A Anarquia Funciona: Crime

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A anarquia funciona
Capítulo 5 - Crime
Peter Gelderloos


A prisão é a instituição que simboliza a dominação da forma mais concreta. Anarquistas querem a criação de uma sociedade capaz de proteger a si mesma e de resolver seus problemas internos sem polícias, juízes ou prisões; uma sociedade que não encare seus problemas em termos de bem e mal, de permitido e proibido, de pessoas que agem de acordo com a lei e pessoas criminosas.

Sem polícia, quem irá nos proteger?

Em nossa sociedade, a polícia se beneficia de uma quantidade enorme de propaganda, seja pelas coberturas de crimes feitas pela mídia de forma parcial e com intuito de promover o medo, seja através do fluxo enorme de filmes e séries de TV envolvendo policiais como figuras heroicas e protetoras.

Em uma sociedade hierárquica, quem tem a proteção da polícia? Quem tem mais motivos para temer o crime, e quem tem mais motivos para temer a polícia? Em algumas comunidades, a polícia é como uma força de ocupação; a polícia e o crime formam as presas engrenadas de uma armadilha que impede que as pessoas escapem de situações opressoras ou salvem suas comunidades da violência, da pobreza e da fragmentação.

Historicamente falando, a polícia não foi o resultado de uma necessidade social de proteger as pessoas de uma criminalidade crescente. Nos Estados Unidos, as forças policiais modernas surgiram em uma época na qual os crimes estavam diminuindo. A instituição da polícia apareceu como um meio de garantir um controle maior da classe dominante sobre a população e de expandir o monopólio estatal sobre a solução de conflitos sociais. Não foi uma resposta à criminalidade ou uma forma de resolvê-la; pelo contrário, ela coincidiu com a criação de novas formas de crime. No mesmo momento em que as forças policiais passavam por uma expansão e uma modernização, a classe dominante iniciava a criminalização de comportamentos que eram predominantes nas classes mais baixas e que foram considerados aceitáveis anteriormente, como vadiagem, apostar em jogos de azar e se embebedar em público[1]. As autoridades definem "atividade criminosa" de acordo com suas próprias necessidades, e então apresentam suas definições como neutras e atemporais. Para dar um exemplo, uma quantidade muito maior de pessoas morrem por causa de poluição e acidentes de trabalho do que pelo uso de drogas, mas as pessoas que traficam drogas são marcadas como ameaças à sociedade, e não as que são proprietárias de fábricas. E, mesmo quando estas violam a lei de um modo que mata pessoas, não são enviadas para uma prisão[2].

Atualmente, mais ou menos dois terços das pessoas presas nos EUA estão trancafiadas por conta de ofensas não-violentas. Não é surpresa alguma que a maioria dessas pessoas seja pobre e não branca, considerando a criminalização das drogas e da imigração, as penas desproporcionalmente duras para as drogas tipicamente usadas por pessoas pobres, e a maior chance que as pessoas não brancas possuem de serem condenadas ou sentenciadas de forma mais severa pelos mesmos crimes.[3] Da mesma forma, a presença intensa de polícias militarizadas em guetos e bairros pobres está ligada ao fato de que a criminalidade permanece alta nesses lugares enquanto as taxas de encarceramento crescem. A polícia e as prisões são sistemas de controle que preservam desigualdades sociais, espalham medo e indignação, excluem e alienam comunidades inteiras, e promovem extrema violência contra os setores mais oprimidos da sociedade.

As pessoas que conseguem organizar suas próprias vidas em suas comunidades estão melhor equipadas para proteger a si mesmas. Algumas sociedades e comunidades que ganharam autonomia com relação ao Estado organizam patrulhas voluntárias para ajudar as pessoas que passam necessidades e desencorajar atos de agressão. Diferentemente da polícia, esses grupos não costumam ter uma autoridade coercitiva ou uma estrutura burocrática fechada, e são mais provavelmente formados por pessoas voluntárias de dentro da própria comunidade. Eles focam em proteger as pessoas e não propriedades ou privilégios, e, na falta de um código legal, respondem às necessidades das pessoas e não a um protocolo nada flexível. Outras sociedades organizam-se para conter danos sociais sem criar instituições específicas. Em vez disso, para promover um ambiente seguro, empregam sanções difusas, que são respostas e atitudes espalhadas pela sociedade inteira e propagadas na cultura.

Anarquistas enxergam certos problemas que as sociedades autoritárias colocam sob a lógica de crime e castigo de uma forma totalmente diferente. Um crime é a violação da lei escrita, e leis são impostas pelas elites. Em última instância, a questão não é se alguém está causando dano a uma outra pessoa, mas se está desobedecendo às ordens da elite. Como resposta ao crime, o castigo cria hierarquias de moralidade e poder entre as pessoas criminosas e as que administram a justiça. Nega-se às primeiras os recursos necessários para que possam ser reintegradas na comunidade e parem de causar danos a outras pessoas.

Em uma sociedade empoderada, as pessoas não precisam de leis escritas; elas têm o poder de determinar se alguém as impede de satisfazer suas necessidades e podem convocar seus pares para que as ajudem a resolver os conflitos. Desse ponto de vista, o prolema não é o crime, mas os danos sociais - ações como assaltar e dirigir sob embriaguez, que podem de fato causar danos a outras pessoas. Esse paradigma acaba com a categoria de crime sem vítima e revela o absurdo que é proteger direitos de propriedade de pessoas privilegiadas em detrimento das necessidades que outras pessoas têm de sobreviver. Os ultrajes típicos da justiça capitalista, como prender quem passa fome por roubar de gente rica, não seriam possíveis em um paradigma baseado na necessidade.

Durante a greve geral em Seattle, em fevereiro de 1919, a cidade foi tomada pela classe trabalhadora. Seattle foi desativada comercialmente, mas as pessoas não deixaram que a cidade caísse em desordem. Pelo contrário, elas mantiveram todos os serviços essenciais funcionando, mas de forma organizada pela classe trabalhadora, sem a gerência patronal. Essas pessoas já faziam a cidade funcionar em todos os outros dias do ano de qualquer forma, e, durante a greve, mostraram que sabiam como conduzir seus trabalhos sem interferência de uma direção. Elas coordenaram uma organização que envolvia toda a cidade através do Comitê Geral de Greve, composto por membros de todos os sindicatos locais. A estrutura era semelhante à da Comuna de Paris; talvez até mesmo inspirada por ela. Membros de sindicatos e grupos específicos de pessoas trabalhadoras detinham a autonomia sobre seus empregos sem gerenciamento ou interferência do Comitê ou de qualquer outra entidade. As pessoas eram livres para realizar suas iniciativas em níveis locais. Motoristas de carroças de leite, por exemplo, montaram um sistema comunitário de distribuição de leite que seus patrões, presos a sua vontade de lucro, nunca teriam permitido.

As pessoas trabalhadoras em greve coletaram o lixo, montaram cafeterias públicas, distribuíram comida gratuitamente e mantiveram serviços de bombeiros. Também providenciaram proteção contra comportamentos antissociais como roubos, assaltos, assassinatos e estupros - a onda de crimes sobre a qual as pessoas autoritárias sempre profetizam. Uma guarda da cidade composta de veteranos de guerra desarmados caminhava pelas ruas para vigiar e responder chamados de ajuda, embora ela fosse autorizada a usar advertências e persuasão apenas. Com ajuda do sentimento de solidariedade que criou uma malha social mais forte durante a greve, a guarda voluntária foi capaz de manter um ambiente pacífico, realizando o que o próprio Estado não foi capaz de fazer.

Esse contexto de solidariedade, comida gratuita e empoderamento das pessoas comuns contribuiu para que a criminalidade fosse cortada pela sua raiz. Pessoas marginalizadas ganharam oportunidades de se envolver com a comunidade, participar das decisões, e serem inclusas na sociedade, coisas que lhes eram negadas no regime capitalista. A ausência da polícia, cuja presença acentua tensões entre classes e cria um ambiente hostil, pode ter diminuído os crimes nas classes mais baixas. Até mesmo as autoridades comentaram sobre como a cidade estava organizada. O major-general John F. Morrison, estacionado em Seattle, afirmou que nunca havia visto "uma cidade tão quieta e ordenada". No fim, a greve foi desfeita pela invasão de milhares de tropas e vice-chefes de polícia, somada à pressão exercida pela liderança do sindicato[4].

