A anarquia

De Protopia
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Liev Tolstoi
Versão em inglês

A anarquia

Os anarquistas estão certos em tudo: na negação da ordem existente e na afirmação que, sem Autoridade não poderia haver pior violência que aquela da Autoridade sob as condições existentes. Eles estão errados apenas em pensar que a anarquia pode ser instituída por uma revolução violenta. Mas será instituída apenas por haver mais e mais pessoas que não requerem a proteção do poder governamental e por haver mais e mais pessoas que irão se envergonhar de aplicar este poder.

"A organização capitalista vai passar para as mãos dos trabalhadores, e então não haverá mais opressão destes trabalhadores, e nem desigual distribuição de renda."[Marxista]

"Mas quem vai estabelecer os trabalhos; quem vai administrá-los?"[Anarquista]

"Eles seguirão por conta própria; os próprios trabalhadores arranjarão tudo."[Marxista]

"Mas a organização capitalista foi estabelecida apenas porque, para cada caso prático, há necessidade de administradores munidos de poder. Se houver trabalho, haverá liderança, administradores com poder. E quando há poder, haverá abuso dele - a mesma coisa contra qual você está lutando agora."[Anarquista]

***

Para a questão, como viver sem um Estado, sem tribunais, exércitos, e assim por diante, uma resposta não pode ser dada, porque a questão está mal formulada. O problema não é como organizar um Estado depois do padrão de hoje, ou depois de um novo padrão. Nem eu, nem nenhum de nós, é designado para responder essa questão.

Mas, embora voluntariamente, ainda inevitavelmente temos que responder a questão, como devo agir perante o problema que sempre surge diante de mim? Devo submeter minha consciência aos atos acontecendo ao meu redor, devo me proclamar de acordo com o Governo, que enforca homens errantes, manda soldados para assassinar, desmoraliza nações com ópio e bebidas, e assim por diante, ou devo submeter minhas ações à consciência, i.e., não participar no Governo, ações do qual são contrárias à razão?

O que será o resultado disso, que tipo de Governo haverá - disso tudo eu não sei nada; não que eu não deseje saber; mas não posso. Eu só sei que nada mal pode resultar se eu seguir a orientação superior da sabedoria e do amor, ou amor sábio, que está implantada em mim, assim como nada mal surge da abelha que segue o instinto implantado nela, e voando com o enxame para fora da colmeia, devemos dizer, voa para a ruína.[1] Mas, repito, eu não desejo e não posso julgar sobre isso.

Nisso precisamente consiste o poder do ensinamento do Cristo e não é porque Cristo é Deus ou um grande homem, mas porque Seu ensinamento é irrefutável. O mérito do Seu ensinamento consiste no fato de que transferiu a questão do domínio da dúvida eterna e das conjecturas para o chão da certeza. Você é um homem, um ser racional e bondoso, e você sabe que hoje ou amanhã você vai morrer, desaparecer. Se houver um Deus, então você irá até Ele e Ele pedirá uma conta dos seus atos, se você agiu de acordo com a Sua lei, ou, pelo menos, com as altas qualidades implantadas em você. Se não houver nenhum Deus, você considera a razão e o amor como as qualidades mais elevadas, e precisa submeter a elas suas outras inclinações, e não permitir que se submetam a sua natureza animal - aos cuidados sobre os bens da vida, ao medo de aborrecimento e de calamidades materiais.

A questão não é, repito, que comunidade será a mais segura, a melhor - a que é defendida por exércitos, canhões, forcas ou a que não é tão salvaguardada. Mas existe apenas uma questão para o homem, e dela é impossível fugir: "Irá você, um ser bom e racional, tendo por um momento aparecido neste mundo, e a qualquer momento passível a desaparecer - você irá tomar parte no assassinato de homens errantes ou homens de uma raça diferente, você irá participar do extermínio de nações inteiras de assim-chamados selvagens, você irá participar da deterioração artificial de gerações de homens por meio do ópio e de bebidas por causa do lucro, você irá participar de todas essas ações, ou mesmo estar de acordo com aqueles que as permitem, ou você não vai?"

E não pode haver senão uma resposta a essa pergunta para aqueles a quem ela se apresentou. Quanto a que resultará disso, eu não sei, porque não me é dado saber. Mas o que deveria ser feito, eu sei inequivocamente. E se você perguntar: "O que vai acontecer?", então eu respondo que o bem certamente acontecerá; porque, agindo da maneira indicada pela razão e pelo amor, eu estou agindo de acordo com a mais alta lei conhecida para mim. A situação da maioria dos homens, iluminada pela verdadeira iluminação fraternal, no presente é esmagada pela fraude e astúcia dos usurpadores, que estão os forçando a arruinar suas próprias vidas - essa situação é terrível e parece sem esperança.

Somente duas possibilidades apresentam-se, e ambas falham. Uma é destruir a violência pela violência, pelo terrorismo, dinamites e punhais como nossos Niilistas e Anarquistas tentaram fazer, destruir essa conspiração de Governos contra nações, a partir de fora; a outra é chegar a um acordo com o Governo, fazendo concessões a ele, participando dele, para gradualmente desembaraçar a rede que está prendendo as pessoas, e para libertá-las. Ambas essas possibilidades falham. Dinamite e punhal, como a experiência já mostrou, apenas causam reação, e destrói o poder mais valioso, o único a nosso comando, aquele da opinião pública.

A outra possibilidade falha, porque os Governos já aprenderam o quão longe eles podem permitir a participação dos homens que desejam reformá-los. Eles admitem apenas aqueles que não transgridem, o que não é essencial; e eles são muito sensíveis quanto a coisas nocivas a eles - sensíveis porque o assunto afeta sua própria existência. Eles admitem homens que não compartilham suas opiniões, e que desejam reforma, não só para satisfazer as demandas desses homens, mas também em seu próprio interesse, no do Governo. Esses homens são perigosos aos Governos se eles permanecem fora e revoltam-se contra eles - opondo aos Governos o único instrumento efetivo que os Governos possuem - a opinião pública; eles precisam portanto tornar esses homens inofensivos, atraindo eles por meio de concessões, em ordem de torná-los inócuos (como micróbios cultivados), e então fazê-los servir aos objetivos dos Governos, i.e., oprimir e explorar as massas.

Ambas essas possibilidades sendo firmemente falhas e inatingíveis, o que resta para ser feito?

Usar a violência é impossível; só causaria reação. Juntar-se às fileiras do Governo também é impossível - seria apenas tornar-se seu instrumento. Assim um caminho resta - combater o Governo por meios de pensamento, discursos, ações, vida, nem cedendo ao Governo, nem juntando-se a suas fileiras e assim aumentando seu poder.

Apenas isso é preciso, e certamente terá sucesso.

E essa é a vontade de Deus, o ensinamento de Cristo. Só pode haver uma revolução permanente - a moral: a regeneração do homem interior.

Como essa revolução acontecerá? Ninguém sabe como acontecerpa na humanidade, mas todo homem a sente claramente em si mesmo. E ainda no nosso mundo todos pensam em mudar a humanidade, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo.


Leo Tolstoi

1900


Notas

  1. A opinião de Tolstoi parece ser que a morte é inevitável e não devemos temê-la.