Dinâmica de Massas e a Psicologia de Massas da Possibilidade
"Não era uma coluna, mas uma multidão, um terrível rio que encheu as ruas ― o povo do abismo, enlouquecidos pela bebida e pelas injustiças, finalmente de pé e urrando pelo sangue de seus mestres. Eu já havia visto as pessoas do abismo antes, quando passei por seus guetos, e eu achava que as conhecia; mas descobri que agora eu os estava vendo pela primeira vez.
"Este espetáculo de horror fascinante passou pelo meu campo de visão em ondas sólidas de ira, rosnando, carnívoros, bêbados de uísque saqueado de armazéns, bêbados de ódio, bêbados com desejo de sangue ― homens, mulheres e crianças vestidos com trapos e frangalhos, ferozes inteligências pequenas com toda semelhança a deus apagada de suas feições e toda semelhança ao demônio estampada nelas, macacos e tigres, consumistas anêmicos e grandes bestas cabeludas de rostos pesados e pálidos das quais a sociedade vampira sugou o suco da vida, formas inchadas de corrupção e corpos grosseiros, mulheres velhas e murchas e cabeças esqueléticas barbudas como patriarcas, jovens e velhos corrompidos, monstros deformados, desonestos, distorcidos, devastados pela doença e todos horrores da desnutrição crônica ― o lixo e a escória da vida, uma horda demoníaca, histérica, berrante, irada."
― Jack London [socialista, reformista, etc., etc.], The Iron Heel
DINÂMICA DE MASSAS E PSICOLOGIA DA POSSIBILIDADE DE MASSA
Um relato de um movimento espacial,
uma alegoria de um movimento social.
"Um sociólogo é uma autoridade sobre multidões
da mesma forma que um policial é uma autoridade sobre pessoas."
― Bill Buford, Among The Thugs.
Se você for atrás dos especialistas para aprender sobre multidões, você lerá que eles são monstros mentecaptos: pessoas enlouquecidas ou retornadas ao seu estado primitivo, animais fora de controle, rebanhos de ovelhas que devem ser propriamente dominados ou se tornarão bandos de lobos. A gentalha deseja ser atiçada, ser hipnotizada pela sua própria força bruta, e isso é tudo que há para se dizer a respeito. Tal teoria das massas dá a impressão de que os teóricos são meros apologistas para o controle de massas dos seus patrões; a análise é tão unilateral, o tom tão superior, que você pensa que o mais próximo que eles já chegaram do sujeito de seus estudos foi olhando de cima, de janelas estreitas em suas torres de marfim.
E você estaria quase certo. Mas na verdade, eles também estão submersos em uma multidão: é simplesmente uma multidão maior, tão maior que é irreconhecível enquanto o observador estiver dentro dela. As multidões que eles se propõem a explicar são microcosmos dissidentes da mesma forma; e elas só podem ser identificadas como multidões porque elas estão separadas de alguma forma da multidão colossal que é a sociedade do teórico. Inevitavelmente, essas massas menores parecem loucas e irracionais para os especialistas do status quo, porque, por mais breve que seja, eles estão agindo de acordo com um sentido de realidade e valores divergente. Então existem sempre pelo menos duas multidões em qualquer equação: no caso de uma multidão que tumultua e saqueia uma zona comercial, por exemplo, a outra multidão é a que construiu a zona comercial, que é proprietária das lojas e organiza campanhas publicitárias para promover seus produtos, que tomam por certo que a melhor utilidade daquele espaço é para comprar e vender. O fato de que esta massa dominante é também uma multidão, só que uma mais enraizada e institucionalizada, pode só ser visível de fora dela ― como por exemplo, da perspectiva de um dos saqueadores.
A própria realidade é determinada pelo consenso ― ou seja, pelas massas. O que é possível, o que é impossível: isso é decidido coletivamente, de acordo com o que as pessoas acreditam. O mundo que habitamos mão é feito simplesmente de fatos físicos e sensoriais; estes materiais brutos também ganham significado como símbolos, ferramentas, costumes e daí por diante, de seu contexto social, e a resultante floresta de símbolos é a maior parte do que queremos dizer quando falamos em realidade. São estas condições sociais que criam indivíduos, inclusive os valores que influenciam suas escolhas; mas, como estas condições são, por sua vez, resultado de decisões individuais, elas só persistem porque as pessoas escolhem reproduzí-las.
