Abominação
Não é difícil para as pessoas que dominam outras justificarem o seu poder: elas só precisam dominar e abusar de suas vítimas por tempo suficiente para que ninguém consiga imaginar que os dominados são responsáveis por si mesmos. Nas primeiras gerações de colonização, é necessário subjugar os selvagens com rifles; depois que eles tiverem aprendido a temer e obedecer, as armas podem ser mantidas fora da vista, até que finalmente os conquistados são integrados na ordem social como pedintes e empregados por sua própria vontade. No final, os conquistadores podem desfilar pelo mundo como pessoas que fazem o bem: eles dão empregos para os pobres (os contratando para cultivarem a própria terra que todos já possuíram como bem comum), remédios para os doentes (derivados do ambiente que foi retirado deles), e mediação entre as tribos que caso contrário estariam matando-se umas às outras (com armas vendidas pelos colonizadores, sobre conflitos criados pela sua colonização).
Todo governo em poder hoje descende em linha direta desta brutalidade, por mais que eles se distanciem dela. Uma vez que os selvagens estejam resignados à nova ordem, eles podem ter permissão de comer nas mesmas mesas que seus governantes ― se eles puderem pagar a conta ― e até mesmo concorrer a um cargo no Congresso; os mortos podem ser retratados em selos da mesma forma que caçadores penduram troféus nas suas paredes. Democracia é o silêncio na cidade após o massacre, o tratado de paz renunciando a independência. Se parece que não somos capazes de governarmos, é porque o governo têm nos debilitado sistematicamente.
Na medida do possível, aqueles que detém o poder mantém esta fachada de paz; mas toda vez que um indivíduo ou um povo sai da linha, os embargos são restaurados e as armas são sacadas novamente. Privado de alimento, isolado, humilhado, derrotado, um rebelde não consegue deixar de voltar-se contra si mesmo. Force as pessoas a viver em campos de concentração: elas se tornarão homens-bomba, e todos entenderão porque os campos são necessários. Puna as crianças pelos seus impulsos pela liberdade: quando eles se tornarem viciados em drogas, você pode exigir uma disciplina ainda mais dura para a próxima geração. Aquilo que é pronunciado como mal se torna mal; atrocidade gera atrocidade.
Aleijada e desgraçada, tornando realidade todos estereótipos e julgamentos de seus inimigos, a sonhadora perde a fé em si mesma. Os oprimidos raramente conseguem se sentir merecedores de uma luta por libertação: eles estão tão avacalhados, tão erráticos e se confundem facilmente, enquanto os poderosos são tão justos e bem informados. Em todo lugar onde brota uma flor em desafio à ordem estabelecida, nada resta depois além do seu oposto. Os generosos ficam pobres; os criativos e otimistas são levados ao desespero; os mais fiéis e corajosos acabam por trair uns aos outros. Acorrentada e delirante, cercade de clérigos do dobro da sua idade que a olham com desdém, Joana D'Arc mal consegue formar pensamentos, muito menos articular as visões paradisíacas que a levaram a lutar contra eles.
A abominação é o produto final de uma sociedade que reprime a diferença: o idiota gaguejante no banco dos réus, o desajustado que só consegue usar camisas-de-força, os indefensíveis e irrecuperáveis. Os monstros produzidos por nossa sociedade indicam os monstruosos desequilíbrios de poder que a caracterizam, e não a necessidade desses desequilíbrios ― mas eles servem como a prova mais importante para os seus defensores. O revolucionário deve ser um ideólogo sanguinário, um descontente imundo com inveja do sucesso dos outros, ou então, na melhor das hipóteses, uma figura solitária colhendo flores na via dolorosa pela qual ele caminha. De outra forma, outras pessoas poderiam se juntar a ele.
Caim aceita o julgamento que lhe foi pronunciado, mas inverte os valores sobre o qual ele é afirmado. Contra todos os conselhos, eles escolhe assumir a responsabilidade pelo que ele é, pelo que os outros o tornaram ― para se tornar, desafiando todos, o que eles dizem que ele é: um ladrão, um trapaceiro, uma besta, um demônio. A vergonha é a única coisa que separa o de cima e o de baixo: ele despreza essa separação, e reconhece o seu triunfo pela sua derrota, o seu valor pela sua imprestabilidade, a sua riqueza pela sua pobreza. Com esta inversão, ele sobrevive.
Seus acusadores não conseguem imaginar serem rotulados de ladrões, trapaceiros, bestas e demônios. É impensável. Estas alegações são brandidas como armas sob a premissa de que ninguém sobrevive a elas. Ao abraçá-las, Caim vai além do seu mundo, inaugurando uma nova escala de valores: O primeiro será o último, e o último será o primeiro.