parciais) torna-se mentira sistemática quando determinados interesses que ela acoberta estão no poder e protegidos por uma polícia. O exemplo mais moderno é também o mais impressionante: foi pelo desvio da ideologia no movimento operário que a burocracia constituiu o seu poder na Rússia. Todas as tentativas de modernização de uma ideologia – aberrantes como o fascismo ou consequentes como a ideologia de consumo espetacular no capitalismo desenvolvido – vão no sentido de conservação do presente, ele mesmo dominado pelo passado. Um reformismo da ideologia, em um sentido hostil à sociedade estabelecida, nunca terá eficácia pois nunca terá os meios de absorção forçada graças aos quais essa sociedade dispõe de um uso eficaz da ideologia. O pensamento revolucionário está forçosamente ao lado da crítica impiedosa das ideologias; compreendendo, certamente, o ideologismo especial da “morte das ideologias” – cujo título já é uma confissão, as ideologias tendo sempre sido pensamento morto –, essa ideologia empírica que se regozija somente do colapso de um rival invejoso.
A dominação da natureza contém a questão “para quê?”, mas esse questionamento sobre a práxis domina forçosamente essa dominação e não pode ocorrer exceto com base nela. Ele rejeita somente a resposta mais grosseira: “fazer como antes, mais produzindo mais”, essa dominação reificante que está contida desde a origem da economia capitalista, mas que pode “produzir ela mesma os seus coveiros”. É preciso atualizar a contradição entre a positividade da transformação da natureza – o grande projeto da burguesia – e a sua recuperação mesquinha pelo poder hierarquizado que, em todas as suas variações atuais, segue o modelo único da “civilização” burguesa. Em sua forma massificada, o modelo burguês é “socializado” para o uso de um compósito pequeno-burguês que acumularia todas as capacidades de embrutecimento das antigas classes pobres e todos os signos de riqueza (elas mesmas massificadas), que marcam o pertencimento à classe dominante. Os burocratas do bloco do Leste se juntam a esse modelo, e, quanto mais produzem, menos a polícia serve para manter o seu próprio modelo de desaparecimento da luta de classes. O capitalismo moderno proclama em voz alta um objetivo similar. Mas todos montam o mesmo tigre: um mundo em rápida transformação, no qual eles desejam a dose de imobilidade útil à perpetuação de tal nuance do poder hierárquico.
A rede da crítica do presente é coerente, assim como a rede de sua apologia. A coerência da apologia está somente menos aparente no que ela deve mentir ou valorizar arbitrariamente a propósito de muitos detalhes e nuances do modelo reinante contra os outros. Mas, quando se renuncia verdadeiramente a todas as variantes da apologia, está-se no mesmo nível da crítica, que não conhece essa consciência subjetiva culpada porque não tem compromisso com nenhuma força dominante do presente. Aquele que admite que uma burocracia hierarquizada pode ser um poder revolucionário e que admite também como um bem e como um prazer o turismo de massa tal como está universalmente organizado pela sociedade do espetáculo, essa pessoa poderá fazer as viagens de Sartre à China ou lugares afins. Os seus erros, as suas bobagens, as suas mentiras não deverão surpreender ninguém. É preciso seguir a inclinação daquilo de que se gosta; e outros viajantes são ainda mais detestáveis e pagos em dinheiro, que querem servir Tschombé em Katanga. As testemunhas intelectuais da esquerda, que vão prontamente a qualquer lugar a que sejam convidados, testemunham principalmente o abandono de um pensamento que, há décadas, renuncia à sua própria liberdade para oscilar entre patrões que estejam em conflito. Os pensadores que admiram as realizações atuais do Leste ou do Oeste, tomados por todos os sinais do espetáculo, nunca pensaram em nada, constatação que não pode surpreender aqueles que os tenham lido. Evidentemente, a sociedade da qual eles são o espelho demanda-nos que admiremos os seus administradores. E, do mesmo modo, em muitos lugares, é-lhes permitido escolher o seu jogo (isso que eles chamaram “se engajar”), escolher com ou sem remorso a embalagem e a etiqueta da sociedade estabelecida que os inspira.
Os homens alienados obtêm a cada dia – aprende-se e mostra-se – novos sucessos para os quais eles não têm o uso. Isso não significa que essas etapas do desenvolvimento material são desinteressantes ou más. Elas podem ser reinvestidas na vida real, mas somente junto com todo o resto. As vitórias atuais pertencem a estrelas-especialistas. [Yuri] Gagarin mostra que se pode sobreviver mais longe no espaço, nas condições mais desfavoráveis. Mas do mesmo modo que o conjunto do esforço médico e bioquímico permite sobreviver mais longe e por mais tempo, essa extensão estatística da sobrevivência não está ligada com qualquer melhoria qualitativa da vida. Pode-se sobreviver mais longe e por mais tempo, nunca viver mais. Não vamos festejar essas vitórias, mas fazer vencer a festa, cujos próprios avanços dos homens desencadeiam a possibilidade infinita no cotidiano.
Tradução: Reticente
- Tradução incompleta
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