Discussão:Por que eu tapo o rosto?
A propósito do texto de tapar o rosto, trago também um tema polêmico que é paralelo a discussão anarquista da ligitimação do protesto: Trata-se da pichação, uma forma de contestar o que é pré-estabelecido e imposto como estético numa sociedade hipócrita que impõe e não admite ser contestada: O título é Pichação é arte? ai vai:
A questão não é definir o que é ou não é arte. Isto seria sempre uma arbitrariedade, além de muita pretensão do julgador. É claro que danificar o patrimônio de alguém é crime, mas acredito que a questão vai muito além disso. Todos nós que vivemos na urbis moderna estamos expostos à diversidade, mas também sofremos com a falta de regulamentação, com o empilhamento e massificações, com imagens de contradições sociais e poluição. São fatos da vida moderna, comuns nas megalópoles.
Nas ruas da cidade os apelos, reclames, propagandas, avisos, anúncios, proibições, placas, alertas, outdoors e outros estabelecem à própria estética. Todos nós quando freqüentamos os espaços públicos e calçadas das cidades estamos expostos a estímulos e apelos que não provocamos e que, portanto, são arbitrários.
A mudança no estilo de vida, a maior eficiência da indústria produzindo mais bens de consumo, a revolução do marketing e a expansão do crédito, a democratização da cultura e o acesso a educação, os recentes avanços e estímulos eletrônicos, audiovisuais, foram proporcionando nas últimas décadas uma crescente conceitualização das artes visuais.
Como conseqüência disso surgiu uma discussão que está presente entre os principais críticos de arte e curadores de Museus. Apontam para o ‘lugar da arte’. Há quem diga que o lugar da arte contemporânea ‘nunca foi o Museu’, embora reconheça que o espaço institucionalizado oferece ao visitante melhor infraestrutura e conforto: “Na história da arte, por exemplo: a Idade Média colocou a arte nas Igrejas. Posteriormente, no Renascimento, ela passou a habitar os suntuosos palácios, mas atualmente a Arte se encontra nos Museus, que, de certa forma, ainda é um espaço institucionalizado”.
Por outro lado o conceito de cultura é muito amplo nos dias atuais. Retirar a arte dos Museus e das Galerias é um passo importante na direção da democratização da arte tanto para o artista que produz, quanto para o público que prestigia. O artista terá mais espaço e liberdade para apresentar sua obra e o público se beneficia com um meio ambiente mais agradável, além da multiplicidade de propostas, preservação da identidade e valorização da localidade.
O grafite, a pintura em mural, o estêncil, os tags e assinaturas, assim como a pichação, skate, hip hop, hep etc., são marcas culturais da urbis. Algumas dessas práticas habitam um limbo entre um mundo lícito e real e outro ilícito e brutal. Sua grafia pode variar desde um protesto, uma ironia, uma frase de guerrilha ou uma de resistência política cultural, andar com ‘outras rodas’ na contramão dos pesados carros, ou simplesmente uma recuperação física e mental de uma identidade perdida. Significa um código de ética e de valores entre os próprios pichadores, artistas de mural e grafiteiros que está explícito nas marcas que vemos apressadamente entre uma calçada e outra. Significa a revolta de alguns e um meio de expressá-la. São as verdadeiras vítimas de imensas contradições sociais e o alvo, por décadas, dos apelos industriais daquilo que lhe foi inacessível. Já que o mundo do assalariado e do desemprego tirou-lhe todas as opções que os sonhos publicitários lhe sugerem, restando apenas uma pequena janela, por onde contempla as superfícies da cidade ao longe como folha branca. Com a lata de spray na mão proclamam: “Eis que é chegada a hora em que se expõe como fruta sem casca a essência do caráter humano”. Estou falando de valores quer sejam materiais como a propriedade, ou imateriais como a dignidade humana e o direito de expressão.
As paredes das grandes cidades são formadas por propriedades públicas ou particulares. Nos dias atuais os custos para manter uma propriedade podem incluir dimensões como vigiar, zelar, pintar e repintar, proteger, reconstruir, contribuir, filmar, aplicar manutenção sistemática etc. Custos sociais cada vez mais altos e com a passagem do tempo tendem a aumentar. Por outro lado o Poder Público mal consegue restringir sua vigilância aos grandes prédios públicos que, de maneira nenhuma, poderão amanhecer ‘pichados’. Se todo dinheiro gasto com segurança fosse carreado para educação, talvez não tivéssemos pichação ou ‘pichadores’ talentosos...
A imensidão da metrópole contemporânea, frente à escassez de vigilância, altos custos de manutenção e um crescente número de adeptos da pichação, que, até por ser ilegal, estimula a juventude a se arriscar na calada da noite, em competições internas para determinar quem tem mais coragem e atingir as paredes mais impensáveis e inacessíveis, deixando-a marcada, como na folha em branco que viu passar na silhueta dos prédios da janela do ônibus lotado no fim da tarde. O fator econômico faz as paredes da cidade vulneráveis. Sem vigilância ostensiva, que lhe proteja e preserve; será apenas presa fácil para pichação. Só podemos contar com o código de ética do pichador. Ele respeita o espaço do artista ou do outro pichador. O grafite é quase que um efeito repelente natural para manter uma parede sempre bem pintada, livre de pichações.
Mas a pichação também faz parte, ela compõe o ambiente natural da cidade, carregado de tensões e contradições sociais que são sempre empurrados para periferia. O pichador é um agente urbano. Ele se encarrega de predar os espaços. Aproveita-se de um descuido da vigilância, de uma brecha no vão que existe entre o direito a propriedade, o papel social e o valor venal dela. Neste ponto o pichador se converte em agente social e econômico: social porque dá destino aos espaços ociosos da cidade, e econômico porque sua ‘arte’ interfere em relação ao preço dos imóveis, ou da manutenção deles.
Mas como se combate o pichador? Simples: convertendo sua marca em arte. Como? Educando, criando consciência desde agora, mas já que isto faltou: Vigiando para que ele não atue, pelo menos naquelas paredes e nos monumentos que são mais caros à estética do lugar e a memória das instituições coletivas. Com isso o poder público estará disciplinando os limites da pichação e sugerindo outros espaços para formas alternativas de expressão popular. Não podemos, porém, culpar exclusivamente aqueles que se aproveitam do abandono para acabar de degradar locais já devastados pela omissão de quem deveria em primeiro lugar educar e depois zelar.