Capítulo IX (Alegria Armada)
«"Do it yourself./Faça você mesmo"»
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(Manual "Bricoleur")
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É fácil. Pode fazer você mesmo. Sozinho ou com alguns companheiros de confiança. Não são necessários meios complicados. Nem mesmo grande conhecimento técnico. O capital é vulnerável. Tudo o que precisa é estar decidido. Uma data de conversa nos tornou obtusos.
Não é uma questão de medo. Nós não estamos com medo, apenas estupidamente cheios de ideias pré-fabricadas, das quais não nos conseguimos libertar. Alguém que esteja disposto a levar a cabo a sua ação não é uma pessoa corajosa. É simplesmente alguém que clareou as suas ideias, que percebeu que não faz sentido fazer tamanho esforço para representar a parte que lhe foi incumbida pelo capital nesta performance. Completamente consciente, essa pessoa ataca com uma calma determinação. E, ao fazê-lo, realiza-se como ser humano. Mesmo que crie destruição e terror aos patrões, no seu coração e nos corações dos explorados existe prazer e calma. As organizações revolucionárias têm dificuldade em perceber isto. Elas impõem um modelo que reproduz a realidade da produção. O destino quantitativo desta impede-as de obter qualquer movimento qualitativo para o nível da dimensão estética do prazer.
Estas organizações vêem também o ataque armado de um ponto de vista puramente quantitativo. Os objetivos são decididos em termos de um confronto frontal. Desse modo, o capital é capaz de controlar qualquer emergência. Pode até dar-se ao luxo de aceitar as contradições, de se focar em objetivos espetaculares, de explorar os efeitos negativos nos produtores de forma a alargar o espetáculo. O capital aceita o confronto no campo quantitativo, pois é aí que ele conhece todas as respostas. Tem um monopólio das regras e produz ele mesmo as soluções.
Pelo contrário, o prazer do ato revolucionário é contagiante. Espalha-se como uma mancha de óleo. O divertimento ganha significado quando atua na realidade. Mas este significado não está cristalizado num modelo que o governa desde cima. Ele divide-se em milhares de significados, todos produtivos e instáveis. As ligações internas do divertimento descobrem-se a si mesmas na ação de ataque. Mas o sentido global mantêm-se, o significado que o divertimento tem para aqueles que são excluídos e que querem apropriar-se dele. Aqueles que decidem, primeiro que tudo, se divertir, e aqueles que “observam” as consequências libertadoras do jogo, são essenciais ao próprio jogo. A comunidade do prazer está estruturada desta forma. É uma forma espontânea de entrar em contato, fundamental para a realização do mais profundo significado do divertimento. O divertimento é um ato comunitário. Raramente se apresenta como um fato isolado. Se o faz, muitas vezes contém os elementos negativos da repressão psicológica; não é uma aceitação positiva do divertimento como momento de luta criativo. É o sentido comunitário do divertimento que evita a arbitrariedade na escolha da significância dada ao próprio jogo. Na ausência de uma relação comunitária, a pessoa poderia impor as suas próprias regras e significados, que seriam incompreensíveis para todas as outras, simplesmente tornando o divertimento numa suspensão temporária das consequências negativas dos seus problemas individuais (os problemas do trabalho, da alienação, da exploração).
No acordo comunitário, o divertimento é enriquecido por um fluxo de ações recíprocas. A criatividade é maior quando advém de imaginações libertadas reciprocamente verificadas.
Cada nova invenção, cada nova possibilidade, pode ser vivida coletivamente sem modelos pré-constituídos, e ter uma influência vital, mesmo sendo apenas um momento criativo, mesmo que se depare com mil dificuldades durante a sua realização. Uma tradicional organização revolucionária acaba por impor os seus técnicos. Tende inevitavelmente para a tecnocracia.
A grande importância dada ao aspecto mecânico da ação a condena ao longo deste caminho. Uma estrutura revolucionária que procura o momento de prazer na ação levada a cabo com o objetivo de destruir o poder, considera as ferramentas usadas para alcançar esta destruição apenas isso, meios. Aqueles que usam estas ferramentas não devem tornar-se escravos delas.
