Além da Democracia
"Apenas seja grato por viveres em uma democracia!"
Hoje em dia, a democracia domina o mundo. O comunismo está morto há muito tempo, todos os países de terceiro mundo que você vê na televisão fazem eleições, e os líderes mundiais se encontram para planejar a "comunidade global" da qual ouvimos tanto falar. Então por que não estão todos felizes? A propósito, por que tão poucas das pessoas que podem votar nos Estados
Unidos, o maior exemplo de democracia, não se dão ao trabalho de ir votar?
Será que a democracia, há muito tempo a palavra preferida por toda revolução e resistência, simplesmente não é democrática o suficiente? O que poderia ser mais democrático?
Toda criança pode crescer e se tornar o Presidente.
Não elas não podem. Ser Presidente significa ocupar uma posição de poder hierárquico, assim como ser um bilionário: para cada pessoa que é Presidente, têm de haver milhões de pessoas que não o são. Não é coincidência que bilionários e Presidentes costumam se dar bem; ambos existem no mundo que está fora do alcance ao resto de nós. Por falar em bilionários, nossa economia não é exatamente democrática ― o capitalismo distribui recursos em proporções absurdamente desiguais, e você tem que começar com algum recurso se você quer ser eleito.*
- - Vamos suspender todos os nosso receios sobre democracia por tempo suficiente para considerarmos se, caso ela fosse um método eficiente para as pessoas compartilharem o poder sobre suas vidas, ela poderia ser compatível com o capitalismo. Numa democracia, uma população informada deve votar de acordo com seu próprio interesse esclarecido ― mas no capitalismo quem controla o fluxo de informação senão os ricos executivos? Eles não podem evitar de manipular a cobertura de acordo com seus interesses de classe, e você não pode culpá-los, os jornais e redes de televisão que não cederam aos anunciantes corporativos que tanto alienam foram levados à falência há muito tempo atrás por competidores menos escrupulosos.
Da mesma forma, votar significa escolher entre opções, de acordo com as possibilidades que parecem mais desejáveis ― mas quem define as opções, quem estabelece o que é considerado possível, quem constrói os próprios desejos senão os ricos patriarcas das instituições políticas e seus sobrinhos em firmas de publicidade e relações públicas? Nos Estados Unidos, o sistema de dois partidos reduziu a política a escolher o menos pior de dois maus idênticos, ambos os quais respondem acima de tudo aos seus patrocinadores. É claro, os partidos discordam sobre exatamente quanto deve-se reprimir a liberdade ou investir em bombas ― mas alguma vez chegamos a votar para decidir quem controla os espaços "públicos" como shopping centers, ou se os trabalhadores merecem o produto bruto dos seus esforços, ou qualquer questão que possa mudar de verdade o modo como vivemos? Do modo como as coisas andam, a função essencial do processo democrático é limitar as aparências do que é possível para as poucas possibilidades discutidos pelos candidatos ao governo. Isto desmoraliza os dissidentes e contribui para a impressão geral de que eles são utópicos impotentes ― quando nada é mais utópico do que confiar em representantes da classe dona de propriedades para se dirigir aos males causados pela sua própria dominação, e nada pode ser mais impotente do que aceitar o sistema político deles como o único sistema político possível.
Basicamente, o mais transparentes dos processos políticos democráticos irá sempre ser pisoteado pelos assuntos econômicos como a posse de propriedades. Mesmo que pudéssemos reunir todo mundo, capitalistas e pessoas condenadas à prisão, em uma grande assembléia geral, o que evitaria que a mesma dinâmica que governam os mercados de invadirem este lugar sagrado? Enquanto os recursos forem distribuídos de maneira desigual, os ricos sempre poderão comprar os votos dos outros: tanto literalmente, ou prometendo uma fatia da torta, ou então por meio de propaganda e intimidação. A intimidação pode ser indireta ― "Esses radicais querem uma parte da propriedade que você suou para conquistar" ― ou aberta como as sangrentas lutas de gangues que acompanhavam as disputas eleitorais nos Estados Unidos do século XIX. Logo, mesmo na melhor das hipóteses, a democracia só vai servir aquilo a que se propõe se ela ocorrer entre aqueles que se opõem explicitamente ao capitalismo e dispensam seus prêmios ― e nesses círculos, o consenso faz muito mais sentido que o governo da maioria.
capitalismo + democracia = um dólar, um voto.
