Antropologia (na qual o autor um pouco relutantemente morde a mão que o alimenta)

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista
David Graeber

TITULO: Antropologia (na qual o autor de certa forma relutantemente morde a mão que o alimenta)

A questão final - a qual eu admitidamente procurei evitar até agora - é a de por que antropólogos não o fizeram até agora? Eu já descrevi porque eu acho que os acadêmicos em geral raramente sentiram muita afinidade com o anarquismo. Eu falei um pouco a respeito das inclinações radicais em muito da antropologia do começo do século XX, a qual geralmente mostrou uma afinidade muito forte com o anarquismo, mas isso pareceu ter desaparecido amplamente com o tempo. É tudo um pouco estranho. Antropólogos são afinal o único grupo de estudiosos que conhecem alguma coisa a respeito de existentes sociedades sem estado de fato; muitas na realidade viveram em esquinas do mundo onde estados tinha cessado sua função, ou, ao menos, temporariamente retiraram suas estacas e foram embora, e pessoas estão administrando seus próprios assuntos de forma autônoma; eles estão conscientes de que a maior parte das suposições triviais sobre o que aconteceria na ausência do estado ("mas as pessoas não iriam simplesmente se matar?") são factualmente falsas.

Por quê, então?

Bem, existem várias razões. Algumas são compreensíveis o suficiente. Se o anarquismo é essencialmente uma ética da prática, então meditar sobre a prática antropológica tende a encadear muitas coisas desagradáveis. Particularmente se alguém concentra-se na experiência antropológica do trabalho de campo - o que antropólogos invariavelmente tendem a fazer quando eles se tornam reflexivos. A disciplina que conhecemos hoje se tornou possível por terríveis esquemas de conquista, colonização e assassinato em massa - muito como a maior parte das disciplinas acadêmicas modernas, na realidade, incluindo a geografia e a botânica, sem mencionar aquelas como a matemática, linguística, robótica, as quais ainda o são; mas os antropólogos, já que seu trabalho tende a envolver o conhecimento das vítimas pessoalmente, acabaram agonizando em cima disso de modo que os proponentes das outras disciplinas quase nunca o fizeram. O resultado foi estranhamente paradoxal: as reflexões antropológicas acerca de sua própria culpabilidade tiveram principalmente o efeito de prover os não-antropólogos, os quais não querem ser incomodados em ter de aprender 90% da experiência humana com convenientes duas ou três frases de efeito (vocês sabem: nada como projetar o sentido de alteridade nos colonizados) através das quais eles podem se sentir moralmente superiores.

Para os próprios antropólogos, os resultados foram estranhamente paradoxais também. Uma vez que os antropólogos estão efetivamente sentados num vasto arquivo de experiência humana, de experimentos políticos e sociais que ninguém mais realmente conhece a respeito, aquele mesmo campo da etnografia comparada é visto como algo vergonhoso. Como eu mencionei, ele é tratado não como uma herança comum da humanidade, mas como nosso segredinho sujo. O que é, na realidade, conveniente, ao menos enquanto o poder acadêmico estiver baseado no estabelecimento de direitos de propriedade acerca de um certo tipo de conhecimento, de forma a garantir que outros não tenham muito acesso. Porque, como eu já mencionei, nosso segredinho sujo é ainda nosso. Não é algo que se precise compartilhar com os outros.

Existe mais a acrescentar entretanto. De diversas formas, a antropologia parece uma disciplina aterrorizada com seu próprio potencial. É, por exemplo, a única disciplina em posição de fazer generalizações a cerca da espécie humana como um todo - já que é a única disciplina que leva toda a humanidade em conta e é familiar com todos os casos anômalos. ("Todas as sociedades praticam o casamento, você diz? Bem, isso depende em como você define casamento, entre os Nayar...") Porém, ela resolutamente recusa-se a fazê-lo. Eu não penso que isso é para ser levado em conta apenas como uma reação compreensível a propensão direitista de fazer grandes argumentos sobre a natureza humana para justificar muito particulares, e geralmente, particularmente torpes instituições sociais (estupro, guerra, capitalismo de livre mercado) - embora certamente isso seja uma grande parte disso. Parcialmente, trata-se apenas da vastidão do assunto em questão. Quem realmente tem os meios para discutir, digamos, concepções de desejo, ou imaginação, ou ego, ou soberania, para considerar tudo o que pensadores chineses, indianos, islâmicos tinham a dizer sobre o assunto além do cânone ocidental, sem falar nas concepções folclóricas dominantes em centenas de sociedades da Oceania ou nativo-americanas? É simplesmente muito difícil. Como resultado, antropólogos não produzem absolutamente mais muitas generalizações teóricas abrangentes - em vez disso, viram o trabalho para filósofos europeus que geralmente não tem absolutamente nenhum problema em discutir desejo, ou a imaginação, ou o ego, ou soberania, como se tais conceitos tivessem sido inventados por Platão ou Aristóteles, desenvolvidos por Kant ou Sade, e nunca significativamente discutidos por qualquer pessoa fora das tradições da elite literária da Europa ocidental ou da América do Norte. Onde certa vez os termos teóricos-chave da antropologia eram palavras como mana, totem, ou tabu, as novas palavras da moda são invariavelmente derivadas do latim ou grego, geralmente via o francês, ocasionalmente o alemão.

