Ensaiando sobre relações

De Protopia
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Waslala
De Amor e Anarquia

Eu tenho amigxs herdadxs da minha mãe, e costumamos estabelecer relações bastante simétricas, sem a comum desigualdade contida nas relações entre diferentes gerações, na qual a pessoa mais velha dá constantemente lições à mais nova. Mas uma vez uma dessas amigas, ao ficar sabendo pela sua filha – que também é minha amiga – que minha relação com meu companheiro era uma relação aberta, livre, na qual podíamos ficar com outras pessoas, me escreveu um e-mail em tom de preocupação. Num tom usualmente usado numa relação “maternal” – que minha mãe não costuma usar, aliás – me comentou sobre suas dúvidas enquanto à possibilidade desse tipo de relações funcionarem, considerando as experiências que ela tinha conhecido na “sua época”, e se colocou à disposição em caso que eu desistisse dessa “aventura”. Esta foi minha resposta:

Minha relação com o G. tem sido muito bonita, e me ensinou muito sobre toda a potencialidade presente em amar alguém. Acho que esta questão do amor livre se confunde muito com isso que mencionavas que era a regra “na tua época” (apesar de que acho que ainda estamos na tua época, não?). Existem reflexões bastante profundas e densas por parte de muitos anarquistas sobre esta questão dos amores não proprietários, relações livres, ou qualquer nome que se lhe queira chamar, e acho que temos muito para aprender dessas reflexões.

Tenho a impressão de nos anos 60 e 70 se viveu uma banalização dessas ideias, que tristemente resultaram em frustrações e dores muito fortes em muitas relações, e que consequentemente reforçaram a crença na impossibilidade deste tipo de relações e no aprofundamento das relações monogâmicas como única opção possível. Eu não tenho nada contra as relações monogâmicas, e de fato minha relação com o G. é muito mais estável e monogâmica que qualquer outra coisa. Mas nossa combinação é simplesmente de não nos reprimirmos ou bloquearmos no caso de que sintamos desejo ou atração por alguma outra pessoa em alguma circunstância. Não acontece muito frequentemente, e também não andamos buscando isso, mas sempre temos claro que isso pode acontecer e não é o fim do mundo. Cada momento é um, assim como cada relação, e nunca podemos ter o controle sobre as paixões da outra pessoa…

Corremos o “risco” de nos apaixonarmos por outras pessoas, mas consideramos que em geral o amor se soma, e não se diminui. Corremos o risco de que outras paixões terminem pondo fim à nossa relação, mas esse é um risco que sempre existe, e simplesmente optamos por não acreditar que podemos controlá-lo. Corremos o risco de nos machucarmos, mas qualquer relação implica nesse risco. Até agora construímos uma relação muito sincera e de muita confiança, motivo pelo qual confio que existe um cuidado mútuo por nos machucarmos o menos possível. É verdade que todas estas coisas podem mudar se tivermos filhos, mas isso só saberemos nesse momento. De qualquer forma, gostaria de pensar que a existência de filhos não mudará esse estímulo mútuo ao sentimento de liberdade, mesmo que essa liberdade implique em nos separarmos em algum momento. E certamente prefiro pensar que nada é estanque, e que sempre podemos voltar a considerar a situação, pensar e sentir. E a partir disso tomar decisões.

Ao longo destes últimos três anos, aprendi muito sobre anarquismo, e tem sido um percurso muito bonito. Gostaria de poder compartilhá-lo mais. Provavelmente o que mais gosto nisto tudo é que não o senti como um enquadramento em alguma doutrina ou qualquer coisa que o valha, e sim todo o contrário: a descoberta de montes de ideias e possibilidades, conhecimento de experiências e vidas de pessoas passadas muito inspiradoras, e também de reflexões e estímulos para imaginar e tentar criar outro tipo de relações e outro tipo de sociedade. O mínimo que posso tentar fazer, se eu acredito nisto, e se compartilho este sentimento com outra pessoa, é colocá-lo em prática nas minhas relações pessoais. E quando falo de relações pessoais não estou falando apenas da(s) pessoa(s) com quem mantenho uma relação amorosa, mas com todxs a minha volta. Não tenho nenhuma intenção de ser missionária nem catequizadora, mas compartilho o que me parece pertinente. Sinto que falar desta relação com algumas pessoas abriu para elas possibilidades de pelo menos pensar em outras formas de amar, menos possessivas e mais baseadas na confiança. É apenas a possibilidade de não imaginar a relação como uma prisão, o que costuma acontecer muito frequentemente.

