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De Protopia
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Espere Resistência
CrimethInc


Tudo começou quando Kate voltou de Seattle e jurou que não pagaria mais aluguel. É claro, tudo começou muito antes disso ― quando Elijah me mostrou como esconder um hambúrguer de frango sob a salada para que eu tivesse condições de pagar por um almoço completo da cantina da escola, quando o pai de Kate telefonou para a companhia de energia elétrica e mandou eles desconectarem sua casa, quando Pablo saiu às pressas do aeroporto ao invés de pegar o avião para encontrar seu chefe ― mas essas revoltas pessoais não tinham nada em comum até que nos conhecemos no acampamento.


Kate não era estudante; depois do ensino médio ela teve vários empregos no setor de vendas. Ela então descobriu uma paixão por jardinagem ecológica e acabou indo morar em casas coletivas com estudantes e ativistas ambientais que tinham muito mais dinheiro que ela. Ela quase morria tentando pagar as contas que os outros mal percebiam. Ela conhecia pessoas que tinham jurado não pagar mais aluguel antes, mas a maioria delas eram de famílias mais ricas e podiam contar com uma grande rede de sofás mantidos por outros como eles. Kate decidir que poderia fazer a mesma coisa foi pura loucura.


Um dos estudantes com quem Kate morou estava envolvido na campanha anti-maquiladoras do campus, e a administração ainda estava enrolando para cumprir os acordos do ano anterior. O assunto surgiu na festa de aniversário de alguém, e Kate sugeriu que os estudantes montassem um acampamento de protesto que podia também funcionar como moradia. Eu nunca esperei que eles estivessem dispostos a isso, mas três dias mais tarde Kate estava montando sua barraca no pátio com uma grande faixa do lado e estudantes ativistas estavam passando lá no intervalo das aulas para segurar placas e distribuir panfletos.


Duas semanas depois, ficou claro para que a administração não tinha a menor intenção de cumprir suas promessas; eles estavam simplesmente esperando que os manifestantes retornassem aos seus dormitórios. Pouco sabiam o que estava fermentando lá no pátio! Quando começou a parecer que o acampamento iria durar, outras pessoas começaram a aparecer, trazendo com elas uma empolgante mistura de idéias e determinação. Os novatos tinham uma idéia de política diferente dos estudantes ativistas ― eles não estavam apenas interessados em mudar a política da escola, mas também em mudar as suas próprias vidas e o que mais estivesse ao alcance. Como Kate, eles estavam mais interessados em continuar com a ocupação do que chegar a um acordo com a administração.


Eu e meus amigos estávamos esperando para fazer algo com os excessos da cidade, a comida, os móveis e os materiais de construção que juntávamos em nossas incursões em seu ventre macio; nós os transformávamos em refeições e equipamento de camping e os levávamos para o campus como nossa contribuição. Nós convidamos outras pessoas para irem conosco em nossas saídas, e logo estávamos trazendo mais coisas do que era necessário. Começamos a dar pacotes para os funcionários da cantina e da manutenção levarem para suas casas, e depois passamos a fazer entregas nos seus bairros.


Na semana seguinte, representantes da escola se aproximaram dos organizadores da campanha anti-maquiladoras, oferecendo-se para negociar se eles acabassem com a ocupação. Quando eles nos contaram a respeito, nos recusamos a ceder; os estudantes tinham que anunciar que a ocupação iria continuar, ou então se saberia que manifestantes que não eram estudantes tinham se infiltrado. Finalmente, a administração ameaçou remover o acampamento com ou sem a cooperação dos estudantes.


Eles esperaram tempo demais para agir. Havia artigos sobre o acampamento em todos os jornais; se a escola mandasse a polícia contra a gente, eles teriam que responder a uma audiência nacional. Mais importante, nós fizemos conexões com as pessoas invisíveis que mantinham a infraestrutura que dava vida à escola. Uma greve estava fermentando entre os trabalhadores do campus; nós já tínhamos dado garantias àqueles que conhecíamos de que poderíamos ajudá-los com comida e apoio durante a greve.