Ainda que a antropologia talvez pareça perfeitamente posicionada a prover um fórum intelectual para todos os tipos de conversações planetárias, políticas ou variadas, existe uma certa relutância interna em fazê-lo.

Portanto, exite uma questão de política. A maior parte dos antropólogos escreve como se seu trabalho tivesse um sentido político evidente, em um tom o qual sugere que eles consideram o que estão fazendo bastante radical e certamente à esquerda do centro. Mas no que essas políticas consistem efetivamente? É cada vez mais difícil de dizer. Antropólogos tendem a ser anti-capitalistas? Certamente é difícil pensar em um que tenha muita coisa boa a dizer sobre o capitalismo. Muitos estão habituados a descrever a época atual como "capitalismo tardio", como se ao declarar que o capitalismo está para acabar, eles possam pelo próprio ato de fazê-lo apressar a sua morte. Mas é difícil pensar em um antropólogo que tenha, recentemente, feito qualquer tipo de sugestão sobre como uma alternativa ao capitalismo se pareceria. São eles liberais, portanto? Muitos não podem pronunciar a palavra sem um ar de desprezo. O que o são, então? Na medida do meu entendimento, o único compromisso político fundamental correndo por todo o campo é um tipo de amplo populismo. Se é só isso, nós definitivamente não estamos ao lado de qualquer um, em dada situação, que seja ou se imagina ser da elite. Nós estamos pelos grupos marginais. Já que na prática a maior parte dos antropólogos está ligada às (de modo crescente no globo) universidades, e se não, acabam em trabalhos como consultorias de marketing ou trabalhos com as Nações Unidas - posições dentro do próprio aparato de domínio global - o que isso realmente acaba se tornando é um tipo de constante e ritualizada declaração de deslealdade àquela mesma elite global da qual nós mesmos como acadêmicos claramente formamos uma (admitidamente de alguma forma marginal) fração.

Agora, qual a forma desse populismo na prática? Fundamentalmente significa que você precisa demonstrar que o povo que você está estudando, os "grupos marginais", está, com sucesso, resistindo contra alguma forma de poder ou influência globalizante imposta de cima para baixo. Isso é, pelo menos, o que a maioria dos antropólogos falam quando a disciplina volta seus olhos para a globalização – o que acaba por acontecer quase imediatamente, hoje em dia, qualquer que seja o assunto que você esteja estudando. Seja publicidade, novelas, formas de disciplina no trabalho, sistemas legais impostos pelo Estado ou qualquer outra coisa que parece estar esmagando ou homogeneizando algum grupo, demonstra-se que eles não estão enganados, esmagados nem homogeneizados; de fato, eles estão apropriando ou reinterpretando criativamente o que está sendo jogado neles de uma forma que seus autores jamais teriam antecipado. Obviamente, em alguma medida tudo isso é verdade. Eu certamente não desejo negar a importância de combater a concepção popular – todavia incrivelmente difundida – que no momento em que as pessoas no Butão ou em Irian Java são expostas à MTV, sua civilização praticamente acaba. O que é perturbador, pelo menos pra mim, é o grau em que essa lógica acaba por ecoar a lógica do capitalismo globalizado. Afinal de contas, as agências de publicidade também não dizem estar impondo nada a ninguém. Especificamente nesta era de segmentação do mercado, elas dizem estar fornecendo material para que o público possa apropriá-lo e torná-lo seu de formas imprevisíveis e idiossincráticas. A retórica do “consumo criativo” poderia ser considerada a ideologia do novo mercado global: um mundo no qual todo o comportamento humano pode ser classificado como produção, troca ou consumo; no qual se presume que a troca seja conduzida por inclinações humanas básicas de busca racional pelo lucro, as quais são as mesmas por toda a parte, e o consumo torna-se uma forma de estabelecer a identidade particular de alguém (e a produção não é sequer discutida, caso seja possível evitar). No balcão de negociações, somos todos iguais; é o que fazemos com as coisas, ao chegar em casa, que faz com que sejamos diferentes. Tal lógica de mercado tem se tornado tão profundamente enraizada que, digamos, se uma mulher em Trinidad coloca um traje escandaloso e sai para dançar, os antropólogos presumirão automaticamente que o que ela está fazendo pode ser definido como “consumo” (em oposição, digamos, a procurar se exibir ou curtir a vida), como se o que fosse realmente importante em sua noite fosse o fato dela comprar alguns drinks, ou talvez porque o antropólogo considera vestir roupas em si como sendo, de alguma forma, o mesmo que beber, ou talvez porque eles nem pensam nisso de verdade e presumem que qualquer coisa que alguém faça e não seja trabalho seja “consumo”, porque o que realmente importa é que produtos manufaturados estão envolvidos na situação. A perspectiva do antropólogo e do executivo de marketing global tornaram-se indistinguíveis nesse aspecto.

