Dois Conselhos

De Protopia
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Espere Resistência
CrimethInc


A natureza odeia o vácuo, e a civilização não é diferente; foi assim que, uma a uma, eu encontrei versões baratas de tudo que eu queria vivenciar. Eu queria um romance selvagem; eu estava saindo com um cara legal que invadia propriedade privada comigo nos fins-de-semana. Eu ansiava por aventuras; eu estava mandando meu currículo para escolas com esperança de conseguir uma bolsa para estudar fora do país. Eu queria fazer algo importante com a minha vida; depois de passar meses me debatendo, eu me contentei com um pouco de ativismo ambiental. Se você me perguntasse então se essas coisas me satisfaziam, eu provavelmente responderia que sim; eu não tinha nada com o que compará-las. Eu também poderia ter respondido que eu só sobrevivi a cada instante imaginando que tudo à minha volta estava pegando fogo.


Esse era o meu estado mental na audiência da Câmara Municipal enquanto eu esperava para falar no fórum sobre a água. Rita e eu estávamos impacientes com a interminável sucessão de formalidades, queixas e lero-lero; agora, se eu me lembrasse bem, só restava uma pessoa na frente dela.


Observando os oradores que nos antecederam ― proprietários de casas indignados com lombadas, homens de negócios criando aparências para disfarçar o negócio por baixo dos panos ― era claro que nós éramos peixes fora d'água. Aquelas pessoas não davam a mínima para a água, nem para nada mais; eles estavam ocupados demais lidando com a sua própria burocracia e se achavam bons demais para querer outra coisa. Os cidadãos que lá estavam não conseguiam enxergar além do seu direito à propriedade; os únicos que me pareciam remotamente interessantes eram os dois jovens mal-vestidos sentados à minha direita. Um deles era uma das poucas pessoas de tez mais escura sentada na audiência, além de umas pessoas que eu imaginava serem funcionários da câmara. Só deus sabia o que fazia os dois homens esperarem lá ― não parecia que eles tinham uma propriedade para discutir.


Quando você decide que espontaneidade e paixão serão, se não a base para a sua vida, a sua única esperança de fuga, a pressão pode ser enorme. Nada é mais assustador do que aqueles momentos em que parece impossível que aconteça algo empolgante, e esses momentos vêm um atrás do outro, como a tortura chinesa da água. Eu vivia sob essa pressão desde o funeral de Daniel, e eu tinha começado a me esconder dela num ceticismo planejado ― o oposto do otimismo forçado que eu tive que adotar em entrevistas de emprego e apresentações como esta. Quanto mais eu esperava sentada, mais o ato de negociar com aqueles burocratas me revirava o estômago; já era difícil o suficiente me convencer de que o que eles pensavam ou faziam importava alguma coisa. Mas os vereadores tinham terminado as suas observações, e a mulher que estava reclamando em linguagem dos sinais sobre os jovens latinos que vinham aparecendo na sua vizinhança estava retornando ao seu assento.


O jovem à minha direita se inclinou em minha direção em confidência. "Olha isso", ele sussurrou.


O seu companheiro ficou de pé e caminhou devagar até o pódio, alisou o seu cabelo negro para trás, e começou a remexer em um amontoado de folhas amassadas. O farfalhar daqueles papéis no sistema de som eram o único som na sala por quase um minuto. Finalmente, ele começou a murmurar em um tom monótono: "Vários homens enfrentam a sua morte nas mãos de um monstro. Dois monstros do Departamento do Interior vêm olhar a situação mais de perto..."


Enquanto ele prosseguia, os rostos à minha volta mudaram lentamente do desinteresse para a descrença. Finalmente, um vereador tentou interromper. Naquele momento, o garoto ao meu lado falou em um estrondo: "Vossa excelência, o que o meu colega está tentando dizer é que seria um grande erro despejar a ocupação da universidade. Mas antes, deixe-me dar uma contribuição sobre o assunto dos monstros, os quais..."