Na cidade de Oaxaca, em 2006, durante os cinco meses de autonomia que foram o ápice da revolta, a APPO, a assembleia popular organizada por docentes em greve e ativistas com intuito de coordenar sua resistência e organizar a vida na cidade estabeleceu uma vigia voluntária que ajudou a manter as coisas pacíficas em circunstâncias violentas e segregadoras. Já a polícia e as forças paramilitares assassinaram dez pessoas, e esse foi o único derramamento de sangue na ausência de poder estatal.

O movimento popular em Oaxaca foi capaz de manter uma paz relativa apesar de toda a violência imposta pelo Estado. E ele conseguiu isso modificando um costume local para dar conta da nova situação: empregaram topiles, uma guarda rotativa que garante a segurança em comunidades indígenas. O sindicato docente já usava topiles como voluntários de segurança durante a fase de acampamento, antes da APPO ser formada, e a APPO rapidamente ampliou a prática para que a mesma fosse incluída em uma comissão de segurança com a função de proteger a cidade de policiais e paramilitares. Uma boa parte das funções de topiles incluía a ocupação de prédios do governo e a defesa de barricadas e ocupações. Isso significava que tinham que lutar frequentemente contra policiais armados e paramilitares com nada além de pedras e fogos de artifício.

Alguns dos piores ataques ocorreram em frente aos prédios ocupados. Estávamos protegendo o prédio da Secretaria de Economia quando percebemos que havia um grupo de pessoas preparando um ataque contra nós em algum lugar do prédio. Batemos na porta e não houve resposta. Cinco minutos depois, um grupo armado saiu de trás do prédio e começou a disparar contra nós. Tentamos encontrar abrigo, mas sabíamos que, se recuássemos, todas as pessoas na frente do prédio - cerca de quarenta - correriam um perigo grave. Então decidimos manter nossa posição e nos defendemos com pedras. Continuaram atirando em nós até a munição acabar e foram embora, pois viram que não iríamos a lugar algum. Algumas pessoas ficaram feridas. Um cara levou um tiro na perna e um outro levou nas costas. Reforços chegaram mais tarde, mas os assassinos de aluguel já haviam se retirado.
Nós não possuíamos arma alguma. No Departamento de Economia, defendemo-nos com pedras. Conforme o tempo passava e os ataques com armas de fogo se tornavam mais frequentes, passamos a nos defender com: fogos de artifício, lança-foguetes caseiros, coquetéis molotov; cada pessoa estava com algo. E, quando não tínhamos nenhuma dessas coisas, defendíamos as pessoas com nossos corpos ou nossas próprias mãos[5].

Depois desses ataques, topiles ajudaram a levar as pessoas feridas para os centros de primeiros socorros.

A segurança voluntária também respondia a crimes comuns. Se ocorria um roubo ou assalto, as pessoas na vizinhança soavam os alarmes e topiles apareciam. Caso a pessoa assaltando estivesse sob efeito de drogas, ficava amarrada na praça central durante a noite e era obrigada a coletar lixo ou executar outro serviço comunitário pela manhã. Pessoas diferentes possuíam ideias diferentes sobre quais soluções de longo prazo deveriam ser instituídas; como a rebelião em Oaxaca envolvia certa diversidade política, nem todas essas ideias eram revolucionárias. Algumas pessoas queriam entregar quem praticava roubos ou assaltos para os tribunais, embora houvesse uma crença amplamente difundida de que o governo libertava todas essas pessoas e as estimulava a voltar e cometer mais crimes antissociais.

A história de Exárchia, um bairro no centro de Atenas, tem mostrado ao longo dos anos que a polícia não nos protege, ela nos coloca em perigo. Por anos, Exárchia tem sido o refúgio do movimento anarquista e da contracultura. O bairro se protegeu da gentrificação e do policiamento através de diversas maneiras. Carros de luxo são queimados regularmente se ficarem estacionados durante a noite. Depois de serem alvo de destruição de propriedade e pressão social, pessoas que são donas de restaurantes e lojas desistiram de remover cartazes políticos de suas paredes, expulsar pessoas em situação de rua, e qualquer outra forma de criar uma atmosfera comercial nas ruas; admitiram que as ruas pertencem às pessoas. Policiais à paisana que entram em Exárchia foram brutalmente agredidos em diversas ocasiões. Durante a preparação para as Olimpíadas, a cidade tentou renovar a Praça de Exárchia e transformá-la em um ponto turístico em vez de um ponto de encontro local. O novo plano, por exemplo, incluía uma fonte grande e nenhum banco. As pessoas da vizinhança começaram a se reunir, criaram seu próprio plano de renovação e informaram à empreiteira que o plano local seria usado no lugar do que foi fornecido pelo governo municipal. A destruição repetida de equipamentos de construção finalmente convenceu a empresa de quem mandava ali. O parque renovado atualmente tem mais espaços verdes, nenhuma fonte para turistas e novos e agradáveis bancos.

Ataques à polícia são frequentes em Exárchia e a tropa de choque armada está sempre por perto. Ao longo dos últimos anos, a polícia revezou entre tentar ocupar Exárchia à força e manter uma guarda nas fronteiras do bairro com grupos armados de policiais da tropa de choque constantemente preparados para uma investida. Em nenhum momento, a polícia conseguiu executar atividades de policiamento normais. A polícia não patrulha o bairro à pé e raramente passa de carro. Quando entra, faz isso preparada para lutar e se defender. As pessoas grafitam e colam cartazes em plena luz do dia. Em grande medida, é uma zona desprovida de lei, e as pessoas cometem crimes explicitamente com uma frequência impressionante. No entanto, não é um bairro perigoso. Os crimes preferidos são políticos ou pelo menos sem vítimas, como fumar maconha. É seguro para uma pessoa andar sozinha durante a noite (a não ser que seja policial), as pessoas nas ruas são tranquilas e amigáveis, e propriedade pessoal não corre nenhum risco, com exceção dos carros de luxo e coisas parecidas. A polícia não é bem-vinda e nem necessária.

E é exatamente nessa situação que ela demonstra seu verdadeiro caráter. Não é uma instituição que responde ao crime ou a uma necessidade social, mas sim uma que reivindica o controle social. No passado, a polícia tentou encher o local (e o movimento anarquista em particular) de drogas viciantes como heroína, e estimulava pessoas viciadas a passar seu tempo na Praça de Exárchia. O movimento anarquista teve de lidar com essas formas de violência policial e parar a expansão dessas drogas por conta própria. Incapaz de quebrar o espírito rebelde do bairro, a polícia apelou para táticas mais agressivas, ganhando características de uma ocupação militar. No dia 6 de dezembro de 2008, essa abordagem chegou à sua conclusão inevitável quando dois policiais mataram o anarquista de 15 anos Alexis Grigoropoulous a tiros no meio de Exárchia. Em poucas horas, o contra-ataque começou, e a polícia pela Grécia esteve por dias sob ataque de porretes, pedras, coquetéis molotov e, em alguns incidentes, armas de fogo. As zonas liberadas de Atenas e de outras cidades gregas estão crescendo, e a polícia tem evitado desocupar essas regiões porque as pessoas mostraram ser mais fortes. Atualmente, a mídia promove uma campanha de medo, aumentando a cobertura de crimes antissociais e tentando relacionar esses crimes à presença de áreas autônomas. Crime é uma arma do Estado, usada para assustar as pessoas, isolá-las e fazer o governo parecer necessário. Mas o governo é nada além de um esquema mafioso de proteção. O Estado é uma máfia que conseguiu ganhar controle sobre a sociedade e a lei é a codificação de tudo que nos foi roubado por ela.

O povo rotumano é um povo tradicionalmente sem Estado que vive na ilha de Rotuma no Pacífico Sul, ao norte de Fiji. De acordo com o antropólogo Alan Howard, membros dessa sociedade sedentária são socializados de forma a não serem violentos. Normas culturais promovem um comportamento respeitoso e gentil nas relações com crianças. Castigos físicos são extremamente raros, e quase nunca realizados com intuito de machucar a criança. Em vez disso, pessoas adultas rotumanas usam a vergonha no lugar do castigo, uma estratégia que garante que as crianças cresçam com um alto grau de sensibilidade social. Pessoas adultas fazem isso principalmente com crianças que praticam "bullying"; nos seus próprios conflitos, tentam ao máximo não enfurecer outras pessoas. Da perspectiva de Howard enquanto um estrangeiro vindo do Ocidente mais autoritário, as crianças recebem "um grau surpreendente de autonomia" e o princípio da autonomia pessoal se estende para toda a sociedade: "Não apenas indivíduos exercem autonomia dentro de suas famílias e comunidades, mas as vilas são também autônomas com relação umas às outras, sendo os distritos essencialmente unidades políticas autônomas"[6]. O povo rotumano provavelmente descreve sua própria situação usando uma linguagem diferente, embora não tenhamos achado qualquer relato de alguém de dentro. Talvez essas pessoas coloquem ênfase nas relações horizontais que conectam as famílias e as vilas, mas, para as pessoas que observam isso, tendo sido criadas na cultura europeia/estadunidense e treinadas para ter a crença de que a sociedade só permanece unida pela autoridade, o que mais chama atenção é a autonomia das diferentes famílias e vilas.

