Apelo

De Protopia
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Sem autor sem editora sem ficha técnica, nem mesmo notas de rodapé. Encontrámos este texto em França e traduzimo-lo para português. É de

uma limpeza e sobriedade impressionante. A nós parece-nos um poema; a sete tempos e cada tempo com a sua explanação. Às tantas é dito que foi escrito em 2003. É tudo.

Edições Antipáticas, Abril 2008


Proposta I

Nada falta ao triunfo da civilização.
Nem o terror político nem a miséria afectiva.
Nem a esterilidade universal.
O deserto não pode crescer mais: está por todo o lado.
Mas pode ainda aprofundar-se.
Perante a evidência da catástrofe, há os que se indignam e os que agem, os que denunciam e os que se organizam.
Nós estamos do lado dos que se organizam.


Anotação

Isto é um apelo[1]. Ou seja, dirige-se àqueles que o quiserem escutar.
Não nos daremos ao trabalho de demonstrar, argumentar ou convencer.
Iremos à evidência.
A evidência não é, desde logo, uma questão de lógica, de raciocínio.
É do domínio do sensível, do domínio dos mundos.
Cada mundo possui as suas evidências.
A evidência é aquilo que se partilha
ou que divide[2].
Depois da qual toda a comunicação volta a ser possível, não mais imaginada, mas a construir.
E aprendemos tão bem a duvidar, a fugir, a calar, a guardar para nós essa rede de evidências que NOS constitui. NÓS aprendemos tão bem que todas as palavras nos escapam quando queremos gritar.


Quanto à ordem sob a qual vivemos, cada um sabe a que se agarrar: o império cega a vista.
Que um regime social agonizante não tenha outra justificação para a sua arbitrariedade senão a sua absurda determinação - a sua determinação senil – em simplesmente durar;
Que a polícia, mundial ou nacional, tenha obtido total latitude para ajustar contas com aqueles que não seguem a direito;
Que a civilização, ferida no seu coração, nada mais encontre, na guerra permanente em que se lançou, senão os seus próprios limites;
Que esta fuga para a frente, já quase centenária, não produza mais do que uma série infindável de desastres cada vez mais frequentes;
Que a massa de humanos se acomode a golpes de mentiras, de cinismo, de embrutecimento ou de recompensas a esta ordem de coisas;
Ninguém pode fingir ignorá-lo.


E o desporto que consiste em descrever sem fim, com uma complacência variável, o desastre presente, não é mais do que uma outra maneira de dizer: «É assim»; a palma da infâmia é atribuída aos jornalistas, a todos aqueles que aparentam redescobrir, cada manhã, as sujidades que haviam constatado na véspera.


Mas o que mais perturba, no momento, não são as arrogâncias do império, mas antes a debilidade do contra-ataque. Como uma paralisia colossal. Uma paralisia de massas, que tanto diz que nada há a fazer, enquanto ainda fala, como concede, se a isso é obrigada, que «há tanto a fazer» - o que não é diferente. Depois, à margem desta paralisia, o «é realmente necessário fazer alguma coisa, não interessa o quê» dos activistas.


Seattle, Praga, Génova, a luta contra os OGM ou o movimento dos desempregados, ocupámos o nosso lugar, tomámos partido nas lutas dos últimos anos;
E certamente não ao lado da Attac ou dos Tutti Bianchi.
O folclore contestatário deixou de nos distrair.
Na última década, vimos o marxismo-leninismo retomar o seu monólogo entediante em bocas ainda liceais.
Vimos o anarquismo mais puro negar também aquilo que não compreende.
Vimos o economicismo mais vulgar – o dos amigos do Le Monde diplomatique – tornar-se a nova religião popular. E o negrismo impor-se como única alternativa à desorientação intelectual da esquerda mundial.
Por todo o lado, o militantismo dedicou-se a edificar as suas construções oscilantes,
as suas redes depressivas,
até ao esgotamento.


Não foram necessários três anos à bófia, sindicatos e outras burocracias informais para tomar conta do curto «movimento anti-globalização». Para o quadricular. Para o dividir em «terrenos de luta», tão rentáveis quanto estéreis.


A esta hora, de Davos a Porto Alegre, do MEDEF à CNT, o capitalismo e o anti-capitalismo descrevem o mesmo horizonte ausente. A mesma perspectiva limitada de gestão do desastre. O que se opõe à desolação dominante não é, em definitivo, mais do que outra desolação, pior aprovisionada. Por todo o lado se trata da mesma ideia tola de felicidade. Os mesmos jogos de poder tetanizados. A mesma desarmante superficialidade. O mesmo analfabetismo emocional. O mesmo deserto.


Afirmamos que esta época é um deserto, e que este deserto se aprofunda sem cessar. Isto, por exemplo, não é poesia, é uma evidência. Uma evidência que contém muitas outras. Nomeadamente a ruptura com tudo o que protesta, tudo o que denuncia e glosa sobre o desastre.
Quem denuncia isenta-se.
Tudo se passa como se os esquerdistas acumulassem motivos para se revoltarem da mesma maneira que o gestor acumula meios de dominação.
Da mesma maneira quer dizer com o mesmo prazer.
O deserto é o progressivo despovoamento do mundo.
O hábito que adquirimos de viver como se não estivéssemos no mundo. O deserto está na proletarização contínua, massiva, programada das populações, tal como nos subúrbios californianos, lá onde o sofrimento consiste justamente no facto de ninguém parecer já reconhecê-lo.
Que hoje não se consiga discernir o deserto, só confirma ainda mais o deserto.


