A cultura da imanência

De Protopia
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Ricardo Barreto e Paula Perissinotto

E-spaço


«"O máximo em dar forma... é chegar ao amorfo"»
- Sun Tzu


Algo radical, para alguns ainda imperceptível, começa a surgir na cultura mundial deixando atônitos até os mais sábios. Tratam-se de mudanças profundas que vêm ocorrendo no seio das sociedades pós-modernas, ocasionando transformações onde as consequências são imprevisíveis e incomensuráveis.

Vivesse no limiar de catástrofes cujas mudanças de paradigmas escapam quanto a sua definição; instituições até então sólidas pelo peso da tradição histórica poderão desaparecer pelo sopro das intempéries culturais. Em todas as disciplinas: das matemáticas às artes,da biologia à economia, notam-se modificações de sentimento profundo quanto às convicções até então adquiridas, ocasionando uma crise generalizada na cultura contemporânea.

Permanece-se ainda sob o prisma histórico da cultura da transcendência, porém seu predomínio se mostra ameaçado. Das idéias platônicas, passando pela metafísica aristotélica, passando pelo Leviatã hobbeseano, até os ideais teleológicos da modernidade, a cultura da transcendência havia imposto a univalência e a supercodificação às suas instituições e aos fluxos culturais que nela emergiram, produzindo assim o estriamento de todos os seus aspectos culturais. Compartilhou com todas as formas de soberania constituindo e consolidando seu poder através de suas instituições culturais: academias, museus, universidades. A cultura da transcendência era uma cultura para “poucos” em detrimento dos “muitos”. Na sua versão moderna, entretanto, agora sob o interesse do capital, ela inventou uma simulação cultural, um engodo perverso que se chamou cultura da transcendência para as massas.

Esta pseudocultura, através dos meios de comunicação de massa, sustentava a maioria dos comportamentos e princípios da cultura da transcendência dos “poucos”, não havendo nenhuma modificação quanto aos procedimentos supercodificantes impostos aos “muitos” agora atomizados “culturalmente” e tragicamente desconectados entre si, ligados apenas ao media analógico de informação unilateral, na produção homogenizante de suas subjetividades. Tudo ocorria sustentado pelo desenvolvimento tecnológico que parecia corroborar com a despotencialização dos “muitos”, contudo a aceleração tecnológica levou a uma dobragem catastrófica inesperada que rompeu com o sistema de linearidade na qual se fundamentava a cultura da transcendência. Sistemas não-lineares começaram a emergir por todos os lados. Matemáticas fractais, sistemas de complexidade dinâmica , física do caos, micronarrativas e agonística das linguagens anunciavam o fim do mundo linear provocando uma crise paradigmática no interior da cultura da transcendência.

Esta crise chamou-se pós-modernidade, provavelmente o último movimento da cultura da transcendência. Apesar de sua polivalência, ela era impotente para romper com as axiomáticas transcendentes limitando-se a degladiar com a modernidade agonizante. Ela foi um grito de desespero, todavia um grito morto. A multiplicação dos sistemas não-lineares havia provocado um outro fenômeno paralelo à pós-modernização: um conjunto de procedimentos chamados de digitalização. Com ela a cultura da imanência pode proliferar no cenário mundial.

Na história da cultura ocidental diversas foram as tentativas de suplantação da cultura da transcendência em prol da imanência. Do deus como mundo dos estóicos e do espinosismo ao espírito dionisíaco dos nietzscheanos, a tendência cultural da imanência havia ficado marginal e relegada às margens da história, mas com o advento das redes virtuais a tendência à imanência pode pela primeira vez constituir um mundo para a sua ação. As produções culturais on-line são as primeiras feitas num mundo virtual independente e paralelo ao mundo físico-cultural, fora de suas leis e fora de seus códigos, mas fora também da cultura das artes transcendentes tal como a entendemos.

As redes virtuais constituem um plano de imanência. Elas são transcendentais. Tanto as produções digitais como a cultura digital fazem parte do plano de imanência cuja proliferação as precipitam numa potencialização sem precedentes. Há um processo constante de heterogenização que se dá principalmente por replicações livres e por procedimentos de alteridade através de devires descodificados. Disto advém o principal acontecimento da cultura da imanência que é o anarqui-culturalismo, ele é o jogo livre entre todas as performances que ocorrem no mundo da imanência, libertando-se das instituições transcendentes baseadas na autoridade e na unicidade provocando por todos os lados um descontrole que não se pode capturar.