Embora o povo rotumano exista atualmente sob um governo imposto, ele evita contato e dependência com relação ao mesmo. Provavelmente não se trata de coincidência o fato de que a taxa de homicídios rotumana se encontra em um nível baixo como 2,02 em 100,000 pessoas por ano, uma taxa três vezes menor do que a dos EUA. Howard descreve a visão rotumana acerca do crime como sendo semelhante a de outros povos que vivem sem Estado: não como violação de um estatuto ou um código, mas como algo que causa danos ou que prejudica laços sociais. Da mesma forma, a mediação é importante para a solução de disputas de um jeito pacífico. Chefes e subchefes agem como mediadores, embora pessoas anciãs que tenham prestígio possam intervir nessa função também. Chefes não julgam, e, se não agem de forma imparcial, perdem as pessoas que os seguem, já que as famílias são livres para trocar de grupo. O mecanismo mais importante para a solução de conflitos é o pedido público de desculpas. O pedido público tem um grande peso atrelado: dependendo da seriedade da ofensa, pode ser acompanhado também por um ritual de ofertas de paz. Desculpar-se de forma adequada é algo honroso, enquanto negar esse pedido é fonte de desonra. Os membros mantêm suas posições e status no grupo sendo responsáveis, sendo sensíveis com a opinião coletiva e resolvendo conflitos. Se algumas pessoas agem do modo como poderíamos esperar em uma sociedade baseada em polícia e castigo, elas se isolam por conta própria e limitam sua influência prejudicial.

Por dois meses, no ano de 1973, detentos de um presídio de segurança máxima em Massachusetts mostraram que pessoas criminosas podem ser menos responsáveis pela violência em nossa sociedade do que seus guardas. Depois do massacre ocorrido na prisão em Attica, em 1971, para trazer a atenção nacional para o trágico fracasso do sistema prisional em corrigir ou reabilitar pessoas condenadas por crimes, o governador de Massachusetts nomeou um comissário reformista para o Departamento de Correções. Enquanto isso, os detentos da prisão estatal de Walpole haviam formado um sindicato dos prisioneiros. Seus objetivos incluíam se proteger dos guardas, bloquear tentativas da parte da administração do presídio de instituir programas de modificação comportamental, e organizar os programas dos detentos para educação, empoderamento e recuperação. Eles buscaram mais direitos relacionados a visitas, empregos e trabalhos voluntários fora da prisão, e a capacidade de ganhar dinheiro para que fosse enviado para suas famílias. Em última análise, eles esperavam acabar com a reincidência - ex-detentos sendo condenados novamente e retornando para a prisão - e abolir o próprio sistema prisional.

Prisioneiros negros formaram um grupo cultural e educacional Black Power para criar uma unidade e se contrapor ao racismo da maioria branca. Isso se mostrou fundamental na formação de um sindicato diante da repressão sofrida nas mãos dos guardas. Em primeiro lugar, foi preciso acabar com a guerra racial entre os detentos, uma guerra que era estimulada pelos guardas. Líderes de todas as facções de prisioneiros mediaram a realização de uma trégua geral através da promessa de que qualquer detento que a violasse seria assassinado. O sindicato da prisão era apoiado por um grupo composto por pessoas ativistas por direitos civis voltadas para mídias e ativistas de caráter religioso, embora a comunicação entre os dois grupos tenha sido dificultada pela mentalidade de prestação de serviços e compromisso ortodoxo com a não-violência por parte do setor religioso. Um fator que ajudou foi o comissário de Correções ter apoiado a ideia de um sindicato de detentos, em vez de se opor logo de início como a maioria na administração de prisões faria.

Ainda no início da vida do sindicato de Walpole, o superintendente do presídio tentou dividir os detentos estabelecendo um confinamento arbitrário justamente quando os prisioneiros negros estavam se preparando para celebrar o Kwanzaa. Os detentos brancos já haviam celebrado o natal sem nenhum incômodo, e os negros haviam passado o dia inteiro cozinhando e antecipando avidamente as visitas de familiares. Em um incrível ato de solidariedade, todos os prisioneiros iniciaram uma paralização, recusando-se a trabalhar ou sair de suas celas. Por três meses, eles sofreram com espancamentos, confinamentos em solitária, fome, negação de cuidados médicos, vício em tranquilizantes fornecidos pelos guardas, e condições deploráveis devido ao acúmulo de excrementos e lixo dentro e em torno de suas celas. Por três meses, os prisioneiros se recusaram a se deixar quebrar ou dividir. Eventualmente, o Estado foi obrigado a negociar; as placas de carro normalmente produzidas pelos prisioneiros de Walpole estavam se esgotando e o governo estava ficando com uma imagem ruim na mídia por causa da crise.

Os detentos tiveram sua primeira demanda satisfeita: o superintendente foi forçado a se demitir. Demandas adicionais foram rapidamente atendidas, como expansão dos direitos de visita, licença do trabalho, programas auto-organizados, revisão e libertação das pessoas em segregação, e a presença de pessoas civis como observadoras dentro do presídio. Em troca, eles limparam toda a prisão e forneceram algo que os guardas nunca conseguiram trazer: paz.

Como protesto pela perda de controle, os guardas abandonaram seus empregos. Eles pensaram que isso mostraria o quão necessários eles eram, mas, para embaraço deles, o ato teve o efeito exatamente oposto. Por dois meses, os prisioneiros cuidaram da prisão eles mesmos. Na maior parte do tempo, os guardas não estavam presentes dentro dos blocos de celas, embora a polícia estadual controlasse o perímetro do presídio para evitar fugas. As pessoas atuando como observadoras civis permaneciam dentro do presídio 24 horas por dia, mas eram treinados para não intervir; seu papel era documentar a situação, conversar com os detentos, prevenir a violência dos guardas que ocasionalmente entravam na prisão. Uma dessas pessoas relatou:

A atmosfera era tão relaxada - nada parecida com o que eu esperava. Percebo que meu próprio pensamento foi condicionado dessa maneira pela sociedade e pela mídia. Esses homens não são animais, não são maníacos perigosos. Descobri que meus próprios medos não possuíam fundamento algum.

Outra pessoa insistia que "é necessário que nenhuma das pessoas que trabalhava antes no Bloco 9 [um bloco para segregação] volte para lá. Vale a pena pagar pela sua aposentadoria. Os guardas são o problema de segurança"[7]

Walpole havia sido um dos mais violentos presídios do país, mas, enquanto os prisioneiros estavam no comando, a reincidência caiu drasticamente e homicídios e estupros foram reduzidos a zero. Os detentos provaram falsos dois mitos fundamentais do sistema de justiça criminal: que as pessoas que cometem crimes devem ser isoladas, e que elas devem receber uma reabilitação forçada em vez de estar no controle de sua própria recuperação.

Os guardas estavam ansiosos para terminar esse experimento constrangedor de abolição da prisão. O sindicato dos guardas era suficientemente forte para provocar uma crise política, e o comissário de Correções não podia demitir nenhum deles, mesmo os que praticavam atos de tortura ou que emitiam declarações racistas para a imprensa. Para manter seu emprego, o comissário teve de trazer os guardas de volta para a prisão, eventualmente traindo os prisioneiros. Elementos centrais da estrutura de poder incluindo a polícia, guardas, procuradores, figuras políticas e a mídia se colocavam como opostas às reformas e as tornaram inatingíveis pelos canais democráticos. As pessoas que atuavam como observadoras civis foram unânimes em concordar que os guardas trouxeram caos e violência de volta para o presídio, e que eles colocaram um fim nos resultados pacíficos da auto-organização dos prisioneiros de forma intencional. No fim, para destruir o sindicato dos prisioneiros, os guardas simularam uma rebelião e a polícia estadual foi chamada, atirando em diversos prisioneiros e torturando os organizadores principais. O líder mais reconhecido dos prisioneiros negros só conseguiu salvar sua vida pela autodefesa armada.

