Isto não é um manifesto: Rumo a uma prática de design anarquista

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Garage Collective
Jared Davidson
Original em Inglês


Traduzido por Pablo P.

Versão atualizada de um texto escrito por Jared Davidson (Garage Collective) em 2009, sobre a interseção do design gráfico e do anarquismo.




“Hoje não é mais suficiente nos prendermos em nossos estúdios e produzir cultura. Nós devemos nos engajar no nosso mundo de todas as formas possíveis. Nós precisamos fundamentar nossa produção artística nas realidades de nossas vidas e dos muitos outros à nossa volta.”
— Realizing The Impossible: Art Against Authority


Se o design gráfico é entendido como a expressão e reflexo de um conjunto particular de valores, sistemas e interesses, então a maior parte da produção artística de hoje tende a expressar os interesses da classe que controla e obtém seus lucros da sociedade. São esses interesses que dominam os padrões do valor no design, define sua ênfase e exclui suas alternativas mais subversivas e igualitárias. Em consequência, o design gráfico é a ferramenta que comunica, embeleza e mercantiliza os interesses daqueles que estão no poder. Sua força comunicativa é usada predominantemente em um sentido econômico/comercial – usada consciente ou inconscientemente para explorar; para aumentar as margens de lucro e riqueza material em benefício de uma clientela seleta. Embora às vezes o design gráfico preste seus talentos fora da esfera comercial na forma de uma linguagem visual informativa e comunicativa, e em práticas acadêmicas, autorais, ou baseadas em pesquisa, a sua função primária é de instrumento visual dos poderosos – o vendedor das compras, o persuasor dos consumidores. Suas forças são empregadas no corpo corporativo (ou sancionada pelo Estado em governos totalitários capitalistas ou socialistas) a fim de reforçar sua posição no poder. E enquanto a academia do design pode encerar poéticas sobre as virtudes do design gráfico e de sua linguagem visual especializada (desviando convenientemente de questões mais tangíveis), o/a praticante da indústria de design, quer escolha reconhecer o seu papel na sociedade ou não, deve compreender que seu trabalho não é nada mais que o precursor do consumismo, usado a serviço do capitalismo monolítico e de todas as suas dores. Sem a ajuda do design gráfico, aqueles que sustentam os males da sociedade não têm nenhuma face, nem identidade visual, nem ponto de referência e, o mais importante, nenhum efeito.

Enquanto se reconhece na tradição libertária que nenhum designer individual, grupo, instituição ou governo tem o direito de definir o papel que o design gráfico deveria desempenhar[1], é importante encorajar práticas alternativas de design em esforço de contrapor à posição exploradora onde ele adentrou conscientemente. A análise da capacidade inerente às práticas de design em aliviar a exploração corrente, e de auxiliar em mais modos alternativos de organização social, é necessária (e começou em níveis limitados do mundo do design)[2]. O design, então, deve explorar o espaço periférico fora da publicidade, totalmente vazio de qualquer uso comercial – ou mais especificamente, para o movimento rumo a uma sociedade humana e libertária, isto é, uma existência mais autônoma baseada na autogestão, no apoio mútuo, na solidariedade e na participação direta e controle sobre as questões de cada indivíduo. Como o potencial produtor, educador e identidade visual da transformação social, o design gráfico poderia soldar seu futuro criativo com preocupações mais urgentes do que cotas do mercado e margens de lucro.


“Na natureza das coisas, não se pode esperar que uma pequena árvore que foi transformada em porrete produza folhas”
— Martin Buber


É interessante considerar o poder que o design gráfico mantém dentro do atual sistema capitalista. As corporações e seus amigos no governo todos têm aproveitado o poderoso e quase indisputado recurso mercadológico que é o design gráfico. A Better By Design[3], de mãos dadas aos interesses comerciais, marchou rumo a um futuro melhor para o consumismo. E não há dúvidas – qual outra técnica coerciva não-física pode instilar a logomarca de uma companhia na mente de uma criança de dois anos?[4] Incontrolado, o crescente papel do design gráfico como o lacaio da publicidade vai continuar tendo efeitos irreversíveis no nosso ambiente mental, visual e material.