Mesmo que fosse verdade que qualquer um pode crescer e se tornar o Presidente, isso não ajudaria os milhões que não se tornam, que têm que viver na sombra deste poder. Este desequilíbrio é intrínseco à estrutura da democracia representativa, tanto no nível local como no topo. Os políticos profissionais de uma câmara de vereadores discutem assuntos do município e aprovam regulamentações o dia todo sem consultar os cidadãos da cidade, que têm que estar trabalhando; quando uma dessas leis desagrada os cidadãos, eles têm que usar o pouco tempo de lazer de que dispõem para contestá-la, e então voltar para o trabalho na próxima vez que a câmara se reunir. Na teoria, os cidadãos poderiam eleger uma câmara de vereadores diferente entre os políticos e aprendizes disponíveis, mas os interesses dos políticos como classe continuariam essencialmente em conflito com os seus ― além disso, fraudes eleitorais, cabresto, e lealdade partidária acéfala geralmente os previnem de fazer tal coisa. Mesmo no improvável cenário de que um governo completamente novo fosse eleito constituído por intenções legítimas de desfazer a desigualdade de poder entre políticos e cidadãos, eles estariam inevitavelmente a perpetuando pelo simples fato de aceitarem estes papéis no sistema ― pois o aparato político é própria base dessa desigualdade. Para obterem sucesso no seu objetivo, eles teriam que dissolver o governo e se juntar ao resto da população para reconstruir a sociedade de baixo para cima.
Mas mesmo que não houvessem Presidentes ou câmaras municipais, a democracia como a conhecemos ainda seria um empecilho à liberdade. Deixando a corrupção, o privilégio e a hierarquia de lado, o governo da maioria não só é inerentemente opressivo mas também paradoxalmente divisor e homogeneizador ao mesmo tempo.
A Tirania da Maioria
Se você já fez parte de uma minoria, e a maioria decidiu através do voto que você tinha que desistir de algo tão vital para você como a água e o ar? Você obedeceria? Quando tudo se resume a isso, alguém realmente acredita que faz sentido aceitar a autoridade de um grupo simplesmente porque eles estão em maior número? Nós aceitamos o governo da maioria porque não acreditamos que isso possa nos ameaçar ― e aqueles que são ameaçados já estão silenciados antes que qualquer pessoa possa ouvir os seus receios.
O cidadão mediano que diz ser respeitador das leis não se considera ameaçado pelo governo da maioria porque, conscientemente ou não, ele se percebe como detentor do poder e da autoridade moral da maioria: se não de fato, em virtude de ser um socialmente e politicamente "moderado", pelo menos na teoria, porque ele acredita que todos serão convencidos pelos seus argumentos se ele tiver a oportunidade de apresentá-los. A democracia governada pela maioria foi sempre baseada na convicção de que se todos os fatos forem conhecidos, todos poderiam ver que só há um curso de ação correto ― sem esta crença, não é nada além da ditadura do rebanho. Mas mesmo que "os" fatos possam ficar igualmente claros a todos, assumindo que tal coisa seja possível, as pessoas ainda teriam suas perspectivas, motivações e necessidades individuais. Precisamos de estruturas políticas que levem isto em conta, nas quais sejamos livres do governo da multidão assim como da ascensão da classe privilegiada.
Viver sob o governo democrático faz as pessoas pensarem em termos de quantidade, a se focar mais na opinião pública do que no que as suas consciências lhes dizem, a se verem como impotentes a menos que façam parte de uma massa. A raiz da democracia do governo da maioria é a competição: competição para persuadir todo mundo a tomar a sua posição, quer ou não ela seja do maior interesse de todos, competição para constituir maioria para obter o poder antes que os outros façam o mesmo ― e os perdedores (ou seja, as minorias) que se danem.* Ao mesmo tempo, o governo da maioria força aqueles que desejam o poder a apelarem para o mínimo denominador comum, iniciando uma corrida para baixo que recompensa o mais insosso, superficial e demagogo; na democracia, o próprio poder fica associado com a conformidade ao invés de com a individualidade. E quanto mais o poder se concentra nas mãos da maioria, menos o indivíduo consegue fazer sozinho, quer ele faça ou não parte da maioria.