Por que isto acontece, então, no caso de condições sociais notoriamente impopulares como guerra, poluição e empregos miseráveis? Geralmente, as pessoas fazem escolhas baseadas no que elas consideram ser "realista" ao invés de no que desejam, e o que elas consideram realista depende do que elas acreditam que as outras pessoas considerem realista ― é assim que o mercado de ações funciona, por exemplo. Logo, qualquer ordem social depende de um tipo de mentalidade de grupo, uma psicose coletiva ― e não é de nenhuma forma garantida de ser do melhor interesse daqueles envolvidos.
Quando as pessoas não se reconhecem como parte de um grupo, mas se vêem somente como indivíduos soberanos que por puro acaso falam, pensam, votam, compram e sentem da mesma maneira que milhares ou milhões de outras pessoas, eles tendem a ver a realidade como fixa e imutável. Este é o primeiro tipo de multidão, o tipo mais primitivo ― uma multidão que não tem consciência de sua própria existência. Este tipo de multidão não é menos poderoso que qualquer outro tipo, mas o poder que ela tem raramente faz bem a alguém, como nunca é utilizada conscientemente. Multidões deste tipo são caracterizadas por uma inabilidade de questionar suas próprias suposições e por uma total negação da responsabilidade de suas ações; quando oitenta milhões de televisores são ligados em uníssono ao fim do dia, isso é um exemplo de tal multidão em ação.
O segundo tipo de multidão é um grupo que está consciente de sua existência, mas não de seu poder. O bom exemplo disto é a massa de fãs em um evento esportivo ou de entretenimento. As pessoas são capazes de grandes esforços para se reunir em tais situações, para sentir a empolgação no ar quando um grande número de pessoas dividem um espaço e foco em comum.* Não sejamos tímidos a respeito disto: tem algo emocionante em ser parte de uma multidão, algo fundamentalmente prazeroso sobre sentir as suas experiências e reações refletidas nas pessoas ao seu redor. O desapontamento que muitos manifestam em eventos que não têm grande público, indicam uma consciência geral de que é atmosfera gerada pela massa, e não a suposta atração principal, que torna essas coisas interessantes. E ainda assim os membros de tais multidões não vêem a si mesmos como autores das situações que criam. É só o seu dinheiro, a sua presença, o seu interesse que os tornam possíveis, mas eles atribuem esse poder a outros ― os organizadores, os promotores, os Rolling Stones ou o Coríntians.
Mas fãs de esportes nem sempre se limitam a comprar ingressos, cantar hinos, e fazer filas para entrar e sair dos estádios. Algumas vezes eles se deixam levar. Todo organizador que junta uma grande multidão de forma a vender de volta a ela sua própria coletividade corre o risco de que alguns de seus clientes levem as coisas muito longe e se envolvam em seus próprios esportes de rua ― como brigas entre torcidas, por exemplo. Os comentadores de sempre alegam que isto é comportamento barbárico, não civilizado, mas na verdade ele é mais culto, mais civilizado, do que ser um mero observador: estas são pessoas dando início a suas próprias atividades, não apenas seguindo instruções como autômatos. Participando de lutas de rua em grande escala, provocando tumultos e confrontações com a polícia ― estas atividades, de outra forma vazias de sentido, dão aos participantes a oportunidade de formar o terceiro tipo de multidão: a multidão que está ciente de seu próprio poder para determinar a realidade. Esta é a multidão como protagonista, como sujeito ao invés de objeto; o fato de que pessoas participam de atividades tão violentas e desagradáveis por sua própria vontade não é apenas uma prova de quão estragados eles estão, mas também do quão eles estão desesperados para se sentirem como algo além de veículos passívos do comércio. Não é de se surpreender que tal comportamento seja tão contagioso; uma vez que a multidão ganha consciência de sua própria capacidade de reinventar situações, amendoim e pipoca ― até mesmo assentos na primeira fileira ― perdem o seu apelo. Isso não quer dizer que toda multidão enlouquecida seja uma boa multidão ― grupos de linchamento são, também, multidões ― mas somente para nos mostrar como, numa sociedade baseada na segregação e na passividade, qualquer atividade de grupo criada e determinada pelo próprio grupo é sedutoramente subversiva.
Da mesma forma, uma multidão que têm consciência de seu próprio poder não é necessariamente libertadora para aqueles que a formam. Como uma multidão, eles podem estar livres da dominação de outros grupos, mas isto não é garantia que qualquer um deles seja livre dentro da multidão. Indivíduos que sabem que são poderosos juntos não estão sempre conscientes do papel de cada um em criar esse poder, eles também não necessariamente sabem como participar na decisão de como aplicá-lo.