O vereador mudou sua atenção para o segundo orador; ele estava mais bem preparado para lidar com este tipo de interrupção. "Deixe-me lembrar a todos que aqueles que falarem fora da sua vez serão removidos. Existe um protocolo padrão para se inscrever a fim de se dirigir à Cidade, ao alcance de todos, e não é justo com os outros cidadãos fazer mau uso desse recurso."


O marginal no pódio se endireitou e puxou seus ombros para trás, seus olhos escuros se aguçaram como os de um falcão. "Mas nós temos algo de grande importância para lhe dizer sobre este assunto", ele continuou, numa paródia pomposa dos oficiais. "Vejam vocês, aqueles que lutam contra monstros..."


O prefeito estava ficando vermelho e batia com a sua mão na mesa: "Vá direto ao assunto, vá direto ao assunto!"


Eu ainda não tinha percebido que o que eles queriam era fazer os burocratas perderem a sua compostura. O meu vizinho chutou a sua cadeira para trás e pulou sobre ela, agitando seus braços e bradando como um louco:


"O assunto é este, todos nós tentamos ser bons cidadãos, nos comportando, lutando com os outros para conseguir promoções e gastando nosso dinheiro em refrigerante ― e acabamos como lavadores de pratos e porteiros, esperando na fila do posto de saúde para ter nossos dentes arrancados por voluntários! É uma droga de FRAUDE DA PIRÂMIDE e vocês sabem! O assunto é, existem cinqüenta pessoas naquele campus que não têm medo de vocês porque nós temos um futuro completamente diferente à nossa frente, que nenhum de vocês pode nos oferecer ― e se existem cinqüenta hoje, amanhã serão cinqüenta mil, pois as pessoas estão morrendo por algo mais e alguns de nós estão dispostos a VIVER para isso! O assunto é, eu estou avisando vocês ― vocês estão lidando com malditos ANARQUISTAS! Nós não assinamos o seu contrato social! Se vocês querem coexistir conosco, nós compartilharemos tudo que temos com vocês, estamos dispostos a tudo para superar nossos conflitos ― mas se vocês quiserem ser nossos chefes, se vocês querem dar ordens e estar sempre com a razão, então, quer vocês tenham um segurança ou toda uma civilização para lhes apoiar vocês, terão que LUTAR até que um de nós esteja MORTO, porque uma coisa que nós NÃO faremos é SER GOVERNADOS!!! Vocês estão me ouvindo?"


Um homem de uniforme estava lutando para chegar na nossa fila de assentos; no segundo ato subversivo da minha vida, eu estiquei a minha perna, fazendo o tropeçar no momento exato em que se esticava para agarrar o braço do orador. Este, que havia recém terminado de falar, saltou para uma cadeira vazia atrás de nós e saiu saltitando entre as fileiras até o fundo da sala, desviando de pessoas na audiência que se agarravam a suas bolsas e pastas quando ele passava. O seu parceiro se juntou a ele perto da porta, papéis voavam pelo ar atrás dele; eu agora podia ver que eram panfletos. Parecia certo que os dois seriam encurralados ali, mas naquele instante houve gritos e movimento do outro lado da sala quando uma nuvem de fumaça apareceu saindo do meio dos assentos. Quando eu olhei novamente para a porta, eles já haviam ido.


Mesmo depois que a fumaça se dissipou e um funcionário já havia recolhido a maior parte dos panfletos, a reunião só foi recomeçar alguns minutos mais tarde. O incidente não apenas deixou todos aturdidos, mas aparentemente o jovem que estava no pódio levou o microfone consigo.


Rita e eu formamos uma fila junto com a maior parte da audiência enquanto mais homens em uniforme se moviam ao nosso redor energicamente e oficiais do governo se reuniam em pequenos grupos irritados. Algumas das pessoas ao meu redor estavam em silêncio; outros falavam baixinho. Uns poucos estavam rindo. Eu estava aliviada de não ter que fazer a nossa apresentação, mas eu ainda não tinha absorvido tudo que tinha acontecido. Eu dei uma olhada no panfleto que eu havia pegado:


Se não fosse pelas prisões nas quais eles ameaçam nos prender, nós poderíamos ver que estamos todos na prisão. Se não fosse pelos monstros como os que lucram com a exploração de outros, poderíamos ver que o capitalismo transformou todos nós em monstros. Visitamos zoológicos para ver o que acontece com os selvagens, sentamos na platéia para aprender que não somos músicos nem protagonistas


...nem vereadores, eu refleti.