quando pretende dar a todos uma oportunidade de participar, a democracia governada pela maioria oferece a justificativa perfeita para reprimir aqueles que não obedecem o que ela dita: se eles não gostam do governo, por que então eles mesmos não entram na política? E se eles não vencerem no jogo de construir uma maioria para obterem o poder, eles não tiveram a sua chance? Este é o mesmo pensamento de culpar as vítimas usado para justificar o capitalismo: se o lavador de pratos não está feliz com seu salário, ele deve trabalhar mais para que ele possa também ser o dono de sua própria rede de restaurantes. Claro, todos têm a oportunidade de competir, embora desigual ― mas e aqueles entre nós que não querem competir, que nunca quiseram que o poder fosse centralizado nas mãos de um governo em primeiro lugar? E se não nos importarmos em governar ou ser governados?
É para isso que serve a polícia ― e os tribunais, os juízes e as prisões.
- - O enfraquecimento dos perdedores e grupos excluídos é fundamental na democracia, em contraste às formas de tomada de decisões onde as necessidades de todos importam. É bem sabido que na antiga Atenas, o "berço da democracia", menos de um oitavo da população tinha permissão para votar, uma vez que mulheres, estrangeiros, escravos e outros não eram considerados cidadãos. Isso geralmente é visto como uma pequena imperfeição que o tempo corrigiu, mas poderíamos também concluir que a própria exclusão é a característica mais essencial e obedecida da democracia: milhões de pessoas que vivem nos Estados Unidos hoje não podem votar também, e as distinções entre cidadãos e não-cidadãos não se corroeram significativamente nos últimos 2500 anos. Todo dono de propriedades burguês pode citar mil razões porque não é aconselhável permitir que todas as pessoas cujos interesses estejam em jogo compartilhem a tomada de decisões, assim como nenhum chefe ou burocrata sonharia em dar aos seus empregados uma voz igual no seu local de trabalho, mas isto não a torna nem um pouco menos exclusiva. E se ― devemos pelo menos levantar a hipótese ― a democracia surgiu na Grécia não como um passo do Progresso Humano Rumo à Liberdade, mas como uma forma de deixar o poder fora de certas mãos? Democracia é a forma mais sustentável de manter a distinção entre os poderosos e os impotentes porque ela incentiva o maior número de pessoas possível a defender esta distinção. É por isso que a marca d'água da democracia ― sua propagação por todo o globo ― corresponde a desigualdes sem precedentes na distribuição de recursos e poder. Ditaduras são inerentemente intáveis: você pode massacrar, aprisionar e fazer lavagem-cerebral em gerações inteiras e suas crianças vão reinventar completamente a luta pela liberdade. Mas prometa a todo homem e oportunidade de ser um ditador, de ser capaz de forçar a "vontade da maioria" sobre seus concidadãos ao invés de buscar soluções para as desavenças como um adulto maduro, e você pode criar um front de interesse próprio destrutivo contra a cooperação e coletividade que tornam a liberdade individual possível. Melhor ainda se houverem ditaduras ainda mais opressivas à sua volta para serem apontadas como "a" alternativa, para que você possa glorificar tudo isto na retórica da liberdade.
O Governo da Lei
Mesmo que você não acredite na intenção delas de acabar com a inconformidade onde quer que ela apareça, você tem que reconhecer que as instituições legais não substituem a boa vontade, o respeito mútuo e a justiça. O exercício da "lei igualitária e justa", como é fantasiada pelos acionistas e senhorios cujos interesses ela protege, não oferece nenhuma garantia contra a injustiça; ela simplesmente cria uma outra área de especializações, nas quais o poder e a responsabilidade são cedidos a caros advogados e juízes pomposos. Ao invés de servir para proteger nossas comunidades e solucionar nossos conflitos, este arranjo assegura que as habilidades de resolver conflitos e se defender da comunidade atrofiem ― e aqueles cujas profissão é supostamente desencorajar o crime têm interesses em proliferá-lo, uma vez que suas carreiras dependem disto.