E não é tão diferente no nível político. Lauren Leve alertou recentemente que os antropólogos arriscam, caso não sejam cuidadosos, tornarem-se apenas mais uma engrenagem nesta “máquina de identidade” global, um aparato de instituições e presunções que tem o tamanho do planeta e que tem, na última década, informado efetivamente os habitantes da terra (ou ao menos, todos com exceção da elite mais alta) que, visto que todos os debates acerca da natureza das possibilidades econômicas e políticas já acabou, a única forma atual de fazer uma reclamação política é através da afirmação de uma identidade de grupo com todas as premissas sobre o que constitui a identidade estabelecidas previamente (i.e., que identidades de grupo não são formas de comparar um grupo com outro, pois são constituídas através da forma pela qual o grupo se relaciona com sua própria história e que não existe uma diferença essencial, nesse olhar, entre indivíduos e grupos...). As coisas chegaram a tal ponto que em países como o Nepal até mesmo Budistas Theravada são forçados a jogar com políticas da identidade: um espetáculo particularmente bizarro porque essencialmente eles estão baseando suas reinvindicações identitárias através da adesão a uma filosofia universalista que insiste na ideia de que a identidade é uma ilusão.

Muitos anos atrás um antropólogo francês de nome Gerard Althabe escreveu um livro sobre Madagascar intitulado Oppression et Liberation dans l'Imaginaire' ("Opressão e Libertação no Imaginário"). É uma frase que pega. Eu acho que isso pode ser aplicado da mesma forma ao que acaba acontecendo em vários trabalhos antropológicos. Na maior parte das vezes, o que aqui chamamos de “identidade”, lá nos lugares que Paul Gilroy gosta de chamar de “mundo super-desenvolvido” é empurrado sobre as pessoas. Nos Estados Unidos, muitos são os produtos da opressão e da desigualdade: alguém que é definido como Negro não lhe é permitido esquecer disso em nenhum momento de sua existência; a auto-definição dele ou dela não tem importância nenhuma para o banqueiro que lhe negará crédito, ou o policial que o prenderá por estar no bairro errado, ou o médico que, no caso de um braço quebrado, provavelmente sugerirá amputação. Todas as tentativas de auto-invenção ou auto-atribuição individuais ou coletivas precisam acontecer inteiramente dentro dos limites violentos impostos por essas amarras. (A única forma real de mudança seria transformar as atitudes daqueles que tem o privilégio de seres definidos como “Brancos” – ao final, provavelmente, através da própria destruição da categoria da Branquitude. Ocorre que ninguém tem a mínima ideia de como as pessoas se auto-definiriam caso o racismo institucional simplesmente desaparecesse – se todos realmente fossem deixados livres para se auto-definirem como quisessem. E não tem muito porque especular sobre isso. A questão é criar uma situação na qual possamos descobrir.

Isso é o que quero dizer com “libertação no imaginário”. Pensar sobre o que seria necessário para vivermos em um mundo em que todo mundo realmente tivesse o poder de decidir por si mesmo, individualmente e coletivamente, pudesse escolher a quais comunidades pertencer e que tipo de identidades assumir – isso é realmente difícil. Trazer tal mundo à tona seria inimaginavelmente difícil. Seria preciso mudar quase tudo. E também entraria em choque com uma oposição teimosa e violenta por parte daqueles que se beneficiam mais dos arranjos atuais. Ao invés disso, escrever como se tais identidades estivessem criadas livremente – ou pelo menos em sua maioria – é fácil, e nos deixa completamente fora do intrincado e intratável problema do quanto o nosso próprio trabalho é parte dessa máquina identitária. Mas isso não o torna mais verdadeiro do que falar que o “capitalismo tardio” vai, por si, levar ao colapso industrial ou à revolução social.