Muitas das pessoas civis e o comissário de Correções, que foi logo forçado a abandonar seu emprego, acabaram se tornando favoráveis à abolição das prisões. Os detentos que tomaram Walpole continuaram lutando por sua liberdade e dignidade, mas o sindicato dos guardas acabou acumulando mais poder do que antes e a mídia parou de falar em reforma prisional; e, no momento em que escrevo isto, o presídio de Walpole, agora chamado MCI - Cedar Junction, ainda armazena, tortura e mata pessoas que merecem estar em suas comunidades trabalhando por uma sociedade mais segura.

E as gangues e "bullies"?

Algumas pessoas temem que, em uma sociedade sem autoridades, as pessoas mais fortes sairiam do controle, tomando e fazendo o que quisessem. Como se essa não fosse uma descrição do que normalmente acontece em sociedades com governo! Esse medo é fruto de um mito estatista que coloca as pessoas como isoladas umas das outras. O governo gostaria muito que você acreditasse que, sem ele para lhe proteger, você estaria vulnerável aos caprichos de quem é mais forte. No entanto, nenhuma pessoa que oprime outra pode ser mais forte do que uma comunidade inteira. Uma pessoa que viole a paz social, desrespeite as necessidades de outras pessoas, e aja de forma autoritária e opressora pode ser derrotada ou expulsa pela vizinhança trabalhando em conjunto para restaurar a paz.

Em Christiania, o bairro autônomo e antiautoritário localizado na capital dinamarquesa, as pessoas têm resolvido seus próprios problemas, além dos problemas associados às visitas que recebem e à alta mobilidade social resultante delas. Muitas pessoas chegam como turistas, e uma quantidade ainda maior vai para comprar haxixe - não existem leis em Christiania e as drogas leves são facilmente encontradas, embora as pesadas tenham sido banidas com êxito. Dentro de Christiania, existem inúmeras oficinas que produzem bens variados, sendo os mais famosos as bicicletas de alta qualidade; também existem restaurantes, cafés, um jardim de infância, uma clínica médica, uma loja de alimentação saudável, uma livraria, um espaço anarquista e uma casa de shows. Christiania nunca foi dominada com sucesso por gangues ou "bullies" que residisse lá. Em 1984, uma gangue de motoqueiros se mudou para lá com a esperança de explorar a ausência de leis da zona autônoma para monopolizar o comércio de haxixe. Depois de inúmeros conflitos, as pessoas residentes em Christiania conseguiram expulsar os motoqueiros usando, em grande parte, táticas pacíficas.

O pior caso de opressão veio da polícia, que recentemente voltou a entrar em Christiania para deter pessoas por causa de maconha e haxixe, geralmente servindo como pretexto para aumentar as tensões. Pessoas trabalhando com incorporação imobiliária local adorariam ver o estado livre destruído pois o mesmo se encontra em um pedaço de terra que tem sido bastante valorizado. Décadas atrás, as pessoas moradoras de Christiania estiveram em um debate tenso sobre como lidar com o problema das drogas pesadas que vinham de fora. Depois de muita oposição, decidiram pedir ajuda à polícia, apenas para descobrir que a polícia focava em prender pessoas por causa das drogas leves e protegia a disseminação das pesadas (como heroína), provavelmente esperando que uma epidemia de vícios destruísse o experimento social autônomo[8]. Não foi a primeira vez que a polícia ou agentes estatais espalharam drogas viciantes enquanto reprimiam as leves ou alucinógenas; na verdade, isso parece ser universalmente parte de estratégias de repressão. No fim das contas, as pessoas residentes em Christiania expulsaram a polícia e lidaram com o problema das drogas pesadas por conta própria, mantendo quem as traficava fora do bairro e usando a pressão social para desestimular seu uso.

Em Christiania, como em outros lugares, é o Estado que representa o maior perigo para a comunidade. Diferentemente das pessoas praticando bullying que são imaginadas aterrorizando uma sociedade sem leis, o Estado não pode ser derrotado facilmente. Normalmente, o Estado busca obter o monopólio da força sob o pretexto de proteger as pessoas cidadãs de quem as oprime; essa é a justificativa para a proibição do uso de força por parte de quem não faz parte do aparato estatal, principalmente se for para se autodefender do governo. Em troca do abandono desse poder, as pessoas são direcionadas ao sistema judicial como o meio de defender seus interesses; mas, obviamente, o sistema judicial é parte do Estado, e protege seus interesses acima de todos os outros. Quando o governo chega para tomar sua terra com o objetivo de construir um shopping, por exemplo, você pode levar o caso para o tribunal ou até mesmo para um conselho da cidade, mas você pode terminar falando com alguém que tem algo a lucrar com a construção do shopping. Os tribunais das pessoas que fazem bullying não serão justos com suas vítimas, e elas não terão simpatia se você se defender contra a desocupação. Em vez disso, você irá para a prisão.

Nesse contexto, quem quiser uma solução frequentemente terá de buscá-la fora dos tribunais. Na Argentina, uma ditadura militar tomou o poder em 1976 e empreendeu uma "Guerra Suja" contra as pessoas de esquerda, torturando e matando 30.000 pessoas: oficiais responsáveis pelas torturas e execuções foram perdoados pelo governo democrático que sucedeu a ditadura. As Mães da Praça de Maio, que começaram a se encontrar para exigir o fim dos desaparecimentos e para saber o que havia acontecido com suas filhas e filhos, foram uma importante força social no encerramento do regime de terror. Como o governo nunca tomou qualquer providência séria para responsabilizar os assassinatos e torturadores, as pessoas elaboraram uma justiça popular que se baseia e vai além dos protestos e memoriais organizados pelas Mães.

Quando alguém que participou da Guerra Suja é localizado, ativistas colocam cartazes pela vizinhança informando de sua presença; pedem a lojistas locais que impeçam a entrada da pessoa, seguem-na e constrangem-na. Numa tática conhecida como "escracho", centenas ou até milhares de pessoas marcham até a residência de quem participou da Guerra Suja com placas, faixas, fantoches e tambores. Elas cantam, entoam palavras de ordem, e tocam músicas por horas, constrangendo o torturador e fazendo com que as pessoas todas saibam o que ele fez; a multidão pode atacar a residência com bombas de tinta[9]. Apesar da justiça proteger as pessoas poderosas, os movimentos sociais da Argentina se organizaram coletivamente para envergonhar e isolar seus piores opressores.

E o que impede uma pessoa de matar outra?

Muitos dos crimes violentos podem ter sua origem traçada até fatores culturais. Crimes violentos, como o homicídio, provavelmente diminuiriam drasticamente em uma sociedade anarquista porque muitas de suas causas - pobreza, glorificação da violência na TV, polícia, guerra, sexismo e a normalização de comportamentos antissociais e individualistas - desapareceriam ou diminuiriam.

A diferença entre duas comunidades zapotecas ilustra o fato de que a paz é uma escolha. Zapotecas são uma nação indígena agrária e sedentária vivendo em uma terra atualmente reivindicada pelo Estado mexicano. Uma comunidade zapoteca chamada La Paz possui uma taxa anual de 3,4 homicídios para 100.000 habitantes. Uma comunidade zapoteca vizinha possui um índice bem maior de 18,1 para 100.000. Quais atributos sociais acompanham o modo mais pacífico de vida? Diferentemente da vizinha mais violenta, a La Paz zapoteca não bate em suas crianças; da mesma forma, as crianças assistem menos violência e usam menos violência em suas brincadeiras. De modo similar, bater na esposa é algo raro e não é considerado aceitável; mulheres são tomadas como iguais aos homens, e usufruem de uma atividade econômica autônoma que é importante para a vida da comunidade de tal forma que elas não ficam dependentes dos homens. No que diz respeito à educação infantil, as implicações de tal comparação particular são corroboradas por pelo menos um estudo cultural comparativo sobre socialização, estudo esse que descobriu que técnicas de socialização afetivas e calorosas têm correlação com baixos níveis de conflito na sociedade[10].

