Contra a Legalização

De Protopia
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Hakim Bey
(Original em inglês)


Como escritor, estou angustiado e abatido pela suspeita de que "mídia dissidente" se tornou uma contradição em termos — uma impossibilidade. No entanto, não devido a nenhum triunfo da censura, pelo contrário. Não há real censura em nossa sociedade, como aponta Chomsky. A supressão da dissidência é, ao invés, paradoxalmente alcançada por se permitir que a mídia absorva (ou "coopte") todo o dissidente como uma imagem.


Uma vez processada como mercadoria, toda rebelião é reduzida à imagem de rebeldia, primeiro como espetáculo, e por último como simulação. (Ver Debord, Baudrillard, etc) Quanto mais poderosa for a dissidência como arte (ou "discurso"), mais impotente torna-se como mercadoria. Em um mundo de capital globalizado, onde todos os meios de comunicação funcionam coletivamente como o espelho perfeito do Capital, podemos reconhecer uma Imagem global ou imaginário universal, universalmente mediado, sem qualquer limite ou margem. Toda Imagem caiu sob o Cerco, e como resultado, parece que toda a arte tornou-se impotente na esfera do social. Na verdade, já não podemos sequer supor a existência de qualquer "esfera do social". Todas as relações humanas podem ser e são expressas como relações mercantis.


Nessa situação, pareceria que a "reforma" se tornou também uma impossibilidade, já que todos os melhoramentos parciais da sociedade serão transformadas (pelo mesmo paradoxo que determina a Imagem global) em meios de sustentar e elevar o poder da mercadoria. Por exemplo, "reforma" e "democracia" agora se tornaram palavras-chave para a forçosa imposição das relações mercantis nos antigos Segundo e Terceiro Mundos. "Liberdade" significa liberdade de corporações, não de sociedades humanas.


Desse ponto de vista, coloquei ressalvas sobre o programa de reforma dos Guerreiros anti-Drogas e legalizacionistas. Eu iria ainda mais longe dizer que sou "contra a legalização".


Não é preciso acrescentar que eu considero a guerra contra as drogas uma abominação, e que demandaria anistia imediata e incondicional a todos os "prisioneiros da consciência" — assumindo que tenho qualquer poder para fazer exigências! Mas em um mundo onde toda a reforma pode ser instantaneamente transformada em novos meios de controle, de acordo com o "paradoxo" resumido nos parágrafos anteriores, não faz o menor sentido exigir a legalização simplesmente porque parece racional e humano.


Por exemplo, considere o que poderia resultar da legalização da "maconha medicinal" — claramente a vontade do povo em pelo menos seis estados [norte-americanos]. A erva iria instantaneamente cair em drásticas novas regulamentações "Superiores" (a AMA[1], as cortes, companhias de seguro, etc.). A Monsanto provavelmente adquiriria as patentes de DNA e "propriedade intelectual" da estrutura genética da planta. Leis provavelmente ficariam mais rígidas contra maconha ilegal para "uso recreativo". Fumantes seriam definidos (por lei) como "doentes". Como uma mercadoria, a Cannabis seria logo desnaturada como outros psicotrópicos legais como café, tabaco, ou chocolate.


Terence McKenna uma vez colocou que toda a pesquisa útil sobre psicotrópicos é conduzida ilegalmente e é frequentemente e amplamente financiada pelo underground. A legalização faria possível um controle muito mais cerrado sobre todas as pesquisas sobre drogas. As valiosas contribuições do underground enteogênico seriam provavelmente reduzidas ou cessadas todas. Terence sugeriu que parássemos de desperdiçar tempo e energia peticionando as autoridades por permissão para fazer o que estamos fazendo, e simplesmente continuássemos com isso.


Sim, a Guerra Contra as Drogas é má e irracional. Não nos esqueçamos, entretanto, que, como atividade econômica, a Guerra faz muito sentido. Não vou nem mencionar a explosão da "indústria de condenações", os inchados orçamentos da polícia e dos serviços de inteligência, ou os lucros dos cartéis farmacêuticos. Economistas estimam que por volta de dez por cento da circulação do capital no mundo é "dinheiro cinza" derivado de atividades ilegais (principalmente venda de drogas e armas). Essa área cinzenta é na verdade um tipo de fronteira flutuante para o próprio Capital globalizado, uma pequena onda que precede a grande onda e provê seu "senso de direção". (Por exemplo, o dinheiro cinza ou o capital dos paraísos fiscais é sempre o primeiro a migrar dos mercados em queda aos mercados prósperos.) "A Guerra é a saúde do Estado" como Randolph Bourne uma vez disse – mas a guerra não é mais tão rentável como nos velhos dias de pilhagem, tributos e escravidão. A Guerra Econômica cada vez mais toma seu lugar, e a Guerra Contra as Drogas é uma quase "pura" forma de guerra econômica. E já que o Estado Neoliberal tem dado tanto poder às corporações e "mercados" desde 1989, pode ser justamente dito que a Guerra Contra as Drogas constitui a "saúde" do próprio Capital.


A partir dessa perspectiva, reforma e legalização iriam claramente ser condenadas ao fracasso por profundas razões "infra-estruturais", e, portanto, toda a agitação por reforma constituiria esforço desperdiçado – uma tragédia de idealismo mal dirigido. O Capital globalizado não pode ser "reformado" porque toda reforma é deformada quando a própria forma é distorcida em sua própria essência. A agitação por reforma é permitida para que a imagem de liberdade de expressão e dissidência permitida possa ser mantida, mas a reforma em si nunca é permitida. Anarquistas e marxistas estavam certos em defender que a própria estrutura deve ser modificada, não meramente suas características secundárias. Infelizmente o próprio "movimento do social" parece ter falhado, e mesmo suas profundas estruturas subjacentes devem ser agora "reinventadas" quase de rabiscos. A Guerra Contra as Drogas vai continuar. Talvez devêssemos considerar como agir como guerreiros mais do que como reformadores. Nietzsche disse em algum lugar que ele não tinha nenhum interesse em derrubar a estupidez da lei, já que tal reforma não deixaria nada ao "espírito livre" realizar – nada a "superar". Eu não iria tão longe a recomendar tal posição existencialista "imoral" e rígida. Mas penso no que poderíamos fazer com uma dose de estoicismo.