Ironicamente, nos dizem que precisamos dessas instituições para proteger os direitos das minorias ― mesmo que a função implícita dos tribunais, na melhor das hipóteses, seja impor a legislação da maioria sobre a minoria. Na verdade, uma pessoa só pode usar os tribunais para defender os seus direitos se ele puder reunir força suficiente numa moeda que eles aceitem; graças ao capitalismo, somente uma minoria pode fazer isso, então, de uma forma tortuosa, acaba que na verdade os tribunais existem para defender os direitos de pelo menos uma certa minoria.
A justiça não pode ser estabelecida através da simples elaboração e imposição de leis; tais leis só podem institucionalizar o que já é a regra em uma sociedade. O bom senso e a compaixão são sempre preferíveis à imposição de regulamentos estritos e impessoais. Onde a lei é uma província privada de uma elite que busca sua própria perpetuação, os sensatos e compassivos estão destinados a terminarem como réus; precisamos de um sistema social que proteja e recompense estas qualidades no lugar da obediência cega e impassividade.
Não é coincidência que "liberdade" não está na cédula eleitoral.
Liberdade é uma qualidade da atividade, não uma condição que existe no vácuo: é um prêmio a ser ganho diariamente, não uma posse que possa ser mantida no porão e polida para ser levada em desfiles. Liberdade não pode ser dada ― o máximo que se pode esperar é conseguir libertar os outros das forças que os impedem de encontrá-la sozinhos. A verdadeira liberdade não tem nada a ver com votar; ser livre não significa simplesmente poder escolher entre opções, mas participar ativamente em construir as opções, em primeiro lugar.
"Vejam, uma urna ― democracia!!"
Se a liberdade pela qual muitas gerações lutaram e morreram é melhor exemplificada por um homem numa cabine eleitoral marcando um X numa cédula antes de voltar para o trabalho em um ambiente não mais sob o seu controle do que era anteriormente, então a herança que nossos ancestrais emancipadores e de nossas avós sufragistas nos deixaram não é nada além de um medíocre substituto à liberdade que eles buscaram.
Para ilustrar melhor a verdadeira liberdade em ação, observe o músico improvisando com seus companheiros: com prazer e aparentemente sem esforço, eles criam cooperativamente um ambiente sônico e emocional, transformando o mundo que por sua vez os transforma. Pegue este modelo e o estenda para todas as suas interações com outras pessoas e você obterá algo qualitativamente diferente do nosso presente sistema ― uma harmonia nas atividades e relações humanas. Para chegar lá de onde estamos, temos que dispensar o voto como expressão arquétipo da liberdade e da participação.
Democracia representativa é uma contradição.
Ninguém pode representar o seus interesses e o seu poder por você ― você só pode ter poder exercendo-o, você só pode saber quais são os seus interesses se envolvendo. Político fazem carreira alegando representar os outros, como se a liberdade e poder político pudessem ser contidos numa procuração; na verdade, eles são uma classe de padres que só responde a si mesma, e a sua própria existência é prova de nossa exclusão.
Votar nas eleições é uma expressão da nossa impotência: é uma admissão de que só podemos nos aproximar dos recursos e capacidades de nossa própria sociedade através da mediação dessa classe de padres. Quando os deixamos pré-fabricarem nossas opções para nós, nós cedemos o controle de nossas comunidades a estes políticos da mesma forma que nós cedemos a tecnologia aos engenheiros, cuidados com a saúde aos médicos, e controle dos ambientes em que vivemos a urbanistas e empreiteiros privados. Acabamos vivendo em um mundo que é estranho a nós, mesmo que o nosso trabalho o tenha construído, pois agimos como sonâmbulos hipnotizados pelo monopólio que nossos líderes e especialistas mantém de estabelecer possibilidades.
Mas não temos que simplesmente escolher entre candidatos a presidente, marcas de refrigerante, programas de televisão e ideologias políticas. Podemos tomar nossas próprias decisões como indivíduos e comunidades, podemos criar nossas próprias bebidas deliciosas e estruturas sociais e poder, podemos estabelecer uma nova sociedade à base de igualdade e cooperação. Aqui está como.