Comecei meu texto com esse email porque acho que nele consegui resumir muitas das coisas que sinto sobre a possibilidade de construir relações livres, nas quais possamos viver cada momento de acordo aos nossos desejos, e não sumidos na inércia do ‘viveram (in)felizes para sempre’. A relação com o companheiro do qual falo no email já não é mais uma relação de casal, nos separamos devido a escolhas de vida diferentes, planos pessoais incompatíveis geograficamente. Mas continuamos tendo uma relação muito próxima e inspirando-nos mutuamente na busca por estas liberdades. Depois dessa relação, tenho buscado que todas as relações nas quais me envolvo tenham presentes esta reflexão e prática de liberdade. Nem sempre dá certo, e vou compartilhar aqui uma dessas histórias não tão bem sucedidas. Todo este processo tem sido de profunda aprendizagem. Nem eu, nem o que foi meu companheiro, nem ninguém que pretenda experimentar viver relações livres temos receitas nem manual de instruções de como se relacionar. Cometemos erros, o tempo inteiro, como qualquer casal, como qualquer relação. Mas estivemos e continuamos dispostos a aprender com esses erros. Não consideramos que haja uma maneira correta de se relacionar amorosamente, não condenamos nenhuma forma de amor, desde que ela busque a felicidade e satisfação de todas as partes envolvidas. Não se trata de ser monogâmico ou polígamo, heterossexual ou homossexual, não se trata de encaixar os amores em categorias, e muito menos de hierarquizar escolhas. Se trata de tratar com cuidado de si e das pessoas com quem nos relacionamos, e buscar sermos livres em sua forma coletiva, com toda beleza e complexidade que isto implica.

Acredito firmemente na possibilidade de amarmos a partir da liberdade e de construirmos relações livres, apesar disto ser algo raro no mundo em que eu vivo. Felizmente, cada dia aprendo que esse mundo não é um só, e que dentro dele existem muitos outros, muitas outras pessoas que tentam viver suas relações desde a liberdade. Mas também todo dia me lembro que o que mais abunda por aí são relações profundamente normais: construídas desde normas que nos dizem como nos relacionarmos e que não incluem a liberdade entre seus valores. Normas que na maioria das vezes são machistas, autoritárias, possessivas, castradoras, heteronormativas, violentas e muitas outras características que eu não deveria ter que explicar, já que são tão normais. Você certamente conhece várias, e provavelmente vive muitas também.

Muitas das pessoas que conheço que compartilham esta empreitada de construir relações livres começaram a fazê-lo em oposição e resistência ao peso que essa normalidade teve em suas vidas. Me considero bastante sortuda ao perceber que meu impulso de fazê-lo é dar continuidade à liberdade que aprendi desde criança. Sou filha de uma relação bonita, e cresci tendo como principal referência uma relação que, mesmo que monogâmica e longa, é profundamente marcada pelo respeito, pela autonomia e pela liberdade. Apesar de todas suas limitações – porque elas sempre existem – esta relação me fez acreditar que o amor pode ser sincero e livre. Ao me propor escrever para este livro, convidei também outrxs amigxs para fazê-lo. Me chamou muito atenção que uma amiga me perguntou: quando você se refere a relações livres, você se refere a relações afetivas (no sentido de casal)? Não entendi a procedência da pergunta, já que para mim, qualquer relação que inclua qualquer tipo de afetividade entra nas minhas reflexões sobre relações livres. Isso inclui relações com amizades, família, animais, casais e companheirxs sexuais. Considero inconcebível separar e dizer que me refiro a apenas um tipo de relações, já que reproduzimos padrões de ciúmes, possessividade, cobranças e chantagem em todas elas, e a ideia é poder viver de maneira mais leve, livre e sincera também todas elas. Se estou escrevendo isto desde o anarquismo, que me inspirou a acreditar fortemente na possibilidade de viver em liberdade, e tentando construí-la, é porque gostaria que todas as relações pudessem ser muito mais livres.