Alguns procuraram nomear o deserto. Designar o que nele se deve combater, não enquanto acção de um agente estrangeiro, mas como um conjunto de relações. Falaram de espectáculo, de biopoder, de império. Mas também isso se veio juntar à confusão em vigor.
O espectáculo não é uma abreviação cómoda de meios de comunicação de massas; reside sobretudo na crueldade com que tudo nos reenvia incessantemente para a nossa própria imagem.
O biopoder não é um sinónimo de Segurança-social, Estado-providência ou indústria farmacêutica; antes se aloja aprazivelmente na inquietação que nos trazem os nossos corpos bonitos, numa certa estranheza física tanto em relação a si como aos outros.
O império não é uma espécie de entidade supra-terrestre, uma conspiração planetária de governos, de redes financeiras, de tecnocratas e de multinacionais. O império está em todo o lado onde nada se passa. Em todo o lado onde tudo funciona. Lá onde reina a situação normal.
É à força de encarar o inimigo com um sujeito que nos enfrenta – em vez de o reconhecer como uma relação que nos domina – que adoecemos na luta contra a doença. Que reproduzimos, sob o pretexto da «alternativa», o pior das relações dominantes. Que nos pomos a vender a luta contra a mercadoria. Que nascem as autoridades da luta anti-autoritária, o feminismo com grandes tomates e os linchamentos[3] antifascistas.


Nós somos, a todo o momento, parte integrante de uma situação. No seu seio, não existem sujeitos e objectos, eu e os outros, as minhas aspirações e a realidade, mas o conjunto das relações, o conjunto dos fluxos que a atravessam.
Existe um contexto geral – o capitalismo, a civilização, o império, como quisermos –, um contexto geral que não pretende apenas controlar todas as situações mas, muito pior, procura assegurar que não se tornem frequentes as situações. NÓS ornamentámos as ruas e as casas, a linguagem e os afectos, e depois o ritmo mundial que arrasta tudo isto, exerce o seu efeito singular. Por todo o lado NÓS fazemos de conta que os mundos deslizam uns sobre os outros ou se ignoram. A «situação normal» é esta ausência de situação.
Organizar-se quer dizer: partir da situação e não recusá-la. Tomar partido no seu seio. E aí tecer as solidariedades necessárias, materiais, afectivas e políticas. É isso que faz qualquer greve em qualquer escritório, em qualquer fábrica. É isso que faz qualquer grupo. Qualquer resistência. Qualquer partido revolucionário ou contra-revolucionário.
Organizar-se quer dizer: tornar a situação consistente. Torná-la real, palpável.
A realidade não é capitalista.


Assumir uma posição no seio de uma situação cria a necessidade de estabelecer alianças e, por isso, de estabelecer certas linhas de comunicação e de circulação mais amplas. Por seu turno, essas novas associações reconfiguram a situação.
À situação em que nos encontramos chamaremos «guerra civil mundial». Onde já ninguém está em condições de circunscrever o afrontamento das forças presentes. Nem sequer o direito, que entra cada vez mais em jogo como uma outra forma de afrontamento generalizado.


O NÓS que aqui se exprime não é um NÓS delimitável, isolado, o NÓS de um grupo. É o NÓS de uma posição. Essa posição afirma-se nesta época como uma dupla secessão: secessão com o processo de valorização capitalista de um lado, secessão, em seguida, com tudo aquilo que uma simples oposição ao império, mesmo se extra-parlamentar, impõe de esterilidade; secessão, portanto, com a esquerda. Onde «secessão» indica menos a recusa prática de comunicar do que uma disposição a formas de comunicação tão intensas que arrancam ao inimigo, lá onde se estabelecem, a maior parte das suas forças.
Para ser breve, diremos que tal posição pede emprestada aos Black Panthers a força de irrupção, à autonomia alemã as cantinas colectivas, aos neo-ludditas ingleses as casas nas árvores e a arte da sabotagem, às feministas radicais a escolha das palavras, aos autónomos italianos a auto-redução de massas e ao movimento do 2 de Junho a alegria armada.


Deixou de existir outra amizade, para nós, que não seja política.

Proposta II

A inflação ilimitada do controlo é a resposta sem esperança à previsível ruína do sistema.
Da mesma maneira, nada do que se exprime na distribuição conhecida das identidades políticas poderá conduzir a outra coisa que não ao desastre.
Por isso mesmo, começamos por desembaraçarmo-nos. Nós não contestamos nada, nem reivindicamos coisa alguma. Nós constituímo-nos em força, em força material, em força material autónoma no seio da guerra civil mundial.
Este apelo exprime-se a partir destas premissas.

Anotação

Aqui experimentamos armas inéditas para dispersar os loucos, uma espécie de granadas de fragmentação mas em madeira. No Oregon propõem punir com 25 anos de prisão qualquer manifestante que bloqueie o tráfego automóvel. O exército israelita está prestes a tornar-se o consultor mais solicitado para a pacificação urbana; peritos de todo mundo ali acorrem para se maravilharem com as últimas descobertas, tão imponentes e tão subtis, para a eliminação dos subversivos. A arte de ferir – ferir um para educar cem – parece atingir o seu auge. E depois há o terrorismo, claro. Ou seja “qualquer infracção cometida intencionalmente por um indivíduo ou um grupo contra um ou mais países, as suas instituições ou populações, visando ameaçar e atingir em larga escala ou destruir as estruturas políticas, económicas ou sociais de um país”. É a Comissão Europeia que fala. Nos Estados Unidos há mais prisioneiros do que agricultores.


