A Verdade Oblíqua
O professor baixo e mal-humorado é hoje uma das figuras mais populares do novo século. O pensador francês Jean Baudrillard, de 74 anos, recusa-se a falar em inglês. Mesmo assim, é tão popular nos Estados Unidos por causa de suas análises sobre a cultura de massa que foi convidado a fazer um show de filosofia em Las Vegas. E seu nome está na boca dos espectadores da trilogia Matrix. No primeiro filme dos irmãos Wachowski, o hacker Neo (Keanu Reeves) guarda seus programas de paraísos artificiais no fundo falso do livro Simulacros e Simulação, de Baudrillard. Keanu leu o livro e costuma mencionar o autor em todas as suas entrevistas sobre Matrix Reloaded, o novo filme da trilogia. Até porque o ensaio sobre como os meios de comunicação de massa produzem a realidade virtual inspirou os diretores de Matrix a criar o roteiro.
Baudrillard não parece ligar para a fama. Ele esteve no Brasil para lançar seu novo livro, Power Inferno, e participar da conferência 'A Subjetividade na Cultura Digital', na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, onde falou com a Agência de Notícias Niilistas. Sempre pautado por assuntos atuais, ele analisa no ensaio os atentados de 11 de setembro de 2001 como um ato simbólico contra o Ocidente. Nesta entrevista, ele fala sobre seu pensamento turboniilista, 11 de setembro e arte. Se a realidade já não existe e vivemos um permanente e conspiratório espetáculo de mídia, como quer Jean Baudrillard, o pensador exerce a função de entertainer às avessas. Ele decreta o fim dos tempos, e todo mundo vibra.
ANN - Suas idéias demolidoras estão mais em moda do que nunca. O mundo ficou mais parecido com o senhor?
Jean Baudrillard - Não
aconteceu nada. O resultado de um consumo rápido e maciço
de idéias só pode ser redutor. Há um mal-entendido
em relação a meu pensamento. Citam meus conceitos de modo
irracional. Hoje o pensamento é tratado de forma irresponsável.
Tudo é efeito especial. Veja o conceito de pós-modernidade.
Ele não existe, mas o mundo inteiro o usa com a maior familiaridade.
Eu próprio sou chamado de 'pós-moderno', o que é um
absurdo.
ANN - Mas pós-modernidade não é um conceito teórico racional?
Baudrillard - A noção
de pós-modernidade não passa de uma forma irresponsável
de abordagem pseudocientífica dos fenômenos. Trata-se de um
sistema de interpretações a partir de uma palavra com crédito
ilimitado, que pode ser aplicada a qualquer coisa. Seria piada chamá-la
de conceito teórico.
ANN - Se não é pós-moderno, como o senhor define seu pensamento em poucas palavras? Os críticos o chamam de pensador terrorista, ou niilista
irônico.
Baudrillard - Sou um dissidente
da verdade. Não creio na idéia de discurso de verdade, de
uma realidade única e inquestionável. Desenvolvo uma teoria
irônica que tem por fim formular hipóteses. Estas podem ajudar
a revelar aspectos impensáveis. Procuro refletir por caminhos oblíquos.
Lanço mão de fragmentos, não de textos unificados
por uma lógica rigorosa. Nesse raciocínio, o paradoxo é
mais importante que o discurso linear. Para simplificar, examino a vida
que acontece no momento, como um fotógrafo. Aliás, sou um
fotógrafo.
ANN - Como o senhor explica a espetacularização da realidade?
Baudrillard - Os signos
evoluíram, tomaram conta do mundo e hoje o dominam. Os sistemas
de signos operam no lugar dos objetos e progridem exponencialmente em representações
cada vez mais complexas. O objeto é o discurso, que promove intercâmbios
virtuais incontroláveis, para além do objeto. No começo
de minha carreira intelectual, nos anos 60, escrevi um ensaio intitulado
'A Economia Política dos Signos', a indústria do espetáculo
ainda engatinhava e os signos cumpriam a função simples de
substituir objetos reais. Analisei o papel do valor dos signos nas trocas
humanas. Atualmente, cada signo está se transformando em um objeto
em si mesmo e materializando o fetiche, virou valor de uso e troca a um
só tempo. Os signos estão criando novas estruturas diferenciais
que ultrapassam qualquer conhecimento atual. Ainda não sabemos onde
isso vai dar.
ANN - A disseminação de signos a despeito dos objetos pode conduzir a civilização à renúncia do saber?