O companheiro que mencionei no início, com o qual compartilhei alguns anos amizade, carinho, sexo, cotidianos e ideias, foi quem me propôs pensar na possibilidade de nos relacionarmos de outra forma, e com o qual aprendi muito neste tempo todo. Ele mesmo aprendeu muito disso com sua companheira anterior a mim, com quem de fato ele ainda estava quando começamos a ficar juntos. Ele me disse, mais de uma vez, que chamamos de “amor” coisas demais, que inclusive são muito diferentes entre si. Efetivamente, a tentativa de definição do que é “o” amor é algo imenso e exaustivamente manipulado. Talvez o que propomos aqui, acho eu, é encará-lo como um conjunto de sentimentos e ações que combinam a busca de nossa satisfações e a satisfação de outrxs em uma relação. Considero que o amor está vinculado com a satisfação e (ou de) necessidades colocadas em relação, e exatamente porque as necessidades a serem satisfeitas podem variar infinitamente, existe uma infinidade de relações às quais chamamos amor. Não me refiro com isso a necessidades utilitaristas e materiais, nem considero a ideia de necessidade como algo negativo ou pejorativo. O prazer, a liberdade, o gozo, a solidariedade, podem ser necessidades profundas que definam como se dá uma relação de amor, assim como o podem ser a segurança, o controle, a dominação e a manipulação. As necessidades são aprendidas, construídas e retroalimentadas, assim como o são os mecanismos que usamos para satisfazê-las. Portanto, a intenção destas reflexões vai no sentido de potenciar a possibilidade de que nossas relações amorosas sejam permeadas e impulsadas por uma necessidade de liberdade e autonomia de todxs xs envolvidxs, buscando que a satisfação dxs demais seja um estímulo para nossa própria satisfação – e não uma ameaça a ela.

Essas sensações são vividas de maneira completamente diferente em cada pessoa, dependendo de sua vivência pessoal, familiar e cultural. As mulheres, por exemplo, são criadas com papéis muito diferentes do que o dos homens, estando carregadas de diferentes expectativas (delas e sobre elas) e estando dotadas de diferentes ferramentas do que os homens. Apesar de que isto não define necessariamente como elas e eles amarão, estes papéis marcam profundamente as referências que temos do amor, e as maneiras como nos comportamos frente a ele. Margarita Pisano, escritora chilena, menciona que em sua trajetória feminista, quanto mais participava em espaços de mulheres, “ia descobrindo que o tema do amor para as mulheres (salvo algumas exceções) era absolutamente prioritário, invasivo, e massivo em suas vidas, centro de suas existências, depósito de sacrifícios e escravidões, de suas renúncias a suas liberdades.”1

De igual maneira, há papéis e expectativas diferentes segundo o tipo de relação que se estabelece, e algumas carregam mais regras e expectativas que outras. É por isso que quando falamos de amor o associamos primeiro ao casal (só uma pessoa, claro), aos pais e filhxs, a demais familiares e finalmente às amizades, e eventualmente aos animais e também às coisas. Mais ou menos nessa ordem hierárquica – com algumas variações dependendo de quem fala. Mas mesmo que nos façam sentir que há muitas diferenças, a tendência é que sigamos os mesmos padrões de exigência em todos os tipos de relações. Provavelmente, se atuamos de maneira possessiva, o faremos com nosso casal, com nossa mãe, com nosso cachorro e com nossxs amigxs. Já se nos propomos viver desde a liberdade, o faremos com todxs aquelxs com quem convivemos. Mas obviamente, quanto mais próxima seja a pessoa – ou o ser – com quem estabelecemos relação, será mais fácil visualizar o tipo de relação que escolhemos viver.