À medida que é reorganizado e progressivamente reconquistado, o espaço público cobre-se de câmaras. Não se trata apenas de toda a vigilância parecer possível mas, sobretudo, de toda ela parecer admissível. Circulam de governo em governo todo o tipo de listas de suspeitos, cujos usos prováveis a custo se adivinham. Agrupamentos de todo o tipo de milícias, perante as quais a polícia faz figura de garante arcaico, ocupam posições em todo o lado para substituir os bufos e os ociosos, figuras de um outro tempo. Um antigo chefe da CIA, umas dessas personagens que, do lado oposto, se organizam mais do que se indignam, escreve no Le Monde: “Mais que uma guerra contra o terrorismo, o objectivo é o de levar a democracia às partes do mundo (árabe e muçulmano) que ameaçam a civilização liberal, a construção e a defesa daquilo que nós construímos ao longo do séc. XX, aquando da primeira e, posteriormente, da segunda guerra mundial, seguidas da guerra fria – ou terceira guerra mundial”.


Em tudo isto, nada nos choca, nada nos apanha de surpresa ou altera radicalmente o nosso entendimento da vida. Nós nascemos na catástrofe e estabelecemos com ela uma estranha e pacífica relação de habituação. Quase uma intimidade. Na memória do homem, a actualidade nunca foi senão a da guerra civil mundial. Fomos criados enquanto sobreviventes, enquanto máquinas de sobrevivência. Fomos formados na ideia de que a vida consistiria em marchar, marchar até nos afundarmos no meio dos outros corpos que marcham igualmente, tropeçando e afundando-se um de cada vez, na indiferença. No limite, a única novidade da época actual é que já nenhum destes factos poderá ser escondido, que em certo sentido já toda a gente o sabe. Daí os recentes endurecimentos, tão visíveis, do sistema: os seus fundamentos estão desnudados, de nada servirá querer escondê-los.


Muitos se espantam que nenhuma fracção da esquerda ou da extrema-esquerda, nenhuma das forças políticas conhecida, seja capaz de se opor a este rumo de coisas. “Estamos em democracia, não?” E podem-se espantar durante muito tempo: nada do que se exprime no quadro da política clássica poderá jamais travar o avanço do deserto, pois a política clássica faz parte do deserto. Quando o afirmamos, não é com o objectivo de propagandear qualquer tipo de movimento extra-parlamentar como antídoto para a democracia liberal. O famoso manifesto “Nós somos a esquerda”, assinado há alguns anos por tudo o que há em França de colectivos de cidadãos e “movimentos sociais”, enuncia bem a lógica que, desde há trinta anos, anima a política extra-parlamentar: nós não queremos tomar o poder, fazer cair o Estado, etc.; portanto, nós queremos ser reconhecidos por ele como interlocutores.


Em todo o lado onde reina a concepção clássica da política, reina a mesma impunidade face ao desastre. E nada muda pelo facto desta impunidade ser distribuída por uma vasta distribuição de identidades finalmente conciliáveis entre si. O anarquista da FA, o comunista de conselhos, o trotskista da Attac e o deputado da UMP partem de uma mesma amputação. Propagam o mesmo deserto.


A política, para eles, é a que se joga, que se diz, que se faz, que se decide entre as pessoas. A assembleia, que os junta a todos, que junta todos os humanos abstraindo-se dos seus mundos respectivos, forma o contexto político ideal. A economia, a esfera da economia, deriva logicamente daí: enquanto necessária e impossível gestão de tudo aquilo que deixámos à porta da assembleia, de tudo aquilo que, ao fazê-lo, constituímos enquanto não político e que depois toma forma: família, empresa, vida privada, prazeres, gostos, cultura, etc. É por isso que a definição clássica da política propagandeia o deserto: abstraindo os humanos do seu mundo, retirando-os do conjunto de coisas, de hábitos, de palavras, de fetiches, de afectos, de lugares, de solidariedades que fazem o seu mundo. O seu mundo sensível. E que lhe dão a sua consistência própria.


A política clássica é o espectáculo glorioso dos corpos sem mundo. Mas a assembleia teatral das individualidades políticas mascara mal o deserto em que consiste. Não existe sociedade humana separada do resto dos seres. Existe uma pluralidade de mundos. De mundos que são tanto mais reais quanto são partilhados. E quanto coexistem. A política, na verdade, é acima de tudo o jogo entre os diferentes mundos, a aliança entre os que são conciliáveis e o afrontamento entre os que são irreconciliáveis.


Da mesma maneira, defendemos que o facto político central dos últimos trinta anos passou despercebido. Porque se desenvolveu numa camada tão profunda do real que não pode ser considerado “político” sem levar a uma revolução na própria noção de política. Porque, afinal de contas, essa camada do real é também aquela onde se constrói a divisão entre o que é tido como real e o restante. Esse facto central é o triunfo do liberalismo existencial. O facto de admitirmos doravante como natural uma relação com o mundo fundada sobre a ideia de que cada um tem a sua vida. Que esta consiste numa série de escolhas, boas ou más. Que cada um se define por uma amálgama de qualidades, de propriedades, que fazem de si, pela sua ponderação variável, um ser único e insubstituível. Que o contrato resume adequadamente a interacção dos seres uns com os outros, e a respeita, em todas as suas virtudes. Que a linguagem é apenas um modo de comunicarmos. Que cada pessoa é um eu entre os outros eus.


Que o mundo é na realidade composto, por um lado, de coisas a gerir e, por outro, de um oceano de eus. Que têm ainda por cima uma infeliz tendência de se transformarem em coisas, à força de se deixarem gerir. Evidentemente, o cinismo não é mais do que uma das caras possíveis da infinita tabela clínica do liberalismo existencial: a depressão, a apatia, a deficiência imunitária – todo o sistema imunitário é, à partida, colectivo – a má fé, a perseguição judiciária, a insatisfação crónica, o apego negado, o isolamento, as ilusões de cidadania ou a perda de toda a generosidade fazem também parte dele.