Para além (ou à margem) das considerações econômicas, o banimento de (alguns) psicotrópicos pode também ser pensado de uma perspectiva "xamânica". O Capital globalizado e a Imagem universal parecem ser capazes de absorver qualquer "exterior" e transformá-lo em uma área de mercantilização e controle. Mas de alguma forma, por alguma estranha razão, o Capital parece incapaz ou sem vontade de absorver a dimensão enteogênica. Ele persiste em fazer guerra contra substâncias alteradoras da consciência ou transformativas, ao invés de tentar "cooptar" e hegemonizar seu poder.


Em outras palavras, parece que uma espécie de poder autêntico está em jogo aqui. O Capital globalizado reage a esse poder com a mesma estratégia básica que a Inquisição – tentando suprimi-lo de fora ao invés de controlá-lo de dentro. (o "Projeto MKULTRA" foi a tentativa secreta do governo de penetrar no interior do psicotropismo – e parece que ter falhado miseravelmente.) Em um mundo que foi abolido o Exterior pelo triunfo da Imagem, parece que pelo menos um "exterior" ainda assim persiste. O Poder pode lidar com esse exterior apenas como uma forma de inconsciente, i.e., por supressão ao invés de compreensão. Mas isso deixa aberta a possibilidade de que aqueles que conseguem atingir a "consciência direta" desse poder possam realmente ser capazes de dominá-lo e implementá-lo. Se o "neo-xamanismo enteogênico" (ou como quiser chamar) não pode ser traído e absorvido pela estrutura de poder da Imagem, então poderíamos hipotetizar que ele representa um genuíno Outro, uma alternativa viável ao "único mundo" do triunfante Capital. Ele é (ou poderia ser) a nossa fonte de poder.


A "Magia do Estado" (como chama M. Taussing), que é também a magia do próprio Capital, consiste em controle social através da manipulação de símbolos. Isso é atingido através de mediação, incluindo o instrumento definitivo, dinheiro como texto hieroglífico, dinheiro como pura Imaginação, como "ficção social" ou alucinação de massa. Essa ilusão real tem tomado o lugar tanto da religião quanto da ideologia, como fontes ilusórias de poder social. Esse poder possui portanto (ou é possuído por) um objetivo secreto; que todas a relações humanas sejam definidas de acordo com essa mediação hieroglífica, essa "magia". Mas o neo-xamanismo propõe com toda seriedade que outro meio mágico pode existir, um efetivo estado de conscicência que não pode ser enfeitiçado pelo signo da mercadoria. Se assim fosse, ajudaria a explicar porque a Imagem parece incapaz ou relutante a lidar "racionalmente" com a "questão das drogas". Na verdade, uma análise mágica do poder pode emergir da observação do fato dessa radical incompatibilidade do Imaginário global e a consciência xamânica.


Em tal circunstância, em que poderia nosso poder consistir em termos empíricos reais? Estou longe de propor que "vencer" a Guerra Contra as Drogas de alguma forma constituiria A Revolução – ou mesmo que o "poder xamânico" poderia contestar a magia do Estado de qualquer forma estratégica. Claramente, entretanto, a própria existência do enteogenismo como uma verdadeira diferença – em um mundo onde a verdadeira diferença é negada – marca a validade história de um Outro, de um autentico Exterior. No (improvável) evento de legalização, esse Exterior seria violado, inserido, colonizado, traído e transformado em pura simulação. Uma maior fonte de iniciação, ainda acessível em um mundo aparentemente desprovido de mistério e de vontade, seria dissolvida em uma representação vazia, um pseudo-rito de passagem para a eterna/ilimitada clausura da Imagem. Em resumo, teríamos sacrificado nosso potencial poder pela falsa reforma da legalização, e não ganharíamos nada com isso, a não ser o simulacro da tolerância à custa do triunfo de Controle.


Novamente: não tenho ideia de qual deve ser nossa estratégia. Acredito, contudo, que o tempo veio admitir que um tática de mera contingência não pode mais nos sustentar. "Dissidência tolerada" se tornou uma categoria vazia, e reforma meramente uma máscara para recuperação. Quanto mais lutamos nos termos "deles", mais perdemos. O movimento pela legalização das drogas nunca ganhou uma única batalha. Não nos Estados Unidos de qualquer maneira – e os Estados Unidos são a "única superpotência" do Capital Global. Orgulhamo-nos de nosso status de intrusos ou marginais, como guerrilheiros ontológicos; porque então continuamente imploramos por legitimidade e validação (seja como "prêmio" ou como "punição") da autoridade? Que bem isso nos faria se nos fosse concedido esse status, essa "legalidade"?


O movimento da Reforma tem mantido verdadeira racionalidade e defendido reais valores humanos. Honra onde honra é devida. Dado o profundo fracasso do movimento, no entanto, não seria oportuno dizer algumas palavras pelo irracional, pela selvageria irredutível do xamanismo, e até mesmo uma única palavra dos valores do guerreiro? "Não a paz, mas a espada."

Referências

  1. N.T.: Associação Médica Americana.



Traduzido pelo Coletivo Protopia


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