Desde que conheci as perspectivas de vida que o anarquismo propõe, e me propus assumir essas reflexões para mim, elas têm entrado na minha vida de maneira completamente invasiva e profunda. Entraram no meu corpo e se colocaram em frente aos meus olhos para não voltar a me deixar ver sem elas, não importa para onde eu olhe. Sempre cresci buscando espaços onde eu pudesse atuar de maneira que sentisse que estava fazendo algo “político”, alguma militância. Que me legitimasse a falar “em nome dos que fazem algo para mudar o mundo”. Essa sempre foi uma fonte de angústia para mim, quando sentia que não estava fazendo mais que viver minha vida sem me “entregar” por uma causa. Até que, ao conhecer o anarquismo, entendi que essa atuação não está fora de mim, não está exclusivamente nas “ações sociais” que faço, e que está sim, acima de tudo, na maneira como vivo e construo minhas relações. Isso implica também estar envolvida em coletivos que atuem para combater desigualdades sociais; fazer críticas contundentes e constantes ao capitalismo; criar espaços alternativos de consumo e produção; repensar nossa relação com a “natureza”, que assumimos estar fora de nós; estudar e conhecer a história dxs tantxs que, antes de nós, lutaram para transformar este mundo; pensar diferentes formas de educar as novas gerações; revisar e questionar constantemente nosso etnocentrismo e se abrir à possibilidade de conhecer, respeitar e defender outras cosmovisões; questionar constante e insistentemente as relações de gênero e a desigualdade e violência com a qual se autoriza aos homens possuir e decidir sobre os corpos e as vidas das mulheres; questionar também constantemente a heteronormatividade que alimenta a homofobia; questionar, denunciar e combater sempre as dominações históricas que sustentam todo tipo de racismo… Ufa! E ainda tem muitas lutas para assumir como nossas, muitas ações nas quais se envolver e muito pra fazer pra mudar este mundo injusto. E isso que não mencionei muitas outras lutas, que deixo a outrxs por agora, porque não cabem mais em mim. Mas o principal é que entendi que não adianta nada andar carregando todas essas bandeiras se o próprio corpo que as carrega não se propõe viver em liberdade. Repetidas vezes esta discussão sobre relações livres tem sido relegada, em “movimentos revolucionários”, a um segundo plano, o da vida pessoal, que segundo essa lógica, é separada da e não é central para a luta. Que importância tem com quem e como tu te relacionas, especialmente na cama, se tu continuas sendo militante? Isso é o que importa, tua militância. Mas depois, não se sabe por quê, os espaços coletivos se rompem quando há “triângulos amorosos”, “infidelidades”, “amantes”, “traições” e o ambiente da coletividade fica insustentável. Ou se passa por cima de situações machistas, tão corriqueiras, justificando-as e diminuindo sua importância nesses ambientes majoritariamente masculinos. Então isso não importa, porque o que vale continua sendo a tal da militância? Recentemente estive envolvida numa situação que me ensinou bastante sobre este tema. Não cheguei a nenhuma conclusão, mas me fez pensar muito e mexeu com esses incômodos. Vivendo num país que não é o meu, centro-americano e fortemente machista, me envolvi com um casal que me disse ter uma relação aberta. Depois de ter tido um primeiro encontro sexual com ambos, continuei me relacionando com ele, encontrando-nos esporadicamente na minha casa e mantendo uma boa conexão intelectual e sexual. Ao mesmo tempo, continuei coincidindo com os dois como casal, eles me convidaram a participar em espaços políticos, mais de caráter esquerdista latino-americano, os quais frequentei algumas vezes por curiosidade, buscando coincidências um pouco mais libertárias, e também pela possibilidade de contribuir com alguma coisa neste país tão cheio de injustiças e desigualdades. Com ela, fui me aproximando de espaços feministas, nos quais definitivamente encontrei muito mais eco às minhas inquietações e muito mais afinidades. Também compartilhamos espaços de amigos em comum, festas, momentos agradáveis, e eles me abriram as portas de sua casa de maneira bem bonita.

Mas o que eu não comentei, a todas essas, é que uma das regras do casal em questão era não se contar sobre relações “paralelas”. Ele me disse isso desde o início, mas eu não tinha me dado conta do que isso implicava. Eu vinha de uma experiência de relação na qual não tínhamos realmente estabelecido regras mais além de viver o que quiséssemos viver, o que em geral tinha implicado compartilhar com a outra pessoa as situações importantes que vivemos com outras pessoas. Sabia que o fato de “não se contar” não me deixava muito confortável, mas não imaginei o quanto pudesse ser incômodo. Além do mais, não achava que fosse realmente possível que ela não soubesse da minha relação com ele, já que ela tinha nos visto juntos da primeira vez que estivemos os três, e não se pode dizer que a tensão sexual existente entre ele e eu fosse discreta. A questão é que em algum ponto comecei a me sentir mais numa relação transversal do que,como se costuma chamar, numa relação paralela.