No fundo, o liberalismo existencial soube espalhar tão adequadamente o seu deserto que é actualmente nos seus próprios termos que os esquerdistas mais sinceros enunciam as suas utopias. “Nós reconstruiremos uma sociedade igualitária na qual cada um dá a sua contribuição e da qual retira as necessidades que tem (...) No que toca às ambições pessoais, será justo que cada um consuma à medida dos contributos que está pronto a fornecer. Faltará aí redefinir o modo de avaliação do esforço fornecido por cada um”, escrevem os organizadores do Village alternatif, anti-capitalista e anti-guerra, contra o G8 de Evian num texto intitulado Quando abolirmos o capitalismo e o trabalho assalariado! Ora aí está uma chave do triunfo do império: conseguir manter na sombra, rodear de silêncio, o próprio terreno onde põe em prática o seu plano e no qual conduz a batalha decisiva: o da formatação do sensível, da projecção das sensibilidades. Deste modo, paralisa preventivamente todas as defesas no momento em que opera, e arruína até a ideia de uma contra ofensiva. A vitória é atingida de cada vez que o militante, ao fim de uma jornada de “trabalho político”, se deleita em frente a um filme de acção.


Na medida em que nos vêm desertar os tristes rituais da política clássica – a assembleia, a reunião, a negociação, a contestação, a reivindicação – na medida em que nos ouvem falar de mundo sensível em vez de trabalho, de documentos, de reforma ou de liberdade de circulação, os militantes encaram-nos com uma visão paternalista. “Coitados, parecem eles dizer, estão a caminho de se resignar ao minoritarismo, encerram-se nos seus guetos, renunciam ao alargamento. Não serão jamais um movimento.” Mas nós acreditamos precisamente no contrário: são eles que se resignam ao minoritarismo ao utilizar a sua linguagem de falsa objectividade, cujo único peso é o da repetição e da retórica. Ninguém se deixa enganar pelo desprezo velado com o qual falam dos problemas “das pessoas”, e que lhes permite ir do desempregado ao emigrante ilegal, do grevista à prostituta, sem jamais se colocar no mesmo plano – pois este desprezo é uma evidência sensível. A sua vontade de se “alargar” não é mais do que uma maneira de fugir daqueles que já vivem nessas situações e com quem, acima de tudo, temeriam viver. E finalmente, são eles, que se recusam a admitir o impacto político da sensibilidade, que devem esperar da encenação os seus lamentáveis efeitos de arrebatamento.


Tudo somado, preferimos partir de núcleos densos e reduzidos do que de uma rede vasta mas diluída. Conhecemos suficientemente bem essa diluição.

Proposta III

Aqueles que pretendem responder à urgência da situação pela urgência da sua reacção não fazem mais do que aumentar o sufoco.
A sua forma de intervir tem implícita o resto da sua política, da sua agitação.
Quanto a nós, a urgência da situação liberta-nos precisamente de quaisquer considerações acerca da legalidade ou da legitimidade, que se tornaram de qualquer modo inabitáveis.
Que nos seja necessária uma geração inteira para construir, em todas as suas dimensões, um movimento revolucionário vitorioso, não nos leva a recuar. Encaramo-lo com serenidade.
Como encaramos serenamente o carácter criminal da nossa existência e dos nossos gestos.

Anotação

Já conhecemos no passado, e conhecemos ainda no presente, a tentação do activismo. As contra-cimeiras, as campanhas contra os repatriamentos, contra as leis securitárias, contra a construção de novas prisões, as ocupações, os acampamentos No Border; a sucessão de tudo isto. A dispersão progressiva dos colectivos correspondendo à própria dispersão da actividade.
Aprender à pancada a sua força pagando o preço de voltar, uma e outra vez, à mesma impotência de fundo. Pagar em cada campanha um preço forte. Deixá-la consumir toda a energia de que dispomos. Depois abordar a seguinte, cada vez com menos fôlego, mais esgotados, mais desgostosos. E pouco a pouco, de tanto reivindicar, de tanto denunciar, tornarmo-nos incapazes de simplesmente reconhecer aquilo que está na base da nossa participação, a natureza da urgência em que nos encontramos.


O activismo é o primeiro reflexo. A resposta conforme a urgência da situação presente. A mobilização perpétua em nome da urgência, mais do que um meio de os combater, é aquilo a que nos habituaram os nossos governos e os nossos patrões.
Formas de vida desaparecem todos os dias, espécies vegetais ou animais, experiências humanas, e quantas relações possíveis entre formas vivas e formas de vida. Mas o nosso sentimento de urgência não está tão ligado à rapidez destes desaparecimentos quanto à sua irreversibilidade, e ainda mais à nossa inaptidão para repovoar o deserto.
O activista mobiliza-se contra a catástrofe. Mas não faz mais do que prolongá-la. A sua precipitação consome o pouco de mundo que ainda existe. A resposta activista à urgência permanece ela própria no interior do regime de urgência, sem esperanças de o abandonar ou interromper. O activista procura estar em todo o lado. Ele comparece em todos os lugares onde o conduz o ritmo das perturbações da máquina. A todo o lado ele leva a sua engenhosidade pragmática, a energia festiva da sua oposição à catástrofe. Incontestavelmente, o activista mexe-se. Mas nunca se apropria dos meios para pensar como fazer. Como fazer para travar concretamente o avanço do deserto, para concretizar mundos habitáveis sem permanecer à espera.
Nós desertámos do activismo. Sem esquecer o que forma a sua força: uma certa presença face à situação. Uma facilidade de movimentos no seu seio. Uma forma de encarar a luta, não pelo ângulo moral ou ideológico, mas pelo ângulo técnico, táctico.