O acampamento se tornou um nervo central para uma comunidade que não existia até o momento em que começamos a levantar nossas cabeças. Eu e meus amigos começávamos os dias na biblioteca, utilizando uma falha do laboratório de informática para imprimir centenas de panfletos e filipetas. Nós levávamos este material para o acampamento e os púnhamos em uma mesa de literatura grátis; toda a tarde discutíamos política, economia e libertação com os estudantes que apareciam. À noite, nos encontrávamos com os trabalhadores do campus e com outras pessoas do local. Estes encontros às vezes terminavam em amargos conflitos sobre até onde poderíamos ir, quais eram nossos objetivos e quais acordos valia a pena aceitar; nem todo estudante, manifestante ou trabalhador estava pronto para um confronto direto com as autoridades, mas aqueles que estavam se encontraram e fizeram planos. Diego e eu terminávamos as noites dirigindo, passando por todos os mercados da cidade; os empregados de alguns deles começaram a separar grandes caixas de comida para nós.


Juntos viajamos ao limite extremo das nossas noções do que era possível; nosso acampamento estava na extremidade mais distante delas. Graduandos de ciências políticas começaram a se preocupar mais com os aspectos práticos da luta contra o poder hierárquico do que com objeções teóricas a ela levantadas por seus professores. Estudantes de antropologia começaram a enxergar suas próprias vidas como experimentos de socialização subversiva. Criminosos e marginais visualizaram um guildo de ladrões que poderia coordenar ações por toda a cidade para dar poder a uma economia alternativa baseada em presentes. Chefes de cozinha fantasiaram sobre serem capazes de cozinhar tudo que quisessem para as pessoas e o que mais lhes importava; lavadores de pratos, como eu, descobriram como era mais gratificante lavar de graça os pratos dos nossos amigos do que lavar os de estranhos em troca de dinheiro. Nosso olhar ia além de nossas barracas, para os prédios que as cercavam: eles também podiam ser nossos.


Quando eu era criança, eu tinha uma fantasia na qual um mensageiro vinha me resgatar. Ele aparecia sem avisar e sussurrava, em uma voz que só eu ouvia, "Pegue suas coisas, eu vim para te levar para casa." Algum tempo depois, sempre que eu passava por um carro vazio, com a ignição ligada, eu me imaginava entrando nele e dirigindo para muito, muito longe. E mais tarde, eu contemplava o suicídio, que é o que os adultos fazem quando eles não conseguem mais agüentar suas vidas mas não conseguem ver como mudá-las. Diego e eu estávamos voltando de um prédio em obras, com o porta-malas cheio de material para fazer barricadas quando eu me dei conta de quanto tempo já fazia que eu não tinha mais esse tipo de pensamento. Meu companheiro atrás do volante era o mensageiro; o veículo em que andávamos era aquele carro roubado; minha antiga vida tinha ficado para trás, e eu ainda estava vivo.


Quando eles finalmente nos despejaram, nós pensamos que ninguém poderia nos deter. Kate e eu estávamos apaixonados, estudantes estavam largando a faculdade, os trabalhadores estavam em greve, e todo o campus estava em reviravolta. Nós ríamos como bêbados na traseira do camburão, brincando sobre o que faríamos a seguir. Ainda iríamos descobrir a enormidade dos nossos oponentes.


Ao sair da delegacia naquela noite, nós tremíamos no ar gelado, e de repente todas as coisas no mundo que nunca tínhamos notado antes ficaram evidentes. Havia nuvens de tempestade à frente, amontoados de neve branca refletiam as luzes da cidade quando passavam por nós; eles nos falavam de outras terras, coisas por vir, dias à nossa frente quando tudo seria muito diferente do que conhecíamos ― principalmente nós mesmos.