Assim como aqueles que não as sabem usar não se devem tornar escravos dos que o sabem. A ditadura da ferramenta é o pior tipo de ditadura. As armas mais importantes dos revolucionários são a sua determinação, a sua consciência, a sua decisão de agir, a sua individualidade. As armas por si só são apenas ferramentas e, como tal, devem ser constantemente submetidas a avaliação crítica. É necessário desenvolver uma crítica das armas. Demasiadas vezes vimos a santificação da arma semi-automática e da eficiência militar. A luta armada não envolve armas apenas. Estas por si só não conseguem representar a dimensão revolucionária. É perigoso reduzir uma complexa realidade a uma só coisa. Na verdade, o divertimento envolve este risco. Ele pode fazer da experiência de viver nada mais do que um brinquedo, tornando-a em algo mágico e absoluto. Não é por acaso que a metralhadora aparece no simbolismo de muitas organizações revolucionárias militantes.
Devemos ir além disto, de forma a perceber o prazer como a profunda significância da luta revolucionária, escapando das ilusões e armadilhas da parte do espetáculo mercantil, através de objetos míticos e mistificados. O capital faz o seu derradeiro esforço quando confrontado com a luta armada. Empenha-se na sua última barreira. Precisa do apoio da opinião pública, de modo a atuar num campo onde não está muito seguro de si mesmo. E, por isso, desencadeia uma guerra psicológica, usando as mais refinadas armas de propaganda moderna. Basicamente, o modo como o capital está fisicamente organizado no presente faz dele vulnerável a qualquer estrutura revolucionária que seja capaz de decidir os seus próprios tempos e meios de ataque. Ele está bem consciente desta fraqueza e está tomando medidas para a compensar. A polícia não é suficiente. Nem mesmo o exército. Isto requer uma vigilância constante por parte das próprias pessoas.
Mesmo da mais humilde parte do proletariado. Assim, para fazer isto, ele tem de dividir a frente de classe. Ele tem de espalhar o mito do perigo das organizações armadas por entre os pobres; e, ao mesmo tempo, o mito da santidade do estado, da moralidade, da lei e por aí fora. Indiretamente, o capital empurra estas organizações e os seus militantes para assumir papéis específicos. Uma vez neste “papel”, o divertimento deixa de ter qualquer significado. Tudo se torna “sério”, logo, ilusório; o divertimento entra no domínio do espetacular e transforma-se numa mercadoria. O DIVERTIMENTO torna-se “máscara”. O indivíduo torna-se anônimo, vive o seu papel, não mais capaz de distinguir entre aparência e realidade. Afim de nos libertarmos do círculo mágico das mercadorias teatrais, nós temos de recusar todos os papéis, incluindo o de revolucionário “profissional”. A luta armada não deve deixar ser ela mesma algo profissional, especificamente, deve impedir a divisão de tarefas que o aspecto externo da produção capitalista lhe quer impor.
“Faça você mesmo”. Não quebre o aspecto global do divertimento reduzindo-o a papéis. Defenda o teu direito de gozar a vida. Obstrua o projeto de morte do capital. Este ultimo pode apenas entrar no mundo da criatividade e do divertimento transformando quem está jogando num “jogador”, o criador vivo numa pessoa morta, que se engana a si mesma ao acreditar que está viva. Não haveria mais sentido em falar sobre divertimento se o “mundo do divertimento” se tornasse centralizado. Devemos prever esta possibilidade de o capital tomar novamente a proposta revolucionária quando lançamos o nosso argumento de “prazer armado”. E uma maneira em que isto poderia acontecer seria através da gestão do mundo do divertimento desde o exterior. Através do estabelecer de papéis dos jogadores e da mitologia do brinquedo. Ao quebrar os laços da centralização (do partido armado), obtém-se o resultado de confundir as idéias do capital, sintonizadas como estão para o código da produtividade espetacular do mercado quantitativo.
Não é nada. Algo sem objetivo preciso, desprovido de realidade. E é assim porque a essência, os objetivos e a realidade do capital são ilusórios, enquanto a essência, os objetivos e a realidade da revolução são concretos. O código da necessidade de comunismo toma o lugar do código da necessidade de produzir. Na luz desta necessidade, na comunidade do divertimento, as decisões da pessoa tornam-se significantes. A irreal personagem ilusória dos modelos da morte do passado é posta a descoberto. A destruição dos chefes significa a destruição das mercadorias, e a destruição das mercadorias significa a destruição dos chefes.
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