Deste modo, só podemos falar de "arte digital" no sentido metafórico, pois no anarqui-culturalismo a "arte digital" significa todas as demais disciplinas potencialmente intercruzadas num processo de transcodificação. O anarqui-culturalismo ocorre, quando a autoridade cultural não pode mais exercer nenhum poder sobre as manifestações culturais ou sobre os seus produtores; quando os seus produtos não são mais comercializados; quando o valor do produto cultural não repousa sobre a sacralização ou sobre a propriedade, mas na sua capacidade de potencializar os agentes que com ele se conectam; quando o produtor cultural liberta-se de seu ego, liberta-se de seu nome, liberta-se da pretensão inócua de entrar para a história e, então, ao se desterritorializar pode participar de um plano mais complexo, onde o sentido construído pelo autor é substituído pelas estratégias de múltiplos sentidos em co-autoria com seus interagentes; quando o produto cultural deixa de ser linear e analógico e passa a ser um sistema ubíquo de complexidade interativa enfatizando seus aspectos imersivos e bioculturais, tornando-se portanto máquina de transformação cultural; quando não há mais o mundo próprio das artes, das ciências ou de qualquer outra disciplina, mas o jogo livre entre seus códigos, o jogo livre das diagonais que atravessam todos os planos, todas as disciplinas e que entrelaçam as multiplicidades heterogêneas num jogo livre das conexões.

A cultura da imanência procede por replicação. Este é um acontecimento que aproxima o mundo virtual das redes ao mundo da vida, tanto um quanto o outro são digitais. Os clones; a auto-poesis; os vírus, são comuns a ambos os mundos. A replicação é o seu modo de produção e de invenção. A noção de que toda a vida evolui pela sobrevivência diferencial de entidades replicadoras passa a ser comum à cultura digital. Não são as espécies, os gêneros ou as disciplinas que importam, mas os genes digitais pelas quais eles se replicam. Aqueles surgem dos códigos ; a errância, e a recombinação, pelas mudanças topológicas possibilitando a emergência de novos devires bioculturais, produzindo o fluxo inconstante da bio-digital-esfera. A vida na cultura não é mais uma metáfora, ela é no sentido literal. No mundo da biocultura imanente digital a fixidez e a constante são apenas transitórias. Não há constantes, mas variáveis de variáveis. Sua natureza tem o poder de esticar; deletar; cortar; torcer; recortar; estraçalhar; explodir; multiplicar; contaminar.

Os instrumentais digitais foram elaborados para potencializar as capacidades transformadoras. A contemplação transcendente, seja do belo, seja do sublime cede lugar à interação imanente participativa e transformadora. Toda produção cultural está ali para ser destruída, sua duração depende apenas de sua replicação, pois ela poderá ser alterada, dilacerada e esquartejada e quando isto acontece surgem novas produções digitais que por sua vez se conectam a outras , mas quando falamos de produções digitais falamos de redes. Cada produção digital, pela suas interconecções imanentes, se envolve numa rede , então pode-se considerar também que cada interagente possui uma rede de imanência. Redes digitais conectando-se com redes sinápticas. Imanência de ambas as redes. A cultura da imanência ultrapassa a relação sujeito-objeto. A rede é transcendental, porém sem sujeito. O objeto não é mais a coisa, mas apenas fluxos, performances. Não se trata portanto de fruição de uma obra de arte por parte do sujeito. O que é importante é que a performance esteja passando pelas redes não-lineares e que vá das redes digitais às redes sinápticas e vice-versa.

Foi uma nova mentalidade não-linear que havia inspirado aos construtores e engenheiros digitais a construírem a interface entre ambas as redes a qual chamaram de hipertexto digital. Ele passou a ser a condição sine qua non sem a qual não haveria comunicabilidade não-linear. O hipertexto digital, no entanto não é uma estrutura, esta é uma visão lingüística transcendente e linear sobre o hipertexto digital. Ele é uma máquina, uma máquina digital de performance não-linear baseada na interface do mouse.

Ele não tem nada a ver com texto, mas sim com gatilhos e performances, assim há dois procedimentos evolutivos nas hipermáquinas: os gatilhos que são botões que desencadeiam as performances e garantem a não-linearidade pela simultaneidade extensiva topológica. Os múltiplos gatilhos constituem assim os campos de comutação, porém no seu desenrolar tenderão a desaparecer incorporando-se ao próprio desempenho das performances. As performances são as ações produzidas pelos interagentes e pelas programações, no caso desta última encontraremos atores e scripts, mas também outros gatilhos que executam estas ações. Assim, todas as medias passam a ser incorporadas às hipermáquinas digitais e também se tornam pela digitalidade outras máquinas não-lineares: máquinas imagéticas; máquinas textuais; máquinas musicais; mas também máquinas simuladoras; máquinas inteligentes; máquinas pensantes; máquinas emotivas; máquinas vivas.