Em 1964, e de novo em 2002, as preocupações a respeito dessas questões foram apresentadas na forma do Fist Things First Manifesto, assinado por designers, fotógrafos, artistas e praticantes visuais interessados em direcionar suas habilidades a um caminho mais social e valioso. “Crises ambientais, sociais e culturais sem precedentes demandam a nossa atenção... causas beneficentes e outros projetos de design informacional requerem urgentemente a nossa técnica e ajuda.” Apelando para uma transferência nas prioridades do design gráfico, os signatários do manifesto reconheceram o potencial de suas habilidades para ajudar causas mais humanitárias. O manifesto de 2002, como um passo experimental de reviver as ideias originais de Ken Garland para os praticantes dos tempos atuais, e como um passo para uma ‘reforma’ visual, é bastante notável. Entretanto, indiferente de quão bem intencionadas e sinceras fossem as ideias apresentadas por esses documentos, é necessário criticar suas declarações em termos mais radicais.

Enquanto propunha “uma inversão de prioridades em favor de formas de comunicação mais úteis, duráveis e democráticas”, o manifesto é insuficiente no reconhecimento de qualquer tipo de mudança radical tangível. O First Things First Manifesto de 2002 falha em reconhecer que o consumismo ‘incontestado’ e ‘incontrolado’ que eles desejam redirecionar é tão enraizado nas relações sociais do capitalismo, que qualquer coisa em falta de uma transformação completa dessas relações sociais nunca realizará uma mudança verdadeira. Propor a mudança de prioridades dentro do sistema no lugar da mudança do próprio sistema – tal como a história provou tanto com o socialismo de Estado quanto com a farsa da democracia parlamentar – não fará nada mais que polir as duras arestas de nossas correntes. O fato de que a globalização feroz e a hegemonia corporativa andam de mãos dadas com o sistema atual é o verdadeiro problema que os designers gráficos engajados deveriam estar questionando. De fato, esse sistema, “longe de ser uma garantia para o povo, ao contrário, cria e salvaguarda a existência contínua de uma aristocracia governamental contra o povo.”[5]

Com isso em mente, o texto a seguir propõe explorar o papel (se houver) do designer gráfico na ação direta revolucionária rumo à transformação da sociedade, em termos especificamente anarquistas.


“Diz-se que uma sociedade anarquista é impossível. A atividade artística é o processo de realizar o impossível.”
— Max Blechman, Toward an Anarchist Aesthetic.


As ideias básicas do Anarquismo têm sido mal informadas, mal interpretadas e mal compreendidas por toda a sua existência. Para muitas pessoas, com apoio da publicidade negativa por parte daqueles que se sentem ameaçados por ele, a postura antiautoritária do Anarquismo é associada ao caos e à desordem. Entretanto, isso está longe de ser uma verdade.

O comunismo anarquista (ou comunismo libertário) é a crença de que ninguém tem o direito de controlar ou explorar o outro, e que a autoridade coerciva (em oposição à associação voluntária) é o pilar da desigualdade – social e economicamente. Os anarquistas lutam por um sistema social de seres humanos vivendo, interagindo e se relacionando de uma forma que seja, ao máximo, o mais justa, igual e livre de qualquer tipo de exploração. Isso inclui as muitas formas que a opressão assume – econômica ou política, patriarcal ou racista, e outras mais.