As sociedades Semai e norueguesa foram mencionadas anteriormente como exemplos de sociedades com baixos índices de homicídios. Até o colonialismo, o povo Semai não possuía um Estado, enquanto a Noruega possui um governo. A socialização é relativamente pacífica entre as pessoas semai e norueguesas. Semai usam uma economia da dádiva de forma que a riqueza é distribuída igualmente, enquanto a Noruega é um dos países capitalistas com menor desigualdade econômica devido a suas políticas domésticas de caráter socialista. Uma semelhança mais profunda é a confiança na mediação em vez de castigo, polícia ou prisões para resolver os litígios. A Noruega de fato possui polícia e um sistema prisional, mas, em comparação com a maioria dos Estados, há uma confiança alta depositada nos mecanismos de mediação de conflitos não muito diferentes dos que florescem em sociedades pacíficas e desprovidas de Estado. A maioria dos litígios civis na Noruega deve ser levada até pessoas com a função de mediadoras antes que possam ser encaminhadas aos tribunais, e milhares de casos criminais também são levados para essas pessoas. Em 2001, chegou-se a um acordo em 89% das mediações[11].

Então, em uma sociedade anarquista, crimes violentos seriam menos comuns. Mas, quando ocorrerem, a sociedade estaria mais vulnerável? Até porque, alguém poderia argumentar, mesmo quando a violência não é mais uma resposta social racional, assassinos psicopatas poderiam aparecer assim mesmo ocasionalmente. É suficiente dizer que qualquer sociedade, capaz de derrubar um governo, dificilmente estaria à mercê de assassinos psicopatas solitários. E sociedades que não saíram de uma revolução mas possuem um sentimento forte de comunidade e solidariedade são capazes de se protegerem também.

Inuítes, indígenas que vivem de caça e coleta nas regiões árticas da América do Norte, constituem um exemplo do que uma sociedade sem Estado pode fazer no pior cenário possível. De acordo com suas tradições, se uma pessoa comete um assassinato, a comunidade a perdoa e faz com que ela seja reconciliada com a família da vítima. Se essa mesma pessoa volta a cometer um homicídio, ela é assassinada, normalmente por membros de seu próprio grupo familiar, de tal forma que não sobram ressentimentos nem motivos para brigas.

Os métodos punitivos do Estado para lidar com o crime torna as coisas piores, não melhores. Os métodos restaurativos como resposta a danos sociais que são empregados em muitas sociedades sem Estado abrem novas possibilidades para se escapar dos ciclos de abuso, castigo e dano familiares para muitas pessoas.

E estupro, violência doméstica e outras formas de violência?

Muitas das ações que são consideradas crimes pelo nosso governo são completamente inofensivas; alguns crimes, como roubar das pessoas ricas ou sabotar instrumentos de guerra, pode diminuir a quantidade danos, na verdade. Ainda assim, o número de transgressões que são consideradas crimes atualmente podem realmente constituir um dano social real. Dessas transgressões, homicídio é alvo de um sensacionalismo alto, mas é raro em comparação a outros problemas comuns.

Violência doméstica e sexual ocorrem em excesso em nossa sociedade, e, mesmo na ausência de governo e de capitalismo, essas formas de violência permanecerão caso não sejam abordadas especificamente. Atualmente, muitas formas de violência sexual e doméstica são comumente toleradas; algumas são sutilmente estimuladas por Holywood, igrejas e outras instituições tradicionais. Hollywood frequentemente torna o estupro sexualizado e, junto com a mídia corporativa e a maioria das grandes religiões, glorifica a passividade e a subserviência das mulheres. No discurso que essas instituições influenciam, o grave do problema do estupro conjugal é ignorado, e, como resultado disso, muitas pessoas ainda acreditam que um marido não tem como estuprar sua esposa porque ambas as partes estão ligadas por uma união sexual contratual. Noticiários e filmes de Hollywood regularmente apresentam o estupro como um ato cometido por um estranho - principalmente um estranho pobre e não-branco. Nessa versão, a única esperança de uma mulher é ser protegida pela polícia ou pelo namorado. Mas, na verdade, a maioria esmagadora de estupros é cometida por namorados, amigos e membros da família, em situações que se encontram na área nebulosa entre as definições tradicionais de consentimento e força. De um modo mais frequente, Hollywood ignora os problemas do estupro, do abuso e da violência doméstica em conjunto, enquanto perpetua o mito do amor à primeira vista. Nesse mito, o homem conquista a mulher e ambas as partes satisfazem todas as necessidades emocionais e sexuais uma da outra, criando um par perfeito sem precisar conversar sobre consentimento, trabalhar na comunicação ou navegar por fronteiras emocionais e sexuais.

A polícia e outras instituições que pretendem proteger as mulheres do estupro as aconselham a não resistir por medo de provocar os agressores, mesmo quando todas as evidências e o senso comum sugerem que a resistência é quase sempre a melhor chance que uma mulher tem. O Estado raramente oferece cursos de autodefesa para mulheres, mas frequentemente julga mulheres que matam ou ferem seus agressores em legítima defesa. Pessoas que vão até o Estado para denunciar agressões físicas e sexuais encaram humilhações adicionais. Tribunais questionam a integridade moral e a honestidade de mulheres que corajosamente tornam públicos as agressões sexuais sofridas; juízes premiam pais abusivos com a custódia das crianças; a polícia ignora chamados de violência doméstica, até mesmo ficam aguardando enquanto maridos batem nas esposas. Alguns regulamentos locais requerem que a polícia detenha alguém, ou mesmo ambas partes envolvidas, no caso de uma chamada de violência doméstica; é frequente uma mulher ser ela mesma enviada para a prisão após pedir ajuda. Pessoas transgêneras são traídas ainda mais pelo sistema legal, que se recusa a respeitar suas identidades e frequentemente as coloca de maneira forçada em celas com pessoas de gênero diferente. A classe trabalhadora e pessoas transgêneras em situação de rua são sistematicamente estupradas por agentes do sistema legal.

Uma grande quantidade de abuso indiretamente causada pelas autoridades é o resultado de pessoas descontando sua raiva em quem está abaixo delas na hierarquia social. Crianças, que costumam estar na base da pirâmide, recebem boa parte desse abuso em última instância. Autoridades que deveriam mantê-las em segurança - pais, parentes, padres, professores - são os seus abusadores mais prováveis. Procurar ajuda muitas vezes apenas torna tudo pior, porque, em nenhum momento, o sistema legal permite que essas pessoas tomem de volta o controle de suas vidas, mesmo quando é esse controle que sobreviventes de abuso mais precisam. Em vez disso, cada caso é decidido por assistentes sociais e juízes que têm pouco conhecimento da situação e centenas de outros casos para passar por sua arbitragem.

O paradigma atual de castigar quem comete ofensas e ignorar as necessidades das vítimas se provou um enorme fracasso, e um aumento de aplicações das leis não mudaria isso. Pessoas que cometem abusos frequentemente foram elas mesmas vítimas de abuso; enviá-las para um presídio não diminui a probabilidade delas agirem de forma abusiva. As pessoas que sobrevivem ao abuso podem se beneficiar de um espaço seguro, mas enviar quem cometeu o abuso para a cadeia acaba com a chance de reconciliação, e, se houver dependência financeira da parte que abusou, como frequentemente é o caso, elas podem escolher não denunciar por medo de terminar desabrigadas, pobres ou em orfanatos.

Sob o Estado, tomamos violência doméstica e sexual como crimes, violações dos direitos das vítimas, inaceitáveis pois desafiam os mandamentos estatais. Em oposição a isso, muitas sociedades sem Estado têm usado um paradigma baseado na necessidade. Esse paradigma enquadra essas formas de violência como danos sociais, focando assim nas necessidades da pessoa que sobrevive de se recuperar e na necessidade de quem cometeu a ofensa de se tornar uma pessoa saudável e capaz de se relacionar com o resto da comunidade. Como esses atos de dano social não ocorrem de forma isolada, esse paradigma atrai toda a comunidade e busca restaurar a paz social mais ampla, enquanto respeita a autonomia e as necessidades autodefinidas de cada pessoa individualmente.

