A Mão Morta do Passado
Você se lembra de como o tempo passava diferente quando você tinha doze anos de idade? Um verão era uma vida, e cada dia passava como um mês passa agora. Pois tudo era novo: cada dia guardava experiências e emoções que você nunca havia encontrado antes, e quando o verão terminava você tinha se tornado uma pessoa diferente. Talvez você sentisse uma liberdade selvagem que desde então lhe abandonou: você tinha a impressão de que tudo poderia acontecer, como se a sua vida pudesse se tornar qualquer coisa. Agora, mais além naquela vida, ela não parece tão imprevisível. As coisas que antes eram novas e transformadoras há muito perderam o seu frescor e perigo, e o futuro à sua frente parece já estar determinado pelo seu passado.
Logo, é assim que somos controlados pela história: o passado jaz sobre nós como uma mão morta, nos guiando e controlando direto de sua tumba. Ao mesmo tempo em que ela dá ao indivíduo uma concepção de si mesmo, uma "identidade", ela joga um peso sobre as suas costas do qual ele deverá lutar para se livrar se quiser continuar um indivíduo leve e livre o suficiente para continuar se reinventando. É a mesma coisa para o artista: até as inovações mais desafiadoras eventualmente se tornam muletas e clichés. Uma vez que uma artista criou uma boa solução para um problema, é difícil para ela se livrar dele para conceber outras possíveis soluções. É por isso que a maioria dos grandes artistas só podem oferecer umas poucas idéias revolucionárias: eles ficam presos pelos sistemas que eles próprios criaram, e esses sistemas também prendem todos aqueles que vêm depois. É difícil fazer algo completamente novo quando nos encontramos contra mil anos de tradição e história da pintura. E é a mesma coisa para o amante, para a matemática e para a aventureira: para todos, o passado é um adversário à ação no presente, uma força de inércia sempre crescente que deve ser superada.
Também é a mesma coisa para o radical. A sabedoria convencional diz que um conhecimento do passado é indispensável na busca da liberdade e das mudanças sociais. Mas o conhecimento de filosofias e lutas passadas não deixa os pensadores e ativistas radicais de hoje mais perto de mudar o mundo; pelo contrário, eles freqüentemente parecem fixados em métodos e argumentos antigos, incapazes de aprender o que é necessário no presente para fazer as coisas acontecerem. O seu lugar na tradição de lutas os aprisionou em uma batalha que está sendo perdida, defendendo posições que há muito tempo se tornaram inúteis e ultrapassadas; as suas constantes referências ao passado não apenas os tornam incompreensíveis aos outros, mas também os impedem de se referir ao que está acontecendo à sua volta.
Vamos considerar o que é que faz a história ser tão paralisadora. No caso da história mundial, é a natureza exclusiva e anti-subjetiva da coisa: História (com "H" maiúsculo) é supostamente vista pelo olho objetivo da ciência, como se "de cima"; ela exige que o indivíduo valorize suas experiências e impressões menos do que a Verdade oficial sobre o passado. Mas não é a história oficial que nos paraliza, é a própria idéia do passado.
Tente pensar no mundo incluindo todo o tempo passado e futuro como espaço presente. Um indivíduo pode pelo menos esperar ter algum controle sobre aquela parte do mundo que está no futuro; mas o passado apenas age sobre ela, ela nunca pode agir de volta sobre ele. Se ela pensa no mundo (quer esse "mundo" consista de sua vida ou da história do mundo) consistindo predominantemente de futuro, proporcionalmente falando, ele se verá como suficientemente livre para escolher seu próprio destino e exercer sua vontade sobre o mundo. Mas se a sua visão do mundo coloca a maior parte do mundo no passado, isso a põe em uma situação de impotência: não apenas ela é incapaz de criar e agir na maior parte do mundo no qual ela existe, mas o futuro que resta já está em grande parte pré-determinado pelos efeitos de eventos passados.