Com o crescimento das redes e a multiplicação das hipermáquinas digitais conectadas entre si surge a megahipermáquina digital por onde circulam as performances; os telecomandos; os valores; os conhecimentos; a educação; as aranhas. Este é o destino das produções culturais compartilhadas, que produzem uma desterritorialização nas produções culturais ampliando a criatividade coletiva e aumentando a heterogenização cultural. Assim, tem-se uma megaprodução digital formada por múltiplas produções micrológicas concebidas por diversos artistas, cientistas, filósofos, ativistas culturais espalhados pelo mundo e que não se saberia onde uma produção cultural começa e a outra acaba: 1) compartilhamento com producões culturais já publicadas; 2) compartilhamento dos envolvidos para concepção de uma produção cultural inédita. Em ambos os casos criando uma rede de crescimento indeterminado.

Além destas hipermáquinas e megahipermáquinas, há também as máquinas-arquivos que surgiram para preencher as necessidades de acessibilidade aos conteúdos que se encontram nas redes digitais. Existem centenas delas, mas apenas algumas são utilizadas pelos usuários digitais, contudo os máquinas-arquivos não preenchem sua função principal, elas deixam de cumprir aquilo que elas se propõem: a acessibilidade sobre qualquer assunto, sobre qualquer matéria que se encontre conectada à rede. A inacessibilidade acontece pela dificuldade de se encontrar algo num mundo cujo número de conteúdos sobre vários assuntos é exponencial e astronômico, mas também pela forma de classificação e de prioridades que as máquinas-arquivos produzem, ainda que, para contornar estes limites, algumas funcionem com uma performance booleana, apesar da maior abrangência continuam sendo insuficientes. Assim, um volume enorme de materiais digitais está inacessível, apesar de estar conectado. Só a ponta do iceberg está geralmente disponível, a maior parte está na profundidade digital a qual poderíamos chamar de inconsciente digital. Por um lado o inconsciente digital é importante, pois produz uma opacidade e um alisamento digital na rede que impossibilita o controle pelos aparelhos de Estado. As polícias digitais só podem atingir a superfície da rede; por outro lado o inconsciente das redes digitais passa a ser vital no relacionamento com os agentes da cultura digital, pois novos mecanismos podem ser estabelecidos para o afloramento dos materiais inacessíveis estabelecendo uma força transformativa de combate, não nos esqueçamos que os cripto-anarquismos deram condições para que as mensagens enviadas pela rede mantivessem sua privacidade.

Outra força que corrobora com isto é a força do gratuito que vem desestabilizando o capital digital com consequências imprevisíveis para o mercado mundial. Para cada produto digital a ser comercializado, surge um fac-símile, às vezes melhor, porém gratuito. Não se tratam aqui de produtos piratas, mas ao contrário, de produtos elaborados por programadores ou agentes culturais que não querem vender ou distribuir seus produtos com alguma forma de pagamento, existem também programas que além de nada custarem , seus arquivos são abertos possibilitando assim que todos possam contribuir para o seu desenvolvimento, testemunhando a força da criatividade coletiva.

Tudo isto revela a natureza anarqui-cultural das redes digitais. Outras formas estão sendo adotadas principalmente nas áreas da educação. Educação gratuita digital e mundial, educação a distância que se funda no autodidatismo e na auto-iniciativa de seus interagentes, desmobilizando ensinos acadêmicos baseados na disciplina e no controle e geralmente suportados pelo Estado e pela Igreja. Assim, o anarqui-culturalismo pode vir a fazer frente, não só à sociedade de controle como também à sociedade do espetáculo.

A cultura da imanência e da participação imersiva constituem a possibilidade de uma agonística com respeito aos mass medias analógicos que bestializam milhares de pessoas na introjeção de "memes" e de programas sígnicos com a finalidade perversa de comercialização de seus produtos. Lembremos que as redes virtuais podem absorver tudo. Não há um controle do que possa ocorrer, apesar das tentativas de controlá-la, mas sempre haverão meios e estratégias de escapar deste controle imposto pela cultura da transcendência, os hackers multiplicam-se à medida que são controlados.

