Uma Experiência de Camaradagem Amorosa

De Protopia
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Amor Livre, Eros e Anarquia
Grupo Atlantis


29 de Junho de 1924. Carta a E. Armand:


“Certa estou que irá ler com interesse a narração de uma partida de campo organizada por nosso grupo ‘Atlantis’. Para eles nós havíamos inspirado em certas ideias do teu gosto, ao menos assim acredito. Tem sido uma de nossas saídas que melhor aceite tem tido. “Tinha sido acordado que os participantes se despojariam de suas roupas uma vez que chegassem ao ponto de encontro. A roupa para nós é um símbolo de virtude, como você sabe. Então, como Fritz und Oerter diz em Nacktheit Anarchismus (nudez e anarquismo), "o homem absoluto é o homem nu, sem roupa ou embalagem, sem 'vestir', para dizer melhor, e sem prejuízo e isento de esmeras artificiais." Além disso, que consolo caminhar, correr ou permanecer estendidos (melhorar ‘o quedar extendido’), nu, em pleno sol, os corpos acariciados pela brisa do verão, cinco léguas de distância de toda civilização... imagine um céu azul,uma floresta de légua e meia, mais ou menos extensa, e em torno da clareira que estávamos reunidos, o mato, árvores e mais árvores. Que fascinação!

“Acordamos que nenhum dos jogadores da partida se sentiria privado de comida. Nosso egoísmo individualista não teria tolerado que nesse dia houvessem tido mais ou menos favorecidos em relação ao alimento. Colocamos assim, em comum quanta comida e bebida havíamos levado.

“[Nos las arreglamos] também porque durante esse maravilhoso dia houve recreações para todos os temperamentos, para todas as idades, para todas as atitudes, tivemos música, canto e baile, e o eco de nossos instrumentos e de nossos cantos nos acariciava deliciosamente. Camaradas especialistas na área tinham organizado jogos que requeriam agilidade e vigor, outros, unicamente soltura das capacidades mentais. “Ali havia para todos os gostos e cada qual encontrou segundo seu agrado. Alguns companheiros voltaram de uma pequena excursão a um bosque vizinho, trazendo-nos todo tipo de notas sobre as abelhas, os ninhos, seu mel, etc., afirmando que certas observações eram inéditas. Eu sou pouco competente nessa matéria para emitir uma apreciação.

“Também quisemos que durante aquela partida ninguém que quisesse poderia encontrar-se sem disposição. E se combinou assim mesmo em honra a variedade que, até o outro dia pela manhã, todos os participantes escolheriam um companheiro ou companheira que não fosse o habitual, uma vez que chegassem ao local da reunião. Aquele que não puderam escolher, o fariam na sorte. Naturalmente, se tomou de antemão a precaução de que houvesse um número igual de companheiras e companheiros, podendo assim formar os grupos de afinidade que se queria. Pois bem: de trinta e nove casais de todas as idades, vinte e dois deixaram à sorte, querendo mostrar com isso, creio eu, que o que lhes importava era a realização da ideia de que nenhum dos participantes se encontrasse nesse dia privado de condição.

“Para as crianças, se pensou igualmente com antecipação que ficariam na companhia de quem lhes agradasse: escolheriam os jogos que mais lhe agradassem, e se recreariam a sua maneira, sem ter que temer as advertências de “não sejam malvados” ou “fiquem quietos”. Nem sequer um faltava na volta, no outro dia pela manhã. “Estamos completamente de acordo contigo de que a extensão e abundância da parceria amorosa é um fator de companheirismo mais efetivo, mais produtivo, mais geral. Apesar das numerosas dificuldades, que temos de enfrentar nos últimos anos, temos a prova diária que isso é verdade. “A dois anos temos adicionado a troca dos companheiros e companheiras das crianças, porque acreditamos que, ao viver juntos abaixo do mesmo teto, sem trocar de ar (na moral e sexualidade), as capacidades de iniciativa, de observação, de diferenciação dos temperamentos individuais se atrofiam, e moldam, e debilitam-se. Há vantagem na troca do meio familiar para as crianças e os camaradas; se vê melhor o nosso eu, se para de refletir e imitar servilmente aqueles com quem se vive.

“Aqui está como proceder . Entre camaradas seguros uns dos outros, é revelado que certo companheiros, companheiro ou criança gostaria de mudar de par por um mês , dois, três meses, às vezes mais. As trocas são feitas. Ana vai para a casa de Pedro com seus filhos sendo companheira dele por um certo tempo, e Jacinta vai para casa de Pablo, companheiro habitual de Ana, igualmente com seus filhos, sendo sua companheira durante todo o tempo em que Ana permanece na casa de Pedro. Os filhos de Simón vão por seis meses para a casa de Manuel e os filhos deste, em troca, vão seis meses para a casa de Simón... Por último uma companheira, Lucía, passou todo o verão na casa de um de nossos bons amigos, a uns setecentos kilometros daqui. Jamais se haviam visto e para que ela fosse substituída, as duas irmãs dele vieram a coabitar com o camarada de quem L... se separava durante uma temporada. Tanto uns como outros se disseram “encantados”, e isso é o principal. Estou certa que, generalizando este método, chegaríamos a uma camaradagem prática inteiramente diferente da forma de enlace caprichosa ou exclusiva que no Ocidente se decora com o nome de “camaradagem”.


“E que alegria quando nos vem a notícia da chegada de uma amiga ou amigo em transito! Um mês, ou quinze dias antes, cada um ou cada uma se regozija pensando no novo amante que vai lhe cair na sorte um dia, por alguns dias quiça, pois a hospitalidade que oferecemos não se limita a comer, beber ou dormir. Nós praticamos [vis a vis unos de outros] uma camaradagem que nada tem em comum com essa camaradagem escolhida, mesquinha, exclusiva, caprichosa, que a camaradagem ocidental. Nossa camaradagem ignora os limites, como também ignora as conveniências e o pudor. Quando o amigo ou a amiga chega, com que impaciência nos inquirimos das coisas e objetos diferentes que podem faltar ao meio ou família de onde ele ou ela vem. Há sempre entre nós um produto que temos muito para trocar por outro que nos falta ou não temos o suficiente, mas esse grupo ou família tem em abundância. E se há meio para trocar, enviamos não obstante o produto que a eles lhe falta e que nos temos em demasia. Nos satisfaz unicamente o prazer, a alegria que causamos a esses camaradas distantes... Por acaso eles não atuam da mesma forma connosco quando se apresenta a ocasião?


Trechos de duas cartas que haviam sido enviadas a E. Armand da periferia de Paris em Junho de 1924 e publicadas em L’en dehors, números 44 e 83. Uma delas estava assinada por “uma companheira do grupo ‘Atlantis’”. Sobre esse misterioso grupo, cuya denominação aparece entrecortada no livro La camaraderia amorosa, Armand apenas disse: ["Razones sobre las que no nos es dable extendernos hacen que esta agrupación, cuya actividad es clandestina, esté obligada para subsistir a mantener el más estricto incógnito".]



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