Contra a Reprodução da Morte

De Protopia
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Comunicados da Associação Pró-Anarquia Ontológica
Hakim Bey


Um Dos Sinais da Aproximação do Fim - que tantos parecem esperar - consiste em um fascínio por todos os detritos mais negativos e odiosos da época, um fascínio sentido pelos próprios pensadores que se consideravam os mais perspicazes sobre o assim chamado apocalipse sobre o qual nos alertam. Estou falando de pessoas que conheço muito bem - aquelas da direita espiritual (como os neoguenonianos, com sua obsessão por sinas de decadência) - e aquelas da esquerda pós-filosófica, os neutros ensaístas da morte, profundos conhecedores das artes da mutilação.


Para ambos esses grupos, toda ação possível no mundo é depreciada como mais uma manifestação da coisa de sempre - tudo se torna igualmente sem sentido. Para os tradicionalistas, nada importa a não ser preparar a alma para a morte (não apenas a sua própria, mas também a do mundo todo). Para o crítico cultural, nada importa a não ser o jogo de encontrar uma razão a mais para o desespero, analisá-la, adicioná-la ao catálogo.


O Fim do Mundo é uma abstração porque nunca aconteceu. Ele não tem nenhuma existência no mundo real. Cessará de ser uma abstração apenas quando ocorrer - se ocorrer. (Não pretendo conhecer o pensamento de Deus sobre o assunto - nem possuo qualquer conhecimento científico sobre um futuro ainda não existente.) Vejo apenas uma imagem mental e suas ramificações emocionais; de tal forma que o identifico como um tipo de vírus fantasmagórico, uma estranha doença de mim mesmo, que deve ser eliminada em vez de ser hipocondriacamente cozida em banho-maria e tolerada. Desprezo o Fim do Mundo como um ícone ideológico apontado para minha cabeça pela religião, pelo Estado e pelo meio cultural, como uma razão para não se fazer nada.


Compreendo por que a religião e os poderes políticos querem manter-me tremendo de medo. Já que apenas eles oferecem a única chance de se evitar o ragnarok (através de prece, através da democracia, através do comunismo etc), devo seguir seus ditames como uma ovelha e não ousar nada por mim mesmo. No entanto, o caso dos intelectuais iluminados parece ser, à primeira vista, mais complexo. De que poder eles gozam neste rosário de medo e escuridão, sadismo e ódio?


Essencialmente, eles ganham inteligência. Qualquer ataque a eles parece estúpido, já que apenas eles têm os olhos abertos o suficiente para reconhecer a verdade, apenas eles ousam o suficiente para manifestá-la em desafio aos rudes censores jecas e liberais covardes. Se eu os condeno como parte do mesmo problema que eles clamam estar discutindo objetivamente, serei considerado um capiau, um puritano, um Pollyanna. Se admito meu ódio pelos artefatos de sua percepção (livros, obras de arte, performances), serei dispensado como um mero ser desagradável (e, é claro, psicologicamente reprimido) ou, na melhor das hipóteses, como alguém sem seriedade.


Muitas pessoas supõem que, por eu algumas vezes me expressar como um anarquista amante de rapazes, devo também ter interesse por outras idéias ultrapós-modernas, como assassinato de crianças em série, ideologia fascista, ou as fotografias de Joel P. Witkin. Pressupõem apenas dois lados para qualquer questão - o lado da moda e o lado que não está na moda. Uma marxista que fizesse objeções a todo este culto da morte como algo atiprogressista seria considerado tão tolo quanto um fundamentalista cristão que o considerasse imoral.


Sustento que (como de costume) muitos lados existem para essa questão, mais do que apenas dois. Questões bilaterais (criacionismo versus darwinismo, choice contra pro-life etc.) são todas, sem exceção, ilusões, mentiras espetaculares.


Minha posição é esta: tenho perfeita consciência das inteligência que direciona a ação. Eu mesmo a possuo em abundância. De vez em quando, no entanto, tenho conseguido me comportar como se fosse estúpido o suficiente para tentar mudar minha vida. Algumas vezes usei perigosos entorpecentes, como a religião, a maconha, o caos, o amor pelo rapazes. Em algumas poucas ocasiões alcancei algum grau de sucesso - e digo isso não para me gabar, mas para dar testemunho. Através da destruição dos ícones interiorizados do Fim do Mundo en da Futilidade de toda atividade mundana, tenho (raramente) atingido um estado que (em comparação com tudo que conheço) parece ser um estado de saúde. As imagens de morte e mutilação que fascinam nossos artistas e intelectuais me parecem - à luz da lembrança dessas experiências - tragicamente inapropriadas para o potencial real da existência e do discurso sobre a existência.


A própria existência pode ser considerada um abismo sem sentido algum. Eu não vejo isso como uma afirmação pessimista. Se for verdade, posso tomá-la somente como uma declaração de autonomia para minha imaginação e minha vontade - e para o mais belo ato que elas possam conceber, assim conferir significado para a existência.


Por que eu deveria emblemar esta liberdade com um ato como o assassinato (como fizeram os existencialistas) ou como algum dos gostos demoníacos dos anos 1980? A morte pode apenas me matar uma vez - até lá, estou livre para expressar e experimentar (ao máximo que puder) uma vida e uma arte de viver baseada em experiências de pico autovalorativas e no convívio (que também possui sua própria recompensa).


A replicação obsessiva do imaginário da morte (e sua reprodução ou mesmo mercantilismo) obstrui esse projeto tão veementemente quanto a censura ou a lavagem cerebral feita pela mídia. Ela estabelece circuitos negativos de feedback - é um tabu maligno. Não ajuda ninguém a vencer o medo da morte, e meramente inculca um medo mórbido no lugar do medo saudável que todas as criaturas sensíveis ao farejar sua própria mortalidade.


Não escrevo isso para absolver o mundo de sua fealdade, ou para negar que no mundo existam coisas verdadeiramente aterrorizantes. Mas algumas dessas coisas podem ser vencidas - desde que nós possamos construir uma estética de conquista, em vez de uma estética de medo.


Recentemente assisti a uma performance de poesia/dança gay de uma firme sofisticação: o único dançarino negro da trupe fingia foder uma ovelha morta.


Confesso que parte da minha estupidez auto-induzida é acreditar (e mesmo sentir) que a arte pode me transformar e transformar os outros. É por isso que escrevo pornografia e propaganda - para causar transformação. A arte nunca pode significar tanto quanto uma caso de amor, talvez, ou uma insurreição. Mas... até certo ponto... funciona.


Entretanto, mesmo se eu tivesse desistido de toda esperança na arte, de toda expectativa de exaltação, ainda me recusaria a tolerar uma arte que meramente exacerba minha miséria, ou se apraz no schadenfreude, prazer com a miséria alheia. Eu volto as costas para certo tipo de arte como um cão ase distanciaria uivando do cadáver de seu companheiro. Gostaria de poder renunciar à sofisticação que me permite dar uma cheirada em tal cadáver - com indiferente curiosidade - como mais uma exemplo da decomposição pós-industrial.


Apenas os mortos são verdadeiramente inteligentes, verdadeiramente interessantes. Nada os toca. Enquanto eu viver, no entanto, ficarei do lado da vida sofredora, desonesta e cheia de si, com a raiva em vez do tédio, com a doce luxúria, a fome e o desleixo... contra a vanguarda gelada e suas chiques premonições do sepulcro.


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