Quem, então, quer ser um ponto insignificante perto do final dos oito mil anos de história da civilização humana? Conceber o mundo de tal forma só pode resultar em sentimentos de futilidade e pré-determinação. Devemos pensar o mundo de uma forma diferente para escapar desta armadilha - devemos colocar nosso "eu" e e nossa presente existência onde eles pertencem por direito, no centro do universo, e nos livrarmos do peso morto do passado. O tempo pode se extender infinitamente tanto para trás como à nossa frente, mas não é assim que nós vivenciamos o mundo, e também não é assim que devemos visualizá-lo, se quisermos encontrar algum significado nele. Se ousarmos nos atirar no desconhecido e no imprevisível, a continuamente buscar situações que nos forçam a estar no presente momento, podemos nos livrar dos sentimentos de inevitabilidade e inércia que limitam nossas vidas - e, nesses instantes, sair da história.
O que significa sair da história? Significa, simplesmente, entrar no presente, entrar em você mesmo. O tempo é comprimido no momento, o espaço está concentrado em um ponto, e a densidade sem precedentes da vida é empolgante. A ruptura que ocorre quando você se livra de tudo que veio antes não é só uma quebra com o passado, você está se desligando do contínuo do passado-futuro que você tinha construído e se lançando num vácuo onde tudo pode acontecer e você é forçado a se refazer de acordo com um novo projeto. É uma sensação tão assustadora quanto libertadora, e nada falso ou supérfluo pode sobreviver a ela. Sem limpezas como esta, a vida fica tão sufocada com com coisas mortas e secas que fica quase "invivível", como ela o é para nós hoje.
Nada disso é para dizer que nós devemos condenar as mentiras deliberadas daqueles que querem reescrever a história, com a intenção de nos afundar ainda mais do que já estamos em ignorância e passividade. Mas a solução não é combater as suas supostas "verdades objetivas" com mais alegações de Verdade Histórica, pois não precisamos de mais passado, para pesar sobre nós, mas mais atenção ao presente. Não devemos permitir que eles façam nossas vidas e pensamentos girar somente ao redor do que já foi; em vez disso devemos perceber que cabe a nós descobrir o que é verdade sobre o presente e o que é possível daqui.
Então, o que devemos aceitar no lugar da História? Mito. Não as superstições obscurantistas e mentiras sagradas da religião e do capitalismo, mas os mitos democráticos dos contadores de histórias. O mito não faz nenhuma alegação de falsa imparcialidade ou Verdade objetiva, ele não se propõe a oferecer uma explicação exaustiva do cosmos. Mitos pertencem a todos, pois é feito e refeito por todos, então ele não pode ser nunca usado por nenhum grupo para se impor sobre outro. E ele não paraliza: em vez de prender as pessoas na corrente da causa e efeito, o mito os torna conscientes da enorme gama de possibilidades que suas próprias vidas tem a oferecer; ao invés de fazê-los se sentirem desesperadamente pequenos em um universo vasto e insensível, ele centraliza o mundo de novo em suas próprias experiências e ambições como representadas pelas dos outros. Quando nós contamos estórias de heróis e heroínas em volta de uma fogueira, de outras lutas e aventuras e sociedades, estamos oferecendo uns aos outros exemplos do quanto é possível viver.
MITO = HISTÓRIA SEM TEMPO
Pode ter aqueles que ameaçam que o mundo todo vai sair dos trilhos se pararmos de nos preocupar com o passado e pensarmos somente no presente. Deixem-o sair dos trilhos então! Muitas coisas boas nos fez a história até agora, se repetindo e repetindo. Vamos sair fora disso de uma vez por todas, antes que entremos nas trilhas circulares que nossos antepassados bateram no chão.
Vamos saltar fora da História e construir os momentos de nossas vidas diárias, o mundo em que vivemos e nos importamos - somente então poderemos transformá-lo em um lugar com significado para nós. O presente pertence aqueles que podem aproveitá-lo, que podem reconhecer tudo que ele é e pode ser!