Uma ilustração
Caso não esteja claro o que estou dizendo aqui, deixe-me retornar, rapidamente, aos rebeldes Zapatistas de Chiapas, sobre cuja revolta, no réveillon de 1994, podemos falar como sendo aquela que deu o pontapé inicial do movimento anti-globalização. A maioria dos Zapatistas provinha de comunidades falantes do Maya em Tzeltal, Tzotil e Tojolobal que se estabeleceram na selva Lacandona – algumas das mais pobres e mais exploradas comunidades no México. Os Zapatistas não se entitulam anarquistas completamente, e nem inteiramente de autonomistas; eles representam seu próprio fio nessa tradição mais ampla; de fato, eles estão tentando revolucionar a estratégia revolucionária em si através do abandono de qualquer noção de vanguarda que vise tomar controle do Estado, já que, ao invés disso, batalham pela criação de enclaves libertários que possam servir de modelos de auto-governo autônomo, permitindo assim uma reorganização geral da sociedade mexicana numa complexa rede de grupos auto-gestionados que possam começar a discutir a reinvenção da sociedade política. Havia, aparentemente, alguma diferença de opinião, dentro do movimento Zapatista, sobre as formas de prática democrática que eles gostariam de promover. A base, falante do Maia, enfatizou fortemente uma forma de processo através do consenso, adaptada de suas próprias tradições comunitárias, mas reformuladas para serem mais radicalmente igualitárias; alguns dos líderes militares, falantes do espanhol, estavam muito céticos quanto a possibilidade de isso ser aplicado em escala nacional. Ao final, porém, tiveram de ceder à visão daqueles que “lideravam obedecendo”, como diz o ditado zapatista. Mas a coisa mais impressionante foi o que ocorreu quando as notícias da rebelião chegaram ao resto do mundo. É aqui que podemos realmente ver a “máquina identitária” trabalhar: ao invés de um bando de rebeldes com uma visão de transformação radical da democracia, eles logo foram redefinidos como um bando de Índios Maias demandando autonomia indígena. Assim foi como a mídia internacional os retratou; isso é o que era considerado importante pelas organizações humanitárias, pelos burocratas mexicanos e pelos monitores de direitos humanos da ONU. Enquanto o tempo passava, os Zapatistas – cuja estratégia dependeu, desde o início, da obtenção de aliados internacionais – viram-se forçados a jogar o jogo da indigenidade também, exceto quando lidavam com seus aliados mais comprometidos.
Tal estratégia não foi totalmente ineficaz. Dez anos depois, o Exército Zapatista de Liberação Nacional ainda está lá, não precisando disparar quase nenhum tiro, talvez porque eles se dispuseram, até o momento, a deixar de lado a parte “Nacional” de seu nome. Tudo que quero ressaltar é o quão condescendente – ou talvez não vamos pegar leve aqui – o quão completamente racista tem sido a reação internacional à rebelião zapatista. Porque o que eles estavam propondo é exatamente dar início a esse difícil trabalho que, como apontei, muito da retórica sobre “identidade” acaba por ignorar: a tentativa de pensar quais formas de organização, que maneira de proceder e deliberar, seriam necessárias para criar um mundo em que pessoas e comunidades sejam realmente livres para determinar que tipo de pessoas e comunidades elas próprias querem ser. E o que falaram pra eles? Foram informados que, por serem Maias, eles não poderiam sequer pensar em ter alguma coisa a dizer para o mundo sobre o processo de constituição de uma identidade ou sobre a natureza das possibilidades políticas. Enquanto Maias, a única afirmação política que eles poderiam fazer para os não-Maias seria sobre sua identidade Maia. Eles podiam demandar reconhecimento como Maias. Porém, um Maia dizer ao mundo algo que não fosse apenas um comentário sobre sua herança Maia seria inconcebível.

E quem estava escutando o que eles realmente tinham para dizer?

Em sua maioria, parece, um bando de adolescentes anarquistas da Europa e da América do Norte, os quais logo começaram a cercar os encontros dessa elite global com a qual os antropólogos mantém um aliança tão desconfortável e conturbada.

E os anarquistas estavam certos. Acho que os antropólogos deveriam fazer sua a causa deles. Temos em nossas mãos ferramentas que poderiam ser de enorme importância para a liberdade humana. Comecemos a assumir alguma responsabilidade por isso.


Fragmentos de uma Antropologia Anarquista
Algumas idéias sobre rumos de Pensamento e Organização ANTROPOLOGIA (na qual o autor um pouco relutantemente morde a mão que o alimenta)