Multidões são vulneráveis à autoridade, a serem controladas por minorias ou pessoas de fora, enquanto cada indivíduo estiver inconsciente de como aplicar suas ações no grupo. Por outro lado, um grupo é capaz, flexível e tem muitas chances de agir no melhor interesse de seus membros na mesma proporção em que todos dentro dele estiverem conscientes de seu próprio poder e souberem como aplicá-lo.** O quarto tipo de multidão, então, é aquela constituída de indivíduos que reconhecem que a multidão não é nada mais que a soma de suas escolhas individuais, e tomam suas decisões de acordo. Para um grupo deste tipo, a atividade em massa é uma chance de compartilhar o egoísmo com os outros, para que as pessoas se multipliquem umas pelas outras ― não uma capa sob a qual se possa deixar a responsabilidade de lado.
O grupo de afinidade de ativistas políticos, no qual as decisões são tomadas por consenso entre um grupo de amigos que não apenas desenvolveram seus conceitos do que é importante juntos mas também têm o costume de agir sobre isto decididamente, é um microcosmo de tal multidão. A contracultura musical do faça-você-mesmo, na qual o próprio prazer é redefinido através de experiências colaborativas em estética que influenciam e informam um ao outro, é de certo modo uma versão em grande escala da mesma coisa. Em tais contextos, onde a realidade é determinada conscientemente e coletivamente, a liberdade de um é a soma da liberdade de todos os outros, e não o espaço íngreme que sobra entre as margens.
Aqueles que almejam esta liberdade têm pela frente o desafio de transformar a dinâmica de massas. As multidões existentes são ótimos laboratórios para estudar maneiras de se fazer isso. Quando estão muito próximas, os processos pelos quais as pessoas lêem e respondem uns aos outros se aceleram; graças a este processo de retro-alimentação, novas realidades podem ser geradas rapidamente no psique coletiva. É por isto que os guardiões do status quo sempre demonizam a multidão:*** grupos pequenos, compactos e unidos podem ser panelas de pressão da transformação social. Na nossa sociedade, faz-se todo o possível para evitar que multidões que tenham se formado se reconheçam como tal, para evitar que massas que se reconheçam como tal obtenham consciência do seu poder, e para evitar que aqueles que participam de multidões que têm consciência do seu poder de reconhecer o seu papel individual neste poder. Mas tudo que se precisa para libertar a multidão é chamá-la pelo seu nome e se engajar com ela; nós vivemos, afinal, na maior multidão da história.
Um pequeno grupo que se comporta confiantemente como se vivessem em um mundo diferente pode questionar coisas que todas as outras pessoas têm como certo; se eles levarem a sua partida longe o suficiente na hora certa, ele podem tornar o impossível possível persuadindo outros que é assim na força de sua própria convicção. Isto pode ser feito sem coerção ou instrução: só é preciso que nós demonstremos as opções através do nosso próprio comportamento que antes eram invisíveis, e os outros se juntarão se o que eles virem lhes for atrativo. Logo a vontade de uns poucos pode ser pega por uma massa e se tornar uma profecia que se auto realiza; tudo que é preciso é que alguns sonhadores pratiquem acreditar e desejar fora da caixa enquanto resistem à quarentena do estereótipo, e então demonstrem publicamente esses sonhos e sua fé neles.
- - Pessoas em multidões do tipo dois costumam perder seus limites ― pense na audiência apertada em um show. Em contraste, pessoas nas multidões do tipo um, nem mesmo reconhecem que estão em uma multidão, costumam enfatizar e reforçar as fronteiras que os separam: imagine nas mesmas pessoas apertadas em um ônibus na manhã seguinte.
- - Isto é o oposto do modelo militar de participação no grupo, no qual todo indivíduo é sistematicamente desligado da sua consciência de autonomia e independência para que ele possa funcionar mais eficientemente numa rígida hierarquia. A conseqüência neste caso é que é a unidade conformista e hierárquica que dá poder ao grupo ― mas será que um dos principais objetivos dos exércitos pode ser despir os seus membros de poder, para criar multidões indefesas sob a pretensa justificativa de defendê-los?
- - Assim como eles como eles chamam "grupos de minorias" como grupos de uma forma que subestima os agentes individuais que a compõem, as autoridades normalmente descrevem multidões do tipo quatro como multidões (ou cultos, extremistas, etc.) de forma a tornar obscuras as liberdades avançadas que elas podem oferecer aos participantes.