COMO ROMPER A CADEIA DE EVENTOS (viagens no tempo e outras banalidades)
O mundo da vida real, das necessidades básicas do momento, nos aguarda sob a história, seus mistérios passados de geração em geração na moeda de experiências tão intensas que parecem transcender o próprio tempo. Estas experiências podem ser suprimidas, desencorajadas e negadas pelo relógio que nos oprime de todos os lados, mas enquanto tivermos corações em nossos peitos, sempre as encontraremos. A história é assombrada pelo seu próprio karma; o momento de revolução, de verdadeira poesia, traz todas sua dívidas não acertadas à tona, para serem pagas de uma vez para que a vida possa realmente começar. O que precisamos neste momento são instantes tão intensos, tão irresistíveis, que todo o sistema de controle do tempo regulado
derreta sob a sua radiação ardente. Nós aventureiros devemos caçar esses instantes por este mundo como caçadores perseguem a mais valiosa das presas.
Nós queremos viver, estar aqui, agora. Um desejo que vai além do presente, do passado, do futuro, atemporal, um instante que flutua no infinito como uma única nota musical, como nossas estórias e cicatrizes que persistem desprezando nossos mudanças de idéia. Hoje eu sinto e existo, para sempre. Contra os relógios. Amém.
P.S. - Se Não Agora, Então Quando?
O homem deve viver todo dia, ou ele não viverá nada. Sua felicidade e liberdade devem ser partes do seu dia-a-dia.
Qualquer solução, qualquer revolução, que nós propusermos, deve ser orientada para o presente e não para o futuro para ser realmente revolucionária.
A Cristandade exige que seus seguidores adiem a gratificação até que eles adentrem o próximo mundo, quando eles supostamente serão recompensados pelo seu bom comportamento; ao fazer isso ela pressupõe que o bom comportamento não é em si mesmo recompensador o suficiente para valer a pena se não for recompensado. Este tipo de pensamento reflete um terrível desentendimento da natureza da felicidade humana; pois a felicidade é encontrada na atividade, em atividades que são emocionantes e satisfatórias nelas mesmas, ao invés de esperar recompensas por atividades insatisfatórias. Logo, não é de se surpreender que muitos Cristãos devotos são indivíduos amargos, maliciosos, que invejosamente ressentem atividades saudáveis e a emoção dos outros - pois eles acreditam que eles encontrarão a verdadeira felicidade apenas em sua "recompensa divina" por um comportamento que não os empolga nem um pouco, e logo têm que assistir os outros fazerem livremente o que eles apenas sonham em fazer em suas fantasias mais "pecaminosas". E de outro lado, muitos Cristãos que são felizes são felizes apesar de sua Cristandade, porque são capazes de tirar felicidade de suas vidas e feitos neste mundo.
O Marxismo tradicional leva o erro Cristão um nível além quando exige que seus seguidores trabalhem por uma revolução que eles provavelmente não estarão vivos para ver, ou seja, na "fé" Marxista a gratificação fica adiada além do alcance da experiência humana. Não é de se surpreender que hoje em dia, além de algum romantismo anarquista sobre a "nobreza" do auto-sacrifício, a oferta Marxista não funciona muito como incentivo para as pessoas lutarem seriamente pela "revolução comunista". Em contraste, o mercado consumidor capitalista de hoje pelo menos promete recompensas imediatas na forma de bens materiais (e mitos e imagens associados com eles) em troca do trabalho geralmente nada satisfatório que é exigido.
Nossa revolução deve ser uma revolução imediata em nosso cotidiano; qualquer outra coisa não é uma revolução, mas uma exigência de que mais uma vez as pessoas façam o que elas não querem e esperem que desta vez, de alguma forma, a compensação será suficiente. Aqueles que aceitam, muitas vezes sem ter consciência disto, que é impossível realizar os seus desejos - e, logo, que é inútil lutar por si mesmo - geralmente terminam lutando por um ideal ou por uma causa. Mas ainda é possível lutarmos por nós mesmos (ou pelo menos deve valer a pena tentar!); então é crucial que busquemos mudanças não em nome de alguma doutrina ou grande causa, mas em nosso próprio nome, para que possamos viver vidas mais significativas. De forma semelhante, devemos antes e acima de tudo alterar os conteúdos de nossas vidas de uma maneira revolucionária, ao invés de lutarmos por mudanças históricas mundiais que não poderemos presenciar. Desta forma evitaremos os sentimentos de inutilidade e alienação que surgem quando acreditamos que é necessário "nos sacrificarmos pela causa", e, em vez disso, viver para vivenciar os frutos do nosso trabalho... em nossos próprios trabalhos.