“Um erro, ou com mais frequência, uma interpretação deliberadamente incorreta alega que o termo libertário significa a ausência de toda organização. Isso é inteiramente falso: não é uma questão de ‘organização’ ou ‘desorganização’, mas de dois tipos diferentes de organização... é claro, dizem os anarquistas, a sociedade deve ser organizada. Entretanto, ela deve estabelecer-se livremente, socialmente e, o mais importante, de baixo para cima.”[6] A noção de formas de organização não-hierárquicas é central no anarquismo – apenas pela ação direta e pela autogestão nós desfrutaremos a emancipação completa em nossas vidas e as decisões diárias que elas implicam. Conforme os milhões de homens e mulheres por toda a história que se aderiram e viveram das ideias anarquistas, estas ideias estão longe de serem utópicas, ao contrário do que aqueles que temem seu potencial nos levariam a acreditar. Não são mais utópicas do que o pensamento de que ‘representantes’ parlamentares afastados de nós poderiam, intima e efetivamente, responder aos nossos desejos e necessidades como indivíduos e comunidades.

O comunismo anarquista não é um sistema social fixo e enclausurado, mas sim uma clara tendência no desenvolvimento histórico da sociedade, que, em contraste à tutela intelectual de todas as instituições clericais e governamentais, luta pelo desdobramento livre e irrestrito de todas as forças individuais e sociais na vida. Para os anarquistas, a liberdade não é um conceito filosófico abstrato, mas uma possibilidade concreta vital para todo ser humano conduzir ao desenvolvimento máximo todos os seus poderes, capacidades e talentos, e retribui-los à consideração social. Quanto menos esse desenvolvimento natural das pessoas for influenciado pela tutela religiosa ou política, mais eficiente e harmoniosa se tornará a personalidade humana, mais ela se tornará a medida da cultura intelectual da sociedade em que cresceu.[7]


“Como anarquistas, nós vimos nossa política difamada por outros artistas; como artistas, nós tivemos nossa produção cultural atacava como frívola por ativistas.”
— Realising the Impossibe: Art Against Authority


Seria errado ver este texto como alguma forma de modelo para a ação de design anarquista. Isto não é um manifesto. Nem é uma justificativa para o design, como uma profissão especialista e elitista, continuar em sua forma atual no ‘apoio’ da mudança social. Como o anarquista Proudhon escreveu para Marx, “Não nos permitamos fazer de nós mesmos os líderes de uma nova intolerância. Não nos permitamos posar como os apóstolos de uma nova religião, mesmo que seja a religião da lógica, da razão.”[8] E enquanto houver um lugar definitivo para o designer gráfico em um papel ativista, tanto em um sentido educacional quanto provocativo, os designers não devem cometer o erro de se tornar algum tipo de grupo de vanguarda de direções. Enquanto o marxismo é constantemente justificado em ambos os campos político e acadêmico nesse respeito – defendendo o papel de um partido de vanguarda necessário para conduzir as massas ignorantes para a libertação –, o anarquismo recusa e rejeita veementemente esse conceito.

É responsabilidade de qualquer um com entendimentos de comunicação visual considerar o efeito que seu trabalho tem na vida dos outros, especialmente nos mais marginalizados e mais oprimidos. Como alternativa, o praticante de design, através do ato básico de unir seus princípios morais com sua produção material, deveria, e poderia, contribuir imensamente à transformação da vida diária – rumo a uma sociedade mais justa e humana. O designer gráfico consciente poderia instilar nas mentes das pessoas um senso mais amplo de possibilidade, usando os poderes comunicativos de imaginário artístico para empoderar, encorajar e enraivecer. É importante mudar as várias questões urgentes da sociedade desde a sua margem e para dentro da esfera pública, de uma forma direta e incontornável. Entretanto, a crítica puramente negativa e baseada na angústia (enquanto por vezes seja útil) só pode chegar a esse ponto – é o senso de possibilidades positivas que precisam ser associadas com as ideias de mudança revolucionária. A marginalidade de relações sociais alternativas deve ser superada – suas ideias devem ser tornadas públicas, transparentes e compartilhadas.