Outra coisa importante de ser mencionada é que, na minha vida, não suporto a mentira. A considero incompatível com relações de cuidado e respeito, e a maior parte das vezes é um artifício de falsa proteção, quando o que temos é medo de encarar nossos próprios sentimentos. E comecei a sentir que essas relações (dela comigo e entre eles dois) estavam baseadas em uma (ou várias) mentira(s). Compartilhei esse incômodo com ele, falando sobre tudo o que eu penso sobre relações livres, e de como eu considero que assumir a liberdade como um compromisso político implica em assumi-la para todas nossas relações. Ele me respondeu que a proposta delxs de ter uma relação aberta não estava baseada numa proposta política, e sim no desejo de poder estar com várias pessoas, especialmente sexualmente. Esta resposta me deixou um tanto quanto perturbada, mas ainda achava que poderia convencê-lo da importância de que essa decisão transcendesse interesses sexuais pontuais. Pouco tempo depois disso, ela me convidou para participar de um encontro feminista no qual se debateria a desconstrução do amor patriarcal, e eu intuí que essa ocasião poderia me levar a contar a ela a situação. Conversei isso com ele e combinamos deixar de ser amantes, porque o incômodo já tinha virado maior que o desejo. Sobre contar para ela ou não, ele disse que a decisão era minha, e ele não interviria nessa decisão, mas que certamente ela não queria saber. Depois de pensar bastante, racionalmente eu estava convencida, e tinha decidido, que não era necessário contar, que não precisava gerar mais incômodos, e que era suficiente com parar de encontrá-lo. Mas o profundo debate que se gerou no encontro, a sensação de que uma relação de sororidade não pode estar baseada numa mentira, e o estímulo dos exercícios de massagem que vivemos nesse espaço me levou a dizê-lo. Dentro da minha ingenuidade, achei que, apesar dos incômodos iniciais que a informação geraria, se dar conta de que essas relações (nossas com ele) tinham estado convivendo de maneira harmônica por uns meses, permitiria a ela perceber que não éramos uma ameaça uma para a outra, e permitiria aprofundar uma amizade sincera entre nós. E talvez, a partir disso, eles também pudessem estabelecer uma relação mais leve e mais livre, sem mentiras.

Porém, eu me enganei. E como ela mesma bem me disse, não era eu quem tinha que decidir sobre como eles se relacionam. No que me diz respeito, ela decidiu se afastar de mim e deixar de falar comigo. Depois disso, ele também se afastou de mim e deixou de falar comigo por algum tempo, e sei, através de amigxs em comum, que esta situação afetou bastante a relação deles. Esta última informação me deixa intrigada, porque pelo que sei, eles se envolvem, os dois, com várias outras pessoas em diferentes ocasiões. Mas tem muita informação aí no meio que eu não conheço, e muitas coisas deles que não sei, e mesmo que soubesse, cada umx é responsável unicamente pelas suas decisões, e só pode responder e falar sobre elas. Toda esta situação me devolveu ao fato de que tão agressivo pode acabar sendo atuar com sinceridade, e finalmente terminar impondo sua liberdade sobre as outras pessoas. Relações livres implicam em grandes responsabilidades, especialmente no cuidado com as outras pessoas com as quais nos envolvemos, e acho que nesta situação faltaram muitos cuidados, de todas as partes. Passei algum tempo tentando encontrar meus erros em todo o processo: em que momento eu deveria ter deixado de ficar com ele; se eu devia ou não ter contado pra ela, etc. Até que me dei conta – algo que também aprendi no encontro feminista em questão – que temos que assumir os erros como responsabilidades, e não como culpas. Aprender deles e fazer o possível para que não voltem a se repetir. Também passei tempo tentando identificar o que eu considero serem erros deles, e de alguma forma acho que continuo fazendo isso, inclusive neste texto, mais para encontrar as coisas que eu não quero nas minhas relações do que para julgar o que eles fazem com suas vidas.