Eu abri a porta e saí no ar fresco do outono. Pendurada no prédio em frente à Câmara de Vereadores estava uma faixa pintada a mão do tamanho de um ônibus. Em enormes letras vermelhas lia-se:

ESPEREM RESISTÊNCIA


Alguns dias mais tarde os rapazes que haviam instigado o tumulto na reunião na Câmara Municipal eram meus melhores amigos, mas foi só um mês mais tarde que eu fiquei sabendo das longas discussões que o precederam. Depois que a universidade anunciou que eles definitivamente iriam despejar o acampamento, chegou aos ouvidos dos manifestantes que a polícia municipal viria para o despejo. Seguiram-se séries de reuniões que começavam no final da tarde e se extendiam até as primeiras horas da madrugada.


Embora eu não estivesse lá, eu posso imaginar, baseada em encontros que se seguiram, como deve ter acontecido. No começo havia um pouco de discórdia: alguns argumentavam que a ocupação já tinha alcançado o seu objetivo e seria melhor para os participantes parar enquanto estavam ganhando, enquanto outros sustentavam que se o objetivo era influenciar a administração ao oferecer obstáculos para que ela faça parceria com corporações criminosas, o que teria um melhor resultado se ela fosse forçada a realizar o despejo mais caro e embaraçoso possível. Por fim duas facções se firmaram nos extremos opostos da discussão, e o grupo se dividiu em duas reuniões separadas para que cada uma pudesse definir quais eram os seus objetivos e o que ela exigiria da outra. Algumas horas mais tarde, foi negociado que os cinqüenta ocupantes que desejavam um confronto com a universidade continuariam ali, mas eles teriam que anunciar que eles não tinham mais nada a ver com o grupo de estudantes. Tinha sido importante para eles, até então, deixar confusa a divisão entre a organização estudantil e o resto dos ocupantes para manter a "legitimidade" da ocupação, mas agora que um despejo tumultuado era inevitável tal associação seria uma responsabilidade desnecessária.


Os que lá ficaram encaravam a desafiadora tarefa de organizar a defesa do acampamento. Isto era particularmente complicado pois era quase certo que haviam policiais infiltrados que não apenas delatariam as atividades ilegais propostas mas também tentariam desviar o planejamento na direção menos vantajosa possível. Primeiro, como um grupo, eles precisavam entrar em acordo em seus objetivos e diretrizes primários: tornar o despejo caro era de uma prioridade maior do que conseguir cobertura positiva da mídia; ninguém deveria se ferir, mas a destruição da propriedade não estava descartada; os custos da defesa legal seriam compartilhado de acordo com as necessidades de todos que fossem presos, indiferente das acusações. Depois, todos se dividiram em grupos menores para criar estratégias com as pessoas que eles conheciam e confiavam. Isso assegurava que aqueles com amizades de longa data se beneficiariam ao máximo do conforto e da experiência do seu grupo, enquanto policiais disfarçados acabariam com outros novatos isolados, planejando os aspectos da defesa que exigiam menos segurança. Depois que alguns grupos já haviam traçado seus planos, eles enviavam delegados para outros grupos para propor colaborações, compartilhando somente a informação que era necessária para trabalharem juntos. A esta altura, já era tarde da noite; pequenas rodas de conspiradores pontilhavam o gramado em torno do acampamento, enquanto que em outras partes do campus porta-vozes dos grupos mais cautelosos tinham encontros apressados de dois ou três.


Nada disso foi fácil, me disseram. Em toda etapa, houveram discussões, rupturas, sentimentos feridos e acusações furiosas. No momento, isso deveria parecer o inevitável custo de organizar-se em circunstâncias tão estressantes com pessoas com perspectivas tão diferentes; mais tarde, ficou claro que não levamos os conflitos com suficiente seriedade desde o começo. Perdemos a batalha seguinte porque ninguém procurou solucionar as desavenças quando elas apareceram pela primeira vez.