A mídia dominante faz um trabalho um tanto convincente em manter isolado o nosso pensamento crítico privado. É uma tarefa importante ilustrar que as ideias críticas e questionadoras que nós podemos estar tendo individualmente são, com mais frequência que seu contrário, compartilhadas pelos outros, em vez de deixá-las serem difusas e desarmadas por aqueles que estão no poder pela religião, política, educação e mídia popular (incluindo, é claro, o design gráfico). O design gráfico pode tornar-se, publica e prolificamente, a manifestação visual dessas ideias compartilhadas. “Idealmente, a arte pode inspirar esperança, encorajar o pensamento crítico, capturar emoções e estimular a criatividade. Ela pode declarar outra forma de pensar e participar na vida. A arte pode documentar ou desafiar a história, criar um quadro para a mudança social e criar a visão de um mundo mais justo. Quando a arte é usada no ativismo, ela provém um ponto de entrada atraente e acessível aos problemas sociais e políticas radicais.”[9] O design gráfico pode agir como um catalisador para novos envolvimentos em alternativas sociais e luta social.


“Artistas se manifestam contra a guerra por uma semana, mas servem os capitalistas por todo o ano.”
— Black Mask #4


Entretanto, imagens isoladas não são suficientes. Não é apenas o que o trabalho de um designer diz ou faz que perpetua as relações sociais dominantes de hoje, mas como esse trabalho é feito. O design é um ato predominantemente individual. Ainda assim, uma investigação maior da participação coletiva no processo do design pode configurar a base para a organização coletiva não-hierárquica no futuro. Formas de trabalhar com os outros quando se está fazendo um trabalho podem essencialmente formar padrões e guias para a organização espontânea de uma sociedade mais libertária. Assim, o ato de trabalhar pode ser tão empoderador quanto a própria mensagem visual, apontando o caminho rumo a relações sociais em um nível macro. Essa exploração tem possibilidades excitantes e libertadoras: “O anarquismo não é uma solução patente para todos os problemas humanos, nenhuma utopia de uma ordem social perfeita – como tem sido denominado com tanta frequência –, já que rejeita, por princípio, todos os esquemas e conceitos absolutos. Ele não acredita em verdade absoluta alguma, nem em metas finais definitivas para o desenvolvimento humano, mas em um aperfeiçoamento ilimitado da organização social e de condições da vida humana, que estão sempre em tensão em busca de formas mais elevadas de expressão...” [10] Permitir que o design inspirado pelo anarquismo explore e ilustre coletivamente essas ‘formas mais elevadas de expressão’ não pode senão ampliar o âmbito e a consciência de relações sociais mais justas entre as pessoas.




Notas

1. Em relação com o conceito anarquista de ‘nem deus, nem patrão’ – ou, que ‘a exploração do homem pelo homem e a dominação do homem sobre o homem são inseparáveis, e cada uma é condição da outra’.

2. Coletivos de design com o Justseeds, The Street Art Workers, Drawing Resistance, o Beehive Collective, Paper Politics, Taring Padi, e o Prison Poster Project são apenas alguns exemplos. Ver Realising the Impossible: Art Against Authority por Josh Macphee e Erik Reuland (AK Press, 2007).

3. Uma iniciativa governamental destinada a ajudar companhias da Nova Zelândia a ‘aumentar suas exportações e lucros através do uso aprimorado do design em seus produtos e serviços’. Veja em www.betterbydesign.org.nz.

4. Ver País Fast Food por Eric Schlosser (Editora Ática, 2001).

5. Michael Bakunin em Anarchism por Daniel Guerin (Monthly Review Press, 1970).

6. Voline em Anarchism por Daniel Guerin (Monthly Review Press, 1970).

7. Parafraseado de Anarcho-Syndicalism: Theory and Practice, de Rudolf Rocker (AK Press, 2004).

8. De Anarchism por Daniel Guerin (Monthly Review Press, 1970).

9. Colin Matthes, Realising the Impossible: Art Against Authority por Josh Macphee e Erik Reuland (AK Press, 2007).

10. Rudolf Rocker, Anarcho-Syndicalism: Theory and Practice (AK Press, 2004).