O método Navajo de "pacificação" sobreviveu por séculos, apesar da violência do colonialismo. Esse método está sendo revivido atualmente para lidar com danos sociais e diminuir a dependência com relação ao governo dos EUA; e pessoas que estudam justiça restaurativa estão olhando para o exemplo Navajo para conseguir alguma orientação. Na prática de justiça restaurativa do povo Navajo, uma pessoa que seja respeitada por todas as outras por ser justa e imparcial age como pacificadora. Uma pessoa pode buscar outra para ser pacificadora caso esteja procurando ajuda para um problema por sua própria vontade. Poderia ser o caso também de sua comunidade ou família estar preocupada com seu comportamento, se ela feriu alguém ou foi ferida. Ou ainda, se ela estiver em litígio com outra pessoa de forma que as duas precisem de ajudam para encontrar a solução. Compare isso com o sistema estatista de justiça punitiva, no qual as pessoas apenas recebem atenção - e sempre uma atenção negativa - quando cometem uma infração legal. O dano mesmo e as razões pelas quais ele foi causado são irrelevantes para o processo judicial.

O propósito do processo Navajo é ir ao encontro das necessidades de quem procura uma pessoa exercendo a função de pacificadora e encontrar a raiz do problema. "Quando membros da comunidade Navajo tentam explicar por quê as pessoas causam danos a si mesmas e a outras pessoas, elas dizem que aquelas responsáveis pelo dano se comportam dessa forma porque se tornaram desconectadas do mundo circundante, das pessoas com as quais elas vivem e trabalham. Elas dizem que uma pessoa 'age como se não tivesse parentes' ". As pessoas pacificadoras resolvem isso "discutindo as coisas" e ajudando a pessoa que causou o dano a se religar à sua comunidade e reaver o apoio e as condições para que ela possa agir de uma maneira saudável. Além disso, elas fornecem apoio para a pessoa que sofreu o dano, procurando maneiras de fazê-la se sentir segura e completa novamente.

Para esse fim, o processo de pacificação envolve a família e as pessoas amigas das partes envolvidas. As pessoas apresentam suas narrativas, suas perspectivas sobre o problema e seus sentimentos. O objetivo final é encontrar uma solução prática que restaure os relacionamentos entre as pessoas. Para ajudar, a pessoa pacificadora faz um discurso que frequentemente baseia-se em histórias da criação Navajo para mostrar como personagens tradicionais lidaram com os mesmos problemas no passado. Nos casos nos quais há claramente alguém que agiu de forma errada e causou dano à outra pessoa, a pessoa que cometeu a ofensa frequentemente paga uma quantia acordada de restituição (ou nalyeeh) ao fim do processo. No entanto, nalyeeh não é uma forma de castigo no espírito "olho por olho", mas sim um modo de "acertar as coisas para a pessoa que sofreu uma perda". Dos 110 capítulos (ou comunidades semiautônomas) da nação Navajo, 104 possuem alguma pessoa designada como pacificadora, e membros respeitados de uma família foram convocados para resolver litígios de forma não-oficial em várias instâncias no passado[12].

Resistência Crítica [Critical Resistance] é uma organização antiautoritária nos EUA formada por ex-dententos e familiares de detentos com o objetivo de abolir o sistema prisional e suas causas. No momento em que este texto foi escrito, o grupo estava trabalhando na criação de "zonas livres de danos". O objetivo dessas zonas seria providenciar "ferramentas e treinamentos para comunidades locais se fortalecerem e desenvolverem sua capacidade de resolver conflitos sem a necessidade de polícia, do sistema judiciário ou da indústria prisional. As zonas livres de dano utiliza uma abordagem abolicionista das comunidades em desenvolvimento, o que significa criar modelos hoje que representem como queremos viver no momento e no futuro"[13]. Construindo relacionamentos mais fortes entre pessoas vizinhas e criando recursos comuns de forma proposital, pessoas em um bairro podem manter traficantes do lado de fora, fornecer apoio às pessoas que sofrem com o vício, intervir em situações de abuso familiar, montar creches e alternativas para a entrada em gangues, e aumentar a comunicação cara a cara.

Outros grupos antiautoritários, alguns inspirados nesse modelo, começaram o trabalho árduo de criar zonas livres de dano em suas próprias cidades. É claro, mesmo se não houvesse qualquer crime violento, um governo racista e capitalista ainda acharia motivos para aprisionar as pessoas: criar inimizades internas e punir rebeldes sempre foram as funções do governo, e tantas empresas privadas estão investindo no sistema prisional hoje em dia que este se tornou uma indústria baseada em crescimento. Mas, quando as pessoas não são mais dependentes da polícia e das prisões, quando as comunidades não estão mais paralisadas por danos sociais causados a si mesmas, é muito mais fácil organizar a resistência.

Pelos Estados Unidos e em outros países, feministas têm organizado um evento chamado "Retome a Noite" ["Take Back the Night"] para abordar a violência contra mulheres. Uma vez por ano, um grupo grande de mulheres e apoiadores marcham pela vizinhança ou campus durante a noite - um momento que muitas mulheres associam com um risco maior de sofrerem agressões sexuais - para retomar seu ambiente e dar visibilidade à questão. Esses eventos normalmente incluem educação acerca da predominância e das causas da violência contra mulheres. Alguns grupos também abordam a violência excessiva de nossa sociedade contra pessoas transgêneras. A primeira marcha aconteceu na Bélgica em 1976, organizada por mulheres que frequentavam o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres. O evento tem muito da tradição dos protestos na Noite de Santa Valburga [Walpurgisnacht] na Alemanha. Conhecida como Noite das Bruxas, no dia 30 de abril, a noite anterior ao May Day, é uma noite tradicional para brincadeiras, tumultos e resistência pagã e feminista. Em 1977, feministas alemãs envolvidas com o movimento autonomista marcharam na Noite de Santa Valburga sob a bandeira "Mulheres retomam a noite!". O primeiro evento "Retome a noite" nos EUA ocorreu no dia 4 de novembro de 1977, na zona de prostituição de São Francisco.

Uma ação desse tipo é um primeiro passo importante na criação de uma força coletiva capaz de modificar a sociedade. Sob o patriarcado, toda família está isolada, e, embora muitas pessoas sofram os mesmos problemas, elas o fazem sozinhas. Juntar pessoas para falar sobre um problema do qual ninguém falava, retomar um espaço público que lhe foi negado - as ruas durante a noite - é uma metáfora viva da sociedade anarquista, onde as pessoas se reúnem para derrubar qualquer autoridade, qualquer pessoa opressora.

A violência sexual afeta todas as pessoas em uma sociedade patriarcal. Ela ocorre em comunidades radicais que são opostas ao sexismo e à violência sexual. A não ser que foquem em desaprender seu condicionamento patriarcal, pessoas que se autodeclaram radicais frequentemente respondem a problemas como estupro, assédio e outras formas de abuso e violência sexual através do mesmo comportamento que é tão comum no resto da sociedade: ignorando, justificando, recusando um posicionamento sobre o ocorrido, não acreditando ou até culpando a pessoa sobrevivente. Para combater isso, feministas e anarquistas na Filadélfia formaram dois grupos. O primeiro, Philly's Pissed, trabalha para ajudar sobreviventes de violência sexual:

Todo o trabalho da Philly's Pissed é realizado de forma confidencial a não ser que a sobrevivente peça que seja diferente. Nós não somos "especialistas" certificadas, mas um grupo de pessoas cujas vidas foram afetadas por agressões sexuais repetidas vezes e estamos fazendo nosso melhor para criar um mundo mais seguro. Respeitamos nosso próprio conhecimento e o de outras pessoas para descobrir o que parece ser mais seguro para cada uma. Philly's Pissed ajuda sobreviventes de agressões sexuais indo ao encontro de suas necessidades imediatas, assim como ajudando a articularem e facilitarem o que elas precisam para se sentirem seguras e no controle de suas vidas novamente.[14][83]

Se uma sobrevivente tem demandas a fazer para a pessoa agressora - por exemplo, que ela receba aconselhamento, que se desculpe publicamente ou que nunca mais chegue perto da sobrevivente - o grupo de apoio as repassa. Se a sobrevivente desejar, o grupo torna pública a identidade da pessoa agressora para impedir que ela esconda suas ações e para que outras pessoas fiquem avisadas.

O segundo grupo, Philly Stands Up, trabalha com pessoas que cometeram agressões sexuais para oferecer apoio através do processo de se responsabilizarem por seus atos, aprenderem com eles e mudarem seus comportamentos, e restaurarem relações saudáveis com sua comunidade. Os dois grupos também promovem oficinas em outras cidades para compartilhar suas experiências de resposta a agressões sexuais.