Uma das frases que escutei dela logo depois de contar que tive uma relação com seu companheiro foi: “fizestes muito mal em me contar, porque não sabes o que acontece nestes casos” se referindo a um cúmulo de reações entre eles que se seguiriam a essa revelação (como comentei antes, fui me dando conta de que não era a primeira vez que eles passavam por algo assim). Ao que eu rebati: “mas por que ‘essas coisas’ têm que acontecer?” Por que, se até esse momento uma relação não tinha afetado a outra, teria que começar a afetar a partir daquele momento? Por que, se estávamos falando algumas horas antes com outras amigas sobre a necessidade de construir outro tipo de relações, a reação dela tinha que ser de um jeito ou de outro? Tinha que ser tão normal? Para mim, isto evidencia o que dizia antes sobre os mecanismos que utilizamos para reagir a certas situações nas nossas relações. E a como eles estão profundamente incorporados nas nossas vidas, em todas as relações que construímos, como se só eles fossem possíveis. As cobranças, as chantagens, os ciúmes, as proibições, as brigas, os silêncios. As duas pessoas com as quais me envolvi na situação aqui relatada são pessoas com um discurso político muito articulado. Nenhuma das duas se autodenomina anarquista – e não acho que isso faça muita diferença, porque muitxs anarquistas caem nesta mesma questão –, mas ambas se envolvem numa infinidade de ações para construir um mundo mais justo, sabem racionalmente muito bem de onde vêm estas demandas por exclusividade e monogamia nas relações amorosas, e supostamente se propuseram a questioná-las estabelecendo uma relação aberta. Porque sabem que seus desejos extrapolam sua relação, e supostamente sabem que estas outras pessoas não ameaçam a relação deles. No entanto, a dificuldade de encarar a sinceridade necessária para aceitar a liberdade dx outrx, faz com que prefiram as mentiras. A dificuldade de encarar os ciúmes, porque efetivamente não é nada fácil. Mas será que vale a pena todo o sofrimento que esses ciúmes geram? Todo o desgaste nas relações, todo o desgaste na autoestima, e na confiança? Cada umx toma suas próprias decisões, e fica com o que aprende das situações. Da minha parte, apesar as tristezas que esta experiência me provocou me deixaram com a clara sensação de que as experiências de sinceridade que já experimentei foram muito mais gratificantes, e envolveram muito menos sofrimento de todas as partes envolvidas.

No caso da história relatada, a ruptura destas relações minha com eles não teve maiores implicações em nenhuma coletividade política, pois eu não faço realmente parte dos espaços organizados locais. Estive nesse contexto de passagem, por alguns meses, e minha partida faz com que esta história se dilua e se perca no tempo, só “um caso” mais numa relação conflituosa. Nos meses que se seguiram à ruptura, contei esta situação a algumas amigas em comum, do grupo feminista do qual me aproximei, por compartilhar com elas as reflexões que se expressam neste texto. As amigas em comum com quem comentei esta situação tiveram a maturidade de não se envolver “tomando partido” de nenhum dos lados, apesar de, pelo menos nas conversas que tivemos, todas elas concordaram com meus questionamentos ao fato de ter a mentira como pilar da relação. Mas, e se este caso tivesse acontecido num coletivo que faz ações juntx? Que tão pessoal seria esse problema? A solução do silêncio como castigo, da ruptura de relação sem mais diálogo, seria uma solução factível? Que tão cuidadosxs somos, então, com a coletividade, a partir das nossas relações pessoais?

E sobre as causas que levaram a essa reação: de onde nasce a braveza que nos gera saber que alguém que amamos vive momentos igualmente agradáveis com outras pessoas – seja sexual, intelectual ou emocionalmente, caso consigamos separar essas dimensões-? De onde tiramos a demanda de que outra pessoa seja responsável pela nossa felicidade e assuma nossos gostos e planos de vida para si? De que adianta darmos repostas a estas perguntas, se não nos propomos a mudar as situações que as geram? Essas perguntas tentam ser respondidas por vários dos outros textos presentes nesta coletânea, mas nunca caberão em frases definitivas. Estarão sempre nos acompanhando nesta jornada, e é necessário tê-las sempre presentes, fazê-las e refazê-las, mais que em nossos discursos, na nossa prática cotidiana. Antes desta relação, eu achava que uma questão chave para que as pessoas assumissem para suas vidas os desafios de viver relações livres era principalmente uma questão de imaginação. A possibilidade de imaginar que outros tipos de relações são possíveis. Continuo achando que propagar esta ideia é extremamente necessário e importante, mas não é suficiente. Assim como qualquer outra prática política, conhecer a ideia não é suficiente, e o discurso serve de muito pouco se não está acompanhado da prática, mesmo que seja tentando infinitas vezes e quebrando a cara. Em cada uma das tentativas, aprenderemos, para poder seguir adiante.