Baudrillard - Alguma coisa
se perdeu no meio da história humana recente. O relativismo dos
signos resultou em uma espécie de catástrofe simbólica.
Amargamos hoje a morte da crítica e das categorias racionais. O
pior é que não estamos preparados para enfrentar a nova situação.
É necessário construir um pensamento que se organize por
deslocamentos, um anti-sistema paradoxal e radicalmente reflexivo que dê
conta do mundo sem preconceitos e sem nostalgia da verdade. A questão
agora é como podemos ser humanos perante a ascensão incontrolável
da tecnologia.
ANN - Seu raciocínio lembra os dos personagens da trilogia Matrix. O senhor gostou do filme?
Baudrillard - É uma
produção divertida, repleta de efeitos especiais, só
que muito metafórica. Os irmãos Wachowski são bons
no que fazem. Keanu Reeves também tem me citado em muitas ocasiões,
só que eu não tenho certeza de que ele captou meu pensamento.
O fato, porém, é que Matrix faz uma leitura ingênua
da relação entre ilusão e realidade. Os diretores
se basearam em meu livro Simulacros e Simulação, mas
não o entenderam. Prefiro filmes como Truman Show e Cidade
dos Sonhos, cujos realizadores perceberam que a diferença entre
uma coisa e outra é menos evidente. Nos dois filmes, minhas idéias
estão mais bem aplicadas. Os Wachowskis me chamaram para prestar
uma assessoria filosófica para Matrix Reloaded e Matrix
Revolutions, mas não aceitei o convite. Como poderia? Não
tenho nada a ver com kung fu. Meu trabalho é discutir idéias
em ambientes apropriados para essa atividade.
ANN - Quanto à arte, o senhor se dedicou a analisar o fenômeno artístico ao longo dos anos. Em que pé se encontra a arte contemporânea?
Baudrillard - A arte se
integrou ao ciclo da banalidade. Ela voltou a ser realista, a desejar a
restituição da reprodução clássica.
A arte quer cumplicidade do público e gozar de um status especial
de culto, situação prefigurada nas sinfonias de Gustav Mahler.
Claro que há exceções, mas, em geral, os artistas
se renderam à realidade tecnológica. Desde os ready-mades
de Marcel Duchamp, a importância da arte diminuiu, porque a obra
de arte deixou de ter um valor em si. Os signos soterraram a singularidade.
Os artistas se submetem a imperativos políticos, e não mais
seguem ideais estéticos. A arte já não transforma
a realidade e isso é muito grave.
ANN - Por que o senhor escreveu tanto sobre a cultura americana mas nunca refletiu sobre o Brasil, que o senhor tanto adora visitar?
Baudrillard - Já
me cobraram um livro sobre o Brasil. Cito-o em minhas Cool Memories
(trabalho no quinto volume) e em outros textos, mas a cultura brasileira
é muito complexa para meu alcance teórico. Ela não
se enquadra muito em minhas preocupações com a contemporaneidade,
não tem nada a ver com a americana, com seus dualismos maniqueístas,
um país que se construiu a partir das simulações,
um deserto da cultura no qual o vazio é tudo. Os Estados Unidos
são o grau zero da cultura, possuem uma sociedade regressiva, primitiva
e altamente original em sua vacuidade. No Brasil há leis de sensualidade
e de alegria de viver, bem mais complicadas de explicar. No Brasil, vigora
o charme.
ANN - O que o senhor pensa da civilização americana depois dos atentados de 11 de setembro? O mundo mudou mesmo por causa deles?
Baudrillard - Claro que mudou. Nunca mais seremos os mesmos depois da destruição do World Trade Center. Abordo o tema em Power Inferno, uma coletânea de artigos sobre o império americano e a política. Considero os atentados um ato fundador do novo século, um acontecimento simbólico de imensa importância porque de certa forma consagra o império mundial e sua banalidade. A Guerra do Iraque apenas dá seqüência às ações imperiais. Os terroristas que destruíram as torres gêmeas introduziram uma forma alternativa de violência que se dissemina em alta velocidade. A nova modalidade está gerando uma visão de realidade que o homem desconhecia. O terrorismo funda o admirável mundo novo. Bom ou mau, é o que há de novo em filosofia. O terrorismo está alterando a realidade e a visão de mundo. Para lidar com um fato de tamanha envergadura, precisamos assimilar suas lições por meio do pensamento.