Para além da justiça individual

A noção de justiça talvez seja o produto mais perigoso de uma psicologia autoritária. Os piores abusos do Estado ocorrem nas suas prisões, inquisições, correções forçadas e reabilitações. Polícia, juízes e juízas, e guardas de prisão são agentes centrais de coerção e violência. Em nome da justiça, bandidos uniformizados aterrorizam comunidades inteiras enquanto dissidentes fazem petições para o mesmo governo que as reprime. Muitas pessoas internalizaram as racionalizações da justiça estatal a tal ponto que morrem de medo de perder a proteção e a arbitragem que os Estados supostamente fornecem.

Quando a justiça se torna a esfera particular de especialistas, a opressão não está muito longe. Em sociedades sem Estado que estão prestes a desenvolver as hierarquias coercivas que levam ao governo, uma característica comum parece ser um grupo de anciãos respeitados permanentemente confiados com o papel de resolver conflitos e encontrar a justiça. Em tal contexto, o privilégio pode se enraizar, já que as pessoas que se beneficiam dele podem moldar as normas sociais para preservar e ampliar seus privilégios. Sem esse poder, riqueza e poder individuais ficam sobre um fundamento frágil que qualquer pessoa pode desafiar.

A justiça do Estado começa com a recusa de se envolver com as necessidades humanas. Necessidades humanas são dinâmicas e somente podem ser compreendidas plenamente pelas pessoas que as experienciam. A justiça do Estado, pelo contrário, é a aplicação de prescrições universais codificadas em leis. Especialistas que interpretam as leis devem focar na intenção original da pessoa legisladora e não na situação presente. Se você precisa de pão e roubar é um crime, você será punido por roubá-lo, mesmo que você tome-o de alguém que não precisa dele. Mas, se sua sociedade se concentra nas necessidades e nos desejos das pessoas e não no cumprimento de leis estáticas, você tem a oportunidade de convencer sua comunidade de que você precisava mais daquele pão do que a pessoa da qual você o tomou. Dessa forma, a pessoa agente e as que foram afetadas permanecem no centro do processo, sempre empoderadas para se explicar e desafiar as normas da comunidade.

Em comparação, a justiça depende de julgamentos, privilegiando uma pessoa poderosa que toma as decisões em detrimento de quem acusa e quem se defende, que ficam aguardando o resultado sem poder fazer nada. A justiça é a aplicação da moralidade, algo que, em suas origens, era justificado por uma ordenação divina. Quando as sociedades se afastam dos fundamentos religiosos, a moralidade se torna universal, ou natural, ou científica - esferas que se distanciam cada vez mais do público em geral - até que esteja moldada e embalada quase que exclusivamente pela mídia e pelo governo.

A noção de justiça e as relações sociais que ela implica são inerentemente autoritárias. Na prática, os sistemas de justiça sempre dão vantagens injustas para as pessoas poderosas e causam danos terríveis às pessoas desprovidas de poder. Ao mesmo tempo, eles nos corrompem eticamente e atrofiam nosso senso de responsabilidade e nossa capacidade de tomar iniciativa. Como uma droga, eles nos tornam dependentes enquanto imitam a satisfação de uma necessidade natural humana, que, nesse caso, é a necessidade de resolver conflitos. Assim, as pessoas imploram para os sistemas de justiça por reformas, não importa o quão irreais sejam suas expectativas, em vez de tomar as rédeas dos problemas. Para se recuperarem de abusos, pessoas machucadas precisam reaver o controle sobre suas vidas, a pessoa que cometeu o abuso precisa recuperar as relações saudáveis com seus pares, e a comunidade precisa examinar suas normas e dinâmicas de poder. O sistema de justiça impede tudo isso. Ele acumula controle, aliena comunidades inteiras e obstrui o exame das raízes dos problemas, preservando o status quo acima de tudo.

Polícia e tribunais podem fornecer um grau limitado de proteção, especialmente para as pessoas privilegiadas pelo racismo, pelo sexismo ou pelo capitalismo; mas o maior perigo que seres humanos enfrentam é o próprio sistema. Por exemplo, milhares de pessoas trabalhadoras são mortas anualmente por negligência de quem as emprega e por condições inseguras de trabalho, mas as pessoas que empregam nunca são punidas como assassinas e praticamente nunca são sequer acusadas como criminosas. O máximo que as famílias dessas pessoas trabalhadoras podem esperar é um acordo monetário de um tribunal civil. Quem decide que a pessoa que emprega e lucra com a morte da classe trabalhadora não deve receber nada pior que uma ação judicial, enquanto a esposa que atira em seu marido abusador vai para a cadeia e o adolescente negro que mata um policial em legítima defesa recebe uma pena de morte? Certamente não é uma pessoa trabalhadora, uma mulher ou alguém de pele negra.

Um sistema totalitário deve fornecer, subjugar ou dar um substituto para cada necessidade humana. No exemplo acima, o sistema de justiça coloca o assassinato de pessoas trabalhadoras como um problema a ser resolvido através de regulações e burocracias. A mídia contribui focando em uma cobertura grosseiramente desproporcional de assassinos em série e de "sangue frio", quase sempre pobres e normalmente não-brancos, mudando assim a percepção das pessoas sobre os riscos que elas correm. Consequentemente, muitas pessoas temem as pessoas pobres mais do que seus patrões, e estão dispostas a apoiar a polícia e os tribunais que têm aquelas como alvos.

Claro que, em alguns casos, a polícia e os tribunais agem quando pessoas trabalhadoras ou mulheres são mortas - embora isso frequentemente seja feito para compensar a fúria popular e desencorajar as pessoas de buscarem suas próprias soluções. Mesmo nesses casos, geralmente as respostas são tímidas ou contraproducentes.

Enquanto isso, o sistema de justiça serve de forma bem eficaz como uma ferramenta para remodelar a sociedade e controlar as classes mais baixas da população. Pense na "Guerra às Drogas", travada desde a década de 1980 até o momento presente. Comparada a homicídio e estupro, a maioria das drogas ilegais são relativamente inofensivas; no caso das que podem ser prejudiciais, tem sido demonstrado plenamente que a atenção médica é uma resposta mais efetiva do que cumprir uma sentença na prisão. Mas o sistema de justiça declarou essa guerra para alterar as prioridades públicas: ela justifica a ocupação de bairros pobres, o encarceramento e a escravidão em massa de milhões de pessoas pobres e não brancas, e a expansão dos poderes da polícia e de juízes e juízas.

O que a polícia faz com esse poder? Ela prende e intimida os elementos mais desprovidos de poder na sociedade. Pessoas pobres e não brancas são as vítimas esmagadoras de detenções e condenações, para não mencionar o assédio diário e até assassinatos pelas mãos da polícia. Tentativas de reformar a polícia raramente fazem mais do que alimentar seus orçamentos e otimizar seus métodos para prender pessoas. E o que acontece com as milhões de pessoas encarceradas? Elas são isoladas, assassinadas aos poucos por dietas pobres e condições miseráveis ou de forma rápida por guardas que nunca são condenados. Guardas prisionais estimulam gangues e violência racial para facilitar a manutenção do controle, e frequentemente contrabandeiam e vendem drogas viciantes para engordar suas carteiras e anestesiar a população. Dezenas de milhares de pessoas encarceradas são confinadas em solitárias, algumas por décadas.

Estudos sem fim mostraram que tratar vício em drogas e outros problemas psicológicos como problemas criminais é ineficaz e desumano; tem sido demonstrado que maltratar as pessoas presas e lhes negar contato humano e oportunidades educacionais aumentam a reincidência[15]. Mas, para cada estudo mostrando como acabar com o crime e reduzir a população carcerária, o governo foi e fez exatamente o oposto: ele cortou programas educacionais, aumentou os confinamentos em solitária, prolongou sentenças e reduziu direitos de visita. Por quê? Porque, além de ser um mecanismo de controle, a prisão é uma indústria. Ela direciona bilhões de dólares de verba pública para instituições que fortalecem o controle estatal, como a polícia, os tribunais, empresas de vigilância e segurança, além de fornecer força de trabalho escrava que produz bens para o governo e para corporações privadas. Trabalho forçado ainda é legalizado no sistema prisional, e a maioria das prisões incluem fábricas nas quais as pessoas presas têm de trabalhar por alguns centavos por hora. As prisões também possuem o equivalente moderno da loja da empresa, onde a população carcerária tem de gastar todo o dinheiro que ganha e que as famílias mandam comprando roupas, comida ou ligações telefônicas, tudo por preços inflacionados.