O velho militantismo dá o exemplo inverso. Há qualquer coisa de notável na impermeabilidade dos militantes face às situações. Nós recordamo-nos desta imagem, em Génova: cinquenta militantes da LCR agitam as suas bandeiras vermelhas rotuladas “100% à esquerda”. Permanecem imóveis, intemporais. Gritavam os seus slogans ordenados, rodeados por um serviço de ordem. Enquanto isto, a poucos metros dali, alguns de nós enfrentam as fileiras da polícia, devolvendo o gás lacrimogéneo, levantando o chão da calçada para com ele fazer projécteis, preparando cocktails molotov a partir de garrafas encontradas no lixo e com gasolina tirada das Vespas tombadas. Acerca disto, os militantes falam de aventureirismo e de inconsciência. Argumentam que as condições ainda não estão reunidas. Nós afirmamos que nada faltava, que tudo estava lá, excepto eles.
Aquilo que deserdámos, na militância, é esta ausência face à situação. Como deserdámos a inconsistência à qual esse mesmo activismo nos condena.


Os próprios activistas experimentam essa inconsistência. E é por isso que, periodicamente, se voltam para os seus antepassados, os militantes. Tomam-lhes os gestos, os lugares, os slogans. O que os atrai, na militância, é a persistência, a estrutura, a fidelidade que lhes falta. Mais, os activistas vêm de novo contestar, reivindicar – os “papeis para todos”, a “livre circulação de pessoas”, o “rendimento mínimo garantido” ou os “transportes gratuitos”.
O problema com as reivindicações é que a formulação das necessidades em termos audíveis para os poderes, nada diz à partida acerca dessas mesmas necessidades, daquilo a que chamam transformações reais do mundo. Assim, reivindicar a gratuitidade dos transportes nada diz acerca da nossa necessidade de viajar e não de circular, da nossa necessidade de lentidão.
Mas ainda, com frequência as reivindicações não fazem mais do que mascarar os conflitos reais que pretendem enunciar. Reclamar transportes gratuitos não faz mais do que adiar num certo meio a difusão de técnicas de fraude. Defender a livre circulação de pessoas não faz mais do que iludir a questão do escape, na prática, ao afunilamento do controlo.
Bater-se pelo rendimento garantido é, na melhor das hipóteses, condenar-se à ilusão de que é necessária uma melhoria do capitalismo para se poder safar. Seja o que for, o impasse é sempre o mesmo: os recursos subjectivos mobilizados são talvez revolucionários, mas permanecem inseridos naquilo que se apresenta como um programa de reforma radical. Sob o pretexto de ultrapassar a alternativa entre reforma e revolução, instala-se uma ambiguidade oportuna.


A catástrofe presente é a de um mundo que se tornou activamente inabitável. Uma espécie de devastação metódica de tudo aquilo que permanecia vivo na relação dos humanos entre si e com os seus mundos. O capitalismo não teria podido triunfar à escala planetária sem técnicas de poder, técnicas objectivamente políticas – há técnicas de todos os tipos, com ou sem instrumentos, corporais ou retóricas, eróticas ou culinárias, que vão até à disciplina e aos dispositivos de controlo; e isto em nada ajuda a denunciar o «reino da técnica». Para começar, as técnicas políticas do capitalismo consistem em quebrar as ligações onde um grupo estabelece os meios de produzir, num mesmo movimento, as condições da sua subsistência e da sua existência. Em separar as comunidades humanas de inúmeras coisas, pedras e metais, plantas, árvores de mil utilidades, deuses, génios mágicos, animais selvagens ou em cativeiro, medicamentos e substâncias psico-activas, amuletos, máquinas e todos os outros seres com os quais os grupos humanos constituem os seus mundos.
Arruinar toda a comunidade, separar os grupos dos seus meios de existência e dos saberes a que estão ligados: é essa a motivação política que comanda a ofensiva da mediação mercantil sobre todas as relações. Tal como foi necessário eliminar os feiticeiros, ou seja, simultaneamente o conhecimento dos saberes medicinais e as passagens entre reinos a que os mesmos davam existência, é hoje necessário que os agricultores renunciem a semear as suas próprias sementes, com o fim de assegurar a dominação das multinacionais agro-alimentares e outros organismos de gestão das políticas agrícolas.


As metrópoles contemporâneas formam os pontos de concentração máximos destas técnicas políticas do capitalismo. As metrópoles são o meio onde já quase nada há, enfim, de que nos possamos reapropriar. Um meio no qual tudo é feito para que o humano apenas interaja consigo próprio, cresça separadamente das outras formas de existência, que as frequente e as utilize sem nunca as encontrar.
No núcleo desta separação, e para a tornar duradoura, empenhámo-nos em considerar criminosa a mais pequena tentativa de passar por cima da mediação do mercado.


