Do Amor Libertário
Quando, em 1980, fui pesquisar o tema do amor livre na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, encontrei a seguinte referência no fichário: “amor livre – vide prostituição”. Estranha correlação que, contudo, revela uma concepção muito difundida no censo comum, em geral, referente à mulher e não ao homem.
Todavia, isto não merece maiores comentários, no final dos anos noventa. O que gostaria de fazer é trazer uma outra questão sobre o tema. Comumente, ao estudar anarquismo, ainda ouço a seguinte exclamação, quando se trata de falar do amor livre: “Os anarquistas pregavam, mas não praticavam. Eram todos monogâmicos”. Esta afirmação me faz pensar se para se praticar o amor livre seria preciso relacionar-se com muita gente. Confesso que não tenho a resposta definitiva.
A redescoberta do tema do amor livre, juntamente com todas as propostas libertárias de organização social, ocorre, aliás, em meados dos anos setenta, quando se vivia uma profunda critica ao autoritarismo dominante no país, ao mesmo tempo em que se processava uma forte modernização das relações de gênero. O feminismo e o movimento gay levantavam suas bandeiras, soavam os ecos do movimento hippie, da contra-cultura, da revolução sexual dos anos sessenta. Na novela da televisão, um casal praticava a “amizade colorida”.
É óbvio que, nesse contexto, o “amor livre” proposto pelos anarquistas foi imediatamente associado àquela forma de relacionamento amplamente divulgada pelos meios de comunicação. Contudo, uma leitura das fontes primárias parece indicar outras direções, mais interessantes, creio eu, de ser ler a interpretação libertária das relações amorosas, muitas décadas atrás.
Acima de tudo, parece-me que nos textos dos velhos militantes e nas páginas amareladas da imprensa anarquista dos inícios do século, está sendo colocada menos a proposta de variação de parceiros, do que a crítica à institucionalização dos sentimentos em formas rígidas e envelhecidas. Um questionamento da disciplinarização do amor e do sexo que vivia, então, a sociedade vitoriana, no Brasil e em outras partes do mundo, com a ascensão do poder médico. Já dizia a libertária mineira Maria Lacerda de Moura, criticando os bolcheviques, que “a vida não cabe dentro de um partido”.
Hoje que vivemos amplamente as “descontruções”, num momento pós-Foucault em que o conceito de “dispositivo da sexualidade” permitiu perceber as estreitas codificações das relações sexuais e “despervertizar o sexo”, é inevitável olharmos para os libertários que um século atrás faziam a crítica da “disciplina do amor”. Emma Goldman, nos Estados Unidos, questionava o mito da virgindade obrigatória da mulher, a maternidade também obrigatória porque fundamentada no discurso médico sobre a essência feminina, o casamento monogâmico eterno, enquanto Maria Lacerda perguntava se a mulher deveria ser considerada “degenerada” porque reivindicava prazer sexual. (Veja-se a respeito A Mulher é uma degenerada?, título do seu livro publicado nos anos vinte). Como boas anarquistas, ambas defendiam o divorcio e insurgiam-se radicalmente contra a submissão sexual da mulher. A espanhola Frederica Montseny, por seu lado, defendia a legalização do aborto, prática que levou a cabo durante sua participação no Ministério da Saúde na Revolução Espanhola, entre 1936-39.
Embora ainda estejamos lutando pela descriminalização do aborto, ou pela aceitação do homoerotismo na sociedade, é claro que essas demandas já encontram um campo desbravado e plenamente configurado para serem debatidas publicamente e incorporadas, ao menos parcialmente, com amplas adesões. A sociedade se tornou, de certo modo, mais libertária e feminista. Há uma aceitação mais aberta das relações sexuais não institucionalizadas, muito embora se observe nos jovens uma tendência ao casamento nas formas tradicionais.
Não importa, parece-me que o mundo pós-moderno deve conviver com as diferenças, o que implica a coexistência de velhas e novas formas. Inevitavelmente, estamos mais abertos de modo geral para viver plenamente a sexualidade, o que não significa contudo que os problemas tenham sido resolvidos, pois outros se colocaram. É difícil compreender, por exemplo, por que a Revolução sexual dos anos 60 não acabou com a prostituição, por que depois de toda a crítica, os homens, ou melhor, vários continuam casando-se com a figura da “mãe”, enquanto se realizam sexualmente com a “degenerada nata” do Dr. Lombroso. Há quem diga que. Na verdade, a modernização das relações de gênero não significou o fim das desigualdades sexuais e a construção do amor libertário. É bem possível, mas ainda assim, nós mulheres conseguimos muito mais espaço, inclusive nas formas de manifestação do desejo. Os artigos da imprensa discutem abertamente os temas que, no passado, só se encontravam na imprensa libertária, e certamente colocados de maneira diferente.
Em suma, não há duvida de que os anarquistas abriram as portas, já no século passado, para um repensar das práticas sexuais e das concepções da sexualidade que informavam o imaginário social. Discutiram questões fundamentais como o casamento monogâmico, o divorcio, a maternidade obrigatória, o aborto, a prostituição e propuseram o amor livre e o direito ao prazer. Problematizaram um campo de temas-tabus que, naquele momento, estavam passando das mãos da Igreja para o poder médico, sem sofrer grandes alterações em sua normatividade, fenômeno que tem sido pouco discutido e, aliás, notado. Quando os médicos repunham a questão da sexualidade em termos científicos, preservando e até acentuando todos os preconceitos e concepções sexuais repressivas, construindo conceitos como o das “perversões sexuais”, os anarquistas defendiam o “amor livre”, isto é, a união entre duas pessoas baseadas exclusivamente no desejo. Ao reivindicar a publicização do privado, o que afeta certamente as questões da sexualidade, não há dúvida de que o feminismo contemporâneo retomou antigas lutas colocadas pelas/os libertárias/os, querendo ou não.
Mas, se hoje as sexualidades afloram em sua multiplicidade, ao desfazerem-se as tradicionais barreiras imaginarias de codificação dos sentimentos e desejos, não há duvida de que o mundo se complicou. Nesse sentido, está difícil acrescentar muita coisa ao debate. De um lado, as relações não estão mais livres, leves e soltas, como nos apresenta o filme “Denise está chamando”, ao focalizar o tema do amor virtual. De outro, a juventude atual é muito mais livres de que a das gerações passadas, enquanto que o corpo e o sexo foram incorporados como dimensões fundamentais da vida emocional e psíquica. Tendências contraditórias, opostas, multifacetadas. Parece que as cartas estão todas colocadas e embaralhadas. Da minha parte, vou ficar com o poeta, cantando “qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá”.