O sistema está além de qualquer esperança de reforma. Burocratas prisionais reformistas desistiram ou acabaram apoiando a abolição das prisões. Um burocrata em posição alta na hierarquia que dirigia departamentos de correção juvenis em Massachusetts e Illinois concluiu que:

Prisões são burocracias ultrapassadas e violentas que não protegem a segurança pública. Não há como reabilitar ninguém dentro delas. A instalação produz violência que demanda mais da instalação. É uma profecia autorrealizável. Prisões oferecem a si mesmas como solução para os problemas criados por ela. Instituições são erguidas para fazer as pessoas fracassarem. Esse é seu propósito latente[16].

Esses não são problemas para serem resolvidos através de reformas ou modificações nas leis. O sistema de justiça organizou suas prioridades e as leis com o propósito específico de nos controlar e abusar de nós. O problema é a própria lei.

Frequentemente, as pessoas que vivem em uma sociedade estatista assumem que, sem um sistema centralizado de justiça seguindo leis claras, seria impossível resolver qualquer conflito. Sem um conjunto comum de leis, todas as pessoas lutariam pelos seus próprios interesses, resultando em brigas perpétuas. Se métodos para lidar com dano social são descentralizados e voluntários, o que impede que as pessoas "façam justiça com as próprias mãos"?

Um importante mecanismo de nivelamento em sociedades sem Estado é que as pessoas realmente fazem justiça com as próprias mãos algumas vezes, especialmente quando estão lidando com as pessoas em posição de liderança que estão agindo de forma autoritária. Qualquer pessoa pode obedecer sua consciência e fazer algo contra uma pessoa que ela pense estar causando danos para a comunidade. No melhor dos casos, isso pode fazer com que outras pessoas reconheçam e confrontem o problema que elas tentaram ignorar. No pior, pode dividir a comunidade entre pessoas que consideram a ação justificada e pessoas que pensam que foi algo prejudicial. No entanto, mesmo isso é melhor que institucionalizar desequilíbrios de poder; em uma comunidade onde todas as pessoas possuem o poder de fazer as coisas com as próprias mãos, onde todo mundo é igual, as pessoas vão descobrir como é bem mais fácil discutir as coisas e tentar mudar as opiniões de seus pares do que fazer o que quer que elas queiram ou causar conflitos agindo como justiceiros. O motivo pelo qual esse método não é usado em sociedades democráticas e capitalistas não é porque ele não funciona, mas porque existem certas opiniões que não devem ser modificadas, certas contradições que não devem ser abordadas e certos privilégios que não devem ser desafiados.

Em muitas sociedades sem Estado, não são pessoas defensoras da justiça especializadas que lidam com o mau comportamento, mas todo mundo, através do que profissionais da antropologia chamam de sanções difusas - sanções ou reações negativas que são difundidas pela sociedade. Todas as pessoas estão acostumadas a responder à injustiça e ao comportamento danoso, portanto todas estão mais empoderadas e mais envolvidas. Quando não há o Estado para monopolizar a manutenção diária da sociedade, as pessoas aprendem como fazer isso por si mesmas, e ensinam umas às outras.

Nós não precisamos definir abuso como um crime para saber que ele nos machuca. Leis são desnecessárias em sociedades empoderadas; existem outros modelos de resposta a danos sociais. Podemos identificar os problemas como violações das necessidades de outras pessoas em vez de uma violação de um código escrito. Podemos estimular um amplo envolvimento social na solução do problema. Podemos ajudar as pessoas que se machucaram a expressar suas necessidades e seguir seu exemplo. Podemos tornar as pessoas responsáveis pelos seus atos quando elas machucam outras, enquanto damos a elas apoio e as oportunidades de aprendizado e restabelecimento de relações respeitosas com a comunidade. Podemos enxergar problemas como uma responsabilidade da comunidade inteira em vez de serem culpa de uma pessoa. Podemos recuperar o poder de curar a sociedade e quebrar o isolamento que nos foi imposto.

Leitura recomendada

  • Kristian Williams, Our Enemies in Blue. Brooklyn: Soft Skull Press, 2004.
  • Jamie Bissonette, When the Prisoners Ran Walpole: A True Story in the Movement for Prison Abolition, Cambridge: South End Press, 2008.
  • Dennis Sullivan and Larry Tifft, Restorative Justice: Healing the Foundations of Our Everyday Lives, Monsey, NY: Willow Tree Press, 2001.
  • Graham Kemp and Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004.
  • Michel Foucault, Discipline and Punish: the Birth of the Prison, New York: Pantheon Books, 1977.
  • Ammon Hennacy, The Book of Ammon. Salt Lake City: Catholic Worker Books, 1970.
  • Fred Woodworth, The Match! um periódico anarquista publicado em Tucson.


Notas

  1. Essa análise foi bem documentada por Kristian Williams em Our Enemies in Blue. Brooklyn: Soft Skull Press, 2004.
  2. Em 2005, 5.734 pessoas morreram por causa de lesões traumáticas durante o trabalho, e estima-se que entre 50.000 e 60.000 morreram de doenças profissionais, de acordo com o documento “Facts About Worker Safety and Health 2007.” da ALF-CIO www.aflcio.org De todos assassinatos de pessoas trabalhadoras devido à negligência de quem emprega ocorridos entre 1982 e 2002, menos de 2000 foram investigados pelo governo, e apenas 91 desses resultaram em condenações, tendo meros 16 casos terminado com encarceramento, mesmo a sentença máxima tendo sido de seis meses de acordo com David Barstow, "U.S. Rarely Seeks Charges for Deaths in Workplace", New York Times, 22 de dezembro, 2003.
  3. Essas são estatísticas amplamente disponíveis provenientes do Escritório do Censo dos EUA, do Departamento de Justiça, de pesquisadores independentes, da Human Rights Watch e outras organizações. Elas podem ser encontradas, por exemplo, em drugwarfacts.org [visualizado em 30 de dezembro de 2009].
  4. Wikipédia, “Seattle General Strike of 1919”, en.wikipedia.org [visualizado em 21 de junho de 2007]. Fontes impressas citadas nesse artigo incluem: Jeremy Brecher, Strike!, Revised Edition. South End Press, 1997; e Howard Zinn, A People’s History of the United States, Perrenial Classics Edition, 1999.
  5. Diana Denham and C.A.S.A. Collective (eds.), Teaching Rebellion: Stories from the Grassroots Mobilization in Oaxaca, Oakland: PM Press, 2008, entrevista com Cuatli.
  6. Alan Howard, “Restraint and Ritual Apology: the Rotumans of the South Pacific”, em Graham Kemp e Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004, p. 42.
  7. Ambas citações são fornecidas por Jamie Bissonette, When the Prisoners Ran Walpole: a true story in the movement for prison abolition, Cambridge: South End Press, 2008, p. 160.
  8. Não tem como não comparar isso com a disseminação do ópio na China pelo governo britânico, ou com o governo dos EUA espalhando whisky entre as pessoas indígenas e, posteriormente, heroína nos guetos.
  9. Natasha Gordon e Paul Chatterton, Taking Back Control: A Journey through Argentina’s Popular Uprising, Leeds (UK): University of Leeds, 2004, p. 66–68.
  10. Graham Kemp e Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004, p. 73–79. O estudo comparativo em questão é M.H. Ross, The Culture of Conflict, New Haven: Yale University Press, 1993.
  11. Graham Kemp e Douglas P. Fry (eds.), Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies around the World, New York: Routledge, 2004, p. 163.
  12. Todas as citações e estatísticas sobre a Nação Navajo são provenientes de Dennis Sullivan e Larry Tifft, Restorative Justice: Healing the Foundations of Our Everyday Lives, Monsey, NY: Willow Tree Press, 2001, p. 53–59.
  13. www.harmfreezone.org [visualizado em 24 de novembro de 2006].
  14. Philly’s Pissed, www.phillyspissed.net [visualizado em 20 de maio de 2008].
  15. George R. Edison, MD, “The Drug Laws: Are They Effective and Safe?”, The Journal of the American Medial Association. Vol. 239 Nº.24, 16 de junho de 1978. A.W. MacLeod, Recidivism: a Deficiency Disease, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1965.
  16. Jamie Bissonette, When the Prisoners Ran Walpole: A True Story in the Movement for Prison Abolition, Cambridge: South End Press, 2008, p. 201. Considere também as histórias de John Boone e outros burocratas presentes.