O campo da legalidade confunde-se há muito com o dos constrangimentos múltiplos que tornam a nossa vida impossível, seja pelo trabalho assalariado ou por conta própria, pela caridade ou pelo militantismo. Ao mesmo tempo que este campo se torna diariamente mais inabitável, fez-se de tudo para tornar em crime toda a vida possível.
Onde os activistas gritam “No one is illegal”, torna-se necessário reconhecer exactamente o inverso: uma existência legal hoje em dia seria uma existência inteiramente submissa.
Há fraudes fiscais e empregos fictícios, delitos de constituição e falsas falências; há fraudes no rendimento mínimo garantido e recibos de ordenados falsos, fraudes no subsídio ao arrendamento e desvios de subvenções do estado, facturas de restaurante pagas por terceiros e multas que desaparecem. Há viagens nas bagageiras para passar fronteiras e viagens sem bilhete, para fazer um pequeno trajecto na cidade ou para o interior do país. A fraude no metro, o roubo no estendal, são práticas quotidianas de milhares de pessoas nas metrópoles. E são as práticas ilegais de trocas de grãos que têm permitido a preservação de algumas espécies de plantas. Há ilegalidades mais funcionais que outras no sistema-mundo capitalista. Há as que são toleradas, as que são encorajadas e outras, enfim, que são punidas. Uma horta improvisada num terreno livre terá grandes possibilidades de ser destruída antes da primeira colheita. Se tomarmos em consideração a totalidade de leis de excepção e regulamentos de costumes que governam os espaços atravessados por quem quer que seja num dia, não há uma única vida que cuja impunidade possa ser assegurada actualmente. Existem leis, códigos e decisões de jurisprudência que tornam punível toda a existência; basta para tal que sejam aplicados à letra.


Nós não estamos dispostos a apostar que lá onde cresce o deserto cresce também aquilo que salva. Nada pode aparecer que não comece à partida pela secessão com tudo o que faz crescer esse deserto. Sabemos que construir uma potência de certa amplitude levará o seu tempo. Há bastantes coisas que já não sabemos fazer. Para dizer a verdade, tal como todos os beneficiários da modernização e da educação dispensadas nas nossas contrariedades desenvolvidos, nós não sabemos fazer praticamente nada. Mesmo colher plantas para lhes dar, não uma utilização decorativa mas sim culinária ou medicinal, passa na melhor das hipóteses como arcaico e, na pior, como simpático.
Fazemos uma constatação simples: qualquer um dispõe de uma certa quantidade de riquezas e saberes tornados acessíveis pelo simples facto de habitar nestes domínios do velho mundo, e pode comunizá-los. A questão não é de viver com ou sem dinheiro, de roubar ou comprar, de trabalhar ou não, mas sim de utilizar o dinheiro que temos para aumentar a nossa autonomia relativamente à esfera mercantil. E se nós preferimos roubar a trabalhar, e auto-produzir a roubar, não é por buscarmos a pureza. É porque os fluxos de poder que duplicam os fluxos de mercadorias, a submissão subjectiva que condiciona o acesso à sobrevivência, se tornaram exorbitantes.
Haverá certamente formas inapropriadas de dizer o que nós almejamos: nós não queremos ir viver para o campo nem reapropriarmo-nos dos saberes ancestrais e acumulá-los. O nosso objectivo não é apenas uma reapropriação de meios. Nem uma reapropriação de saberes. Se juntássemos todos os saberes e as técnicas, toda a criatividade desenvolvida no campo do activismo, não obteríamos um movimento revolucionário. É uma questão de temporalidade. Uma questão de construir as condições nas quais uma ofensiva se possa alimentar sem desfalecer, de estabelecer solidariedades materiais que nos permitam persistir.


Acreditamos que não existe revolução sem a constituição de uma potência material comum. Não ignoramos o anacronismo desta crença. Sabemos que é demasiado cedo e, também, que é demasiado tarde, e é por isso que temos tempo.
Nós deixámos de esperar.



Proposta IV

Situamos o ponto de inversão, a saída do deserto, o fim do Capital na intensidade da ligação que cada um consegue estabelecer entre o que vive e o que pensa. Contra os defensores do liberalismo existencial, não aceitamos que se trate de uma questão privada, um problema individual, uma questão de carácter. Antes pelo contrário, o ponto de partida é a certeza de que a ligação depende da construção de mundos partilhados, do facto de pôr em comum meios efectivos.

Anotação

Cada um de nós tem que admitir, quotidianamente, o quanto esta questão da “relação entre a vida e o pensamento” é ingénua, está ultrapassada e, no fundo, comprova uma pura e simples ausência de cultura. Vemos aqui um sintoma. Porque esta evidência não é mais do que um dos efeitos da redefinição liberal, tão fundamentalmente moderna, da distinção entre o público e o privado. O liberalismo erigiu como princípio que tudo deveria ser tolerado, que tudo pode ser pensado, desde que não tenha consequências directas na estrutura da sociedade, nas suas instituições e no poder de Estado. Qualquer ideia pode ser aceite, a sua expressão até deverá ser favorecida, desde que as regras do jogo social e do Estado sejam aceites. Por outras palavras, a liberdade de pensamento do indivíduo deve ser total, a sua liberdade de expressão também, mas, o mesmo indivíduo não pode querer consequências do seu pensamento, no que diz respeito à vida colectiva.


O liberalismo até pode ter inventado o indivíduo, mas inventou-o desde logo mutilado. O indivíduo liberal, aquele que nunca se exprime tão bem hoje em dia como quando se encontra nos movimentos pacifistas e cívi- cos, é aquele que é suposto ter apego pela sua liberdade, na exacta me- dida em que essa liberdade não seja comprometedora, e sobretudo que não procure impor-se aos outros. O preceito estúpido de que “a minha liberdade acaba onde começa a dos outros” é tido hoje como uma ver- dade intransponível. Até John Stuart, que é no entanto um dos pilares essenciais da conquista liberal, notou que dela decorre uma infeliz con- sequência: é permitido desejar tudo, com a condição que não seja desejado intensamente demais, que não passe os limites da esfera privada ou, em todo o caso, os da “liberdade de expressão” pública.