A natureza das redes é de imanência anárquica. Ela não pertence a nenhuma nação e a nenhum estado político. Ela é pura potencialidade. Os sistemas jurídicos não têm competência sobre ela, pois ela escapa do domínio dos estados, contudo ela pode absorver modos que lhe são estranhos sem alterar ou colocar em crise a sua natureza, assim, ela pode ser tratada de maneira analógica (linear), neste caso há um achatamento de seu potencial, pois os tratamentos são lineares e sobrecodificados pelos seus autores ou produtores, isto ocorre: ou pelo desconhecimento das potencialidade das hipermáquinas, ou por simples reprodução dos comportamentos analógicos com a intenção de massificação. Em ambos os casos, todo o potencial que os instrumentos digitais oferecem são desprezados por uma mentalidade extemporânea que não rompeu com os processos lineares de pensar permanecendo territorializados no mundo da transcendência; por outro lado, o avanço tecno-digital e a cultura da imanência trazem uma outra mentalidade. Ela só pode ocorrer se houver uma desconstrução nos procedimentos educacionais acadêmicos e uma desmemetização dos comportamentos e pragmáticas impostos à subjetividade contemporânea.

É de importância vital que as pessoas saibam produzir as hipermáquinas, os hipertextos e não apenas manipulá-los. Só haverá uma nova mentalidade, além da atual baseada na escrita, se houver um modo de pensar não-linear e para isto é necessário uma pragmática hipertextual. Os hipertextos deveriam estar no currículo de todas as escolas primárias do mundo. Eles são a propedêutica para a cultura digital, daí a importância de uma política de imanência cultural que dê condições não apenas da inclusão digital àqueles que são desfavorecidos, mas principalmente, da inclusão na cultura digital e isto só pode acontecer pela pragmática das performances digitais que começam com o aprendizado dos hipertextos, e também com a acessibilidade às produções culturais que estão sendo desenvolvidas nas redes. Neste sentido, há vários eventos como os festivais digitais, que conseguem reunir um grande número de produções culturais envolvendo a multiplicidade de acontecimentos que atravessam as redes, oferecendo ao público acesso às problemáticas atuais que produtores, programadores e pesquisadores vêm desenvolvendo. Há outros, no entanto, que vêm expondo as produções digitais como mera novidade e geralmente do prisma da unicidade analógica da cultura da transcendência.

Não nos iludamos ao achar que o grande público esteja participando destas grandes mudanças digitais, pois por um lado as condições econômicas impedem esta aproximação e por outro existe a massificação imposta a ele principalmente pelos meios de massa que obliteram a inclusão na cultura digital, apesar de muitas vezes estarem conectados à rede, mas não na cultura digital, fixos em programas que são produtos dos mass medias. Várias instituições culturais tradicionais tais como: galerias, museus, etc., vêm tentando expôr obras virtuais e quando isto acontece o fazem pelo ângulo transcendente da curadoria. Ora, estas instituições estão sobre a cultura da transcendência que opera com uma axiomática cultural, ou seja: com princípios e com conceitos, baseando-se na autoridade discursiva, nas metanarrativas e nas metalinguagens. Tanto a crítica de arte como a curadoria operam como aparelhos de captura cultural na medida em que seus discursos são sempre metalingüísticos, discursos transcendentes que subsumem aos conceitos, as obras de arte no intuito de submetê-las, semiotizá-las ao julgo da autoridade, ao julgo dos axiomas, estando assim as obras e os artistas sempre em segundo plano e o público submetido à contemplação passiva mediante de tal espetáculo cultural.

A cultura da imanência opera de outro modo, ela é a cultura do virtual (potência), das redes digitais na agonística das micronarrativas; ela não opera por aparelhos, pois são máquinas culturais de guerra de transformação permanente de todos os códigos. Ao invés de curadorias e curadores a cultura da imanência opera com organizadores estratégicos que trabalham não com uma axiomática, mas com uma rede de performances, uma rede de problemáticas que incrementam a potencialização dos interagentes e do grande público; ao invés de exposições contemplativas, propõe-se um ecossistema digital constituído de estratégias para contextualizar o público nas problemáticas técnico-biodigitais. Uma rede de performance que entrelaça a apresentação dos trabalhos dos produtores culturais, da manipulação interativa e inteligente pelo público, da conversação do público com os produtores, da apresentação de trabalhos teóricos pelos produtores...Haveria assim um ambiente ecocultural de imersão interativa oferecendo as condições de espectadores passivos poderem se transformar em interagentes ativos e assim produzirem a suas próprias conexões culturais. Os “muitos” atomizados tornando-se conectados culturamente entre si formando uma nanotecnologia sociocultural[1].


Referências

  1. Conceito do File - Festival Intenacional de Linguagem Eletrônica.

Fonte: File – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica – 2003 (http://www.file.org.br/file2003ins/arquivo.htm#)


Rizoma.png   Este texto foi originalmente publicado por Rizoma.net.



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