O que nós chamamos liberalismo existencial, é a adesão a uma série de evidências no centro das quais surge uma disponibilidade essencial do sujeito para a traição. Fomos habituados a funcionar em fraca potência, o que nos torna antecipadamente disponíveis à própria ideia de traição. Este regime emocional em fraca potência foi a condição que aceitámos como garante de nos tornarmos adultos. Acrescentando, para os mais zelosos, a miragem de uma autarcia afectiva como ideal intransponível. Para os que mantêm uma relação com as promessas, trazidas sem dúvida desde a infância e que continuam a acompanhá-los, há portanto muito a atraiçoar.


Por entre as evidências liberais, há a de se comportar, até mesmo em relação às suas próprias experiências, como um proprietário. É por isso que não se comportar como um indivíduo liberal, é antes de mais, não estar agarrado às suas propriedades. Ou então tem que se dar um outro sentido a “propriedade”: não como aquilo que me pertence, mas como o que me liga ao mundo e que nesse sentido não me é reservado, nem tem nada que ver com a propriedade privada nem com o que é suposto definir uma identidade (o “Eu sou assim” e a sua confirmação: “Isto és mesmo tu!”). Se rejeitamos a ideia de propriedade individual, nada temos contra a afeição. A exigência de apropriação ou reapropriação reduz-se, para nós, à questão do que nos é apropriado, ou seja, adequado em termos de uso e necessidade, em relação a um local, a um momento de mundo. O liberalismo existencial é a ética espontânea adequada à social- democracia encarada como ideal político. O melhor cidadão é aquele que é capaz de renunciar a uma relação ou a um combate para não perder o seu lugar. O que implica por vezes sofrimento, mas é precisamente nisto que o liberalismo existencial é eficaz: na previsão dos remédios para os mal-estares que gera por si próprio. O cheque para a Amnistia, o pacote appel.indd 26 08/04/24 21:02:04 de café do comércio justo, a manifestação contra a guerra em curso, beber Daniel Mermet, são tudo não-acções disfarçadas em gestos de salvação. Façam exactamente o que costumam fazer, ou seja, vão para os espaços disponibilizados e façam as vossas compras, as mesmas de sempre, mas para além disso, em suplemento, convençam-se da vossa boa consciência; comprem no logo, boicotem Total Fina Elf, o que deverá ser suficiente para ficar persuadido de que, no fundo, a acção política não é muito difícil, e que você também é capaz de “se envolver”. Nada de novo neste comércio da indulgência, a dificuldade começa quando se tenta ver com clareza no meio desta confusão. A cultura invocatória do outro mundo possível, o pensamento de Max Havelaar deixam pouco espaço para falar de ética de outra forma senão à volta da etiqueta. A multiplicação das associações ambientalistas, humanitárias e de solidariedade vem oportunamente canalizar um mal estar generalizado e contribuir assim para a perpetuação do estado actual das coisas, pela valorização pessoal, o reconhecimento e seu lote de apoios “honestamente” recebidos, em resumo, pelo culto da utilidade social. O principal é que haja mais inimigos. Ou pelo menos uns problemas, abusos ou até mesmo catástrofes, perigos dos quais somente os dispositivos do Estado nos podem proteger.


Se a obsessão dos fundadores do liberalismo era a eliminação das seitas, é porque nelas se reuniam todos os elementos subjectivos cuja ostracização constituía condição de existência do Estado moderno. Para um sectário, antes de mais, a vida é precisamente o que se pode adequar ao que o pensamento considerado correcto possa vir a exigir - nomeadamente uma certa atitude perante as coisas e os acontecimentos, uma maneira de não perder de vista o que realmente importa. Há uma concomitância entre o aparecimento da ‘sociedade’ (e do seu correlato: a ‘economia’) e a redefinição liberal das esferas pública e privada. A colectividade sectária é por si só uma ameaça para o que o pleonasmo “sociedade liberal” appel.indd 27 08/04/24 21:02:04 designa. E isto, na medida em que ela é uma forma de organização da secessão. O pesadelo dos fundadores do Estado moderno consiste no seguinte: uma parte da colectividade desliga-se de tudo, arruinando a ideia de uma unidade social. Há duas coisas que a “sociedade” não pode suportar: que um pensamento possa ser incorporado, isto é, que possa tomar forma numa existência enquanto conduta ou maneira de viver; que essa incorporação possa não só ser transmitida mas também partilhada e tornada comunitária. Não é preciso mais para que NOS habituemos a desqualificar como “seita” toda e qualquer experiência colectiva fora do controlo.


A evidência do mundo de mercado imiscuiu-se por toda a parte. Evidência essa que é o instrumento mais operacional para desassociar os objectivos e os meios para, desta forma, veicular a “vida quotidiana” como um espaço de existência que temos somente de gerir. Aquilo a que supostamente queremos voltar é à vida quotidiana, assim como à aceitação de uma neutralização necessária e universal. É uma parte cada vez maior da renúncia a uma possível felicidade não diferida. Como diz um amigo: é a média de todos os nossos crimes possíveis.
São raras as colectividades que podem escapar ao abismo que as espera, ou seja a queda a pique na banalidade plana do real, a comunidade como o cúmulo da intensidade mediana, o retorno da lenta desagregação preenchida por um qualquer galanteio desajeitado.
A neutralização é uma característica fundamental da sociedade liberal. Os núcleos de neutralização, onde se requer que as emoções sejam comedidas, onde todos têm que se conter, toda a gente os conhece e, pior do que isso, toda a gente os vive como tal: empresas (e o que é que hoje não é empresa?), discotecas, locais de actividades desportivas, centros culturais, etc. Se concordamos que todos sabemos o que podemos esperar destes locais, a questão que se põe é: porque é que continuam a ser tão frequentados? Porquê, sempre e acima de tudo, esta preferência pelo “que nada se passe”, que nada aconteça que seja susceptível de provocar abalos muito profundos? por hábito? por desespero? por cinismo? Ou ainda: porque podemos assim saborear o prazer de estar algures sem estar lá, de estar aqui estando essencialmente noutro lugar; porque no fundo, o que nós somos estaria a tal ponto preservado que não precisa mais de existir.


São estas as questões “éticas” que têm, antes de mais, de ser levantadas, as mesmas que voltamos a encontrar até no coração da política: como responder à neutralização afectiva, a essa dos efeitos potenciais de pensamentos decisivos? E também: como é que as sociedades modernas manipulam estas neutralizações, ou melhor, as utilizam como um mecanismo essencial para o seu funcionamento? Como é que as nossas tendências para o atenuamento substituem em nós e até nas nossas experiências colectivas, a efectividade material do império?


A aceitação destas neutralizações pode muito bem andar de mão dada com grandes intensidades de criatividade. Pode fazer-se experiências até enlouquecer, com a condição de se ser uma singularidade criadora, e de produzir em público a prova dessa singularidade (as “obras”). Pode-se até experienciar o significado de abalo, mas com a condição de o viver sozinho, e no máximo transmiti-lo indirectamente. Será então reconhecido como um artista ou um pensador e, por pouco que esteja “comprometido”, poderá mandar ao mar todas as garrafas que quiser, com a boa consciência de quem vê mais além e avisou os outros.


Já todos sabemos por experiência que os afectos bloqueados numa “interioridade” podem azedar: podem até transformar-se em sintomas. Podemos observar em nós uma certa rigidez que vem das barreiras que cada um se julga obrigado a erigir como que para marcar os limites da sua pessoa, e para conter o que não deve sair para fora (de si). Quando, por qualquer razão, essas barreiras racham e partem, então algo acontece, algo que pode ser assustador, que talvez até tenha a haver com o susto, mas um susto capaz de nos libertar do medo. O questionamento dos limites individuais ou das fronteiras estabelecidas pela civilização pode revelar-se uma salvação. Pôr o corpo em risco é algo que faz parte da existência de toda a comunidade material: quando já não se consegue atribuir a ninguém os afectos e os pensamentos, quando como que se restabelece uma circulação, na qual, independentemente dos indivíduos, transitam ideias, afectos, impressões e emoções. É preciso apenas perceber que a comunidade, tal como está, não é a solução: antes, é o seu desaparecimento, constante e em todo o lado, que constitui o problema.


Não percepcionamos os seres humanos isolados uns dos outros, nem dos outros seres deste mundo; vemo-los ligados por múltiplos apegos que aprenderam a negar. Essa negação permite bloquear a circulação afectiva pela qual estes múltiplos apegos se vivenciam. Este bloqueio é por sua vez necessário para que se ganhe o hábito de um regime de intensidade o mais neutro, insonso, mediano, o que pode fazer nascer o desejo de férias, voltar a encarar as refeições ou as noites de relaxamento como um benefício – ou seja como algo de igualmente neutro, mediano e insonso, mas livremente decidido. Deste regime de intensidade muito ocidentalizado, verdade seja dita, se alimenta a ordem imperial.


Poderão dizer-nos: ao fazer a apologia das intensidades emocionais vividas em comum, vamos ao encontro do que os seres vivos reivindicam para viver, nomeadamente a calma e a delicadeza – vendidas aliás muito caro, como se de produtos rarefeitos se tratasse. Se queremos com isto dizer que este nosso ponto de vista é incompatível com os lazeres autorizados, até mesmo os fanáticos dos desportos de Inverno vos dirão que ver arder todas as estâncias de ski e devolver o espaço às marmotas, não seria uma grande perda. Pelo contrário, não temos nada contra a delicadeza e a doçura que cada ser vivo enquanto vivo contém em si. “Talvez a vida seja algo de delicado e doce”, qualquer ervinha sabe isto melhor do que todos os cidadãos neste mundo.

Proposta V

Opomos, a qualquer preocupação moral, a qualquer puritanismo, a elaboração colectiva de uma estratégia.
Só é mau o que prejudica o crescimento da nossa força.
Deixar de distinguir economia e política faz parte desta resolução.
A perspectiva de formar gangs não nos amedronta; mas diverte-nos mais a de passarmos por máfia.

Anotação

(página 33)

Proposta VI

Por um lado, queremos viver o comunismo; por outro, gostaríamos de espalhar a anarquia.

Anotação

(página 41)

Proposta VII

O comunismo é possível a qualquer momento.
Aquilo a que chamamos «História» não foi até hoje senão o conjunto dos desvios inventados pelos humanos para o esconjurar. Que esta «História» se resuma após um século a uma acumulação variada de desastres, e apenas a isso, revela com clareza que a questão comunista não mais pode ser suspensa. É essa suspensão que se torna necessário, por sua vez, suspender.

Anotação

(página 49)


Referências

  1. A palavra appel, que no título se manteve no original, é no texto traduzido por apelo.
  2. “L ́évidence est ce qui se partage ou partage” no original.
  3. [nt] Em francês Ratonnade, palavra utilizada para designar agressões xenófobas de europeus a imigrantes magrebinos.


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