Esquizocenia

De Protopia
Ir para navegação Ir para pesquisar
Peter Pál Pelbart


Toda noite, do alto de sua torre, o prefeito de Gotham esbraveja indistintamente contra magnatas, prostitutas e psiquiatras. Promete mundos e fundos, o controle e a anarquia, o pão e a clonagem. Mas nessa noite, antes de entrar em cena, ele pede um Lexotan. Mal consegue acreditar no que vê: Marta Suplicy vai assistir a peça. O prefeito da cidade imaginária não sabe o que fazer com a prefeita da cidade real: protestar, competir, seduzir, acanhar-se? Gotham-SP tem também um imperador muito velho. Quase cego, quase surdo, quase mudo, ele é o destinatário de vozes perdidas. Em vão: nem o imperador caquético nem o prefeito que vitupera têm qualquer poder sobre o que se passa na cidade, menos ainda sobre o humor dos que nela sussurram.


“Aqui faz frio”, repete a moradora em seu cubículo, e conclui: “Se amanhã o hoje será nada, para que tudo?” Um passageiro pede companhia ao taxista, que apenas ecoa suas lembranças e temores. A diva decadente busca a nota musical impossível, Ofélia sai de um tonel de água atrás do amado, os anjos tentam entender onde pousaram, Josué ressuscitado reivindica uma outra ordem no mundo... Falas sem pé nem cabeça, diria um crítico – mas elas se cruzam agonisticamente numa polifonia sonora, visual, cênica, metafísica.. Vozes dissonantes que nenhum imperador ou prefeito consegue ouvir, nem orquestrar, mas tampouco abafar. Cada um dos seres que comparece em cena carrega no corpo frágil seu mundo gélido ou tórrido... Uma coisa é certa: do fundo de seu isolamento pálido, esses seres pedem ou anunciam uma outra comunidade de almas e corpos, um outro jogo entre as vozes – uma comunidade dos que não têm comunidade.


Viver, morrer

Talvez a companhia de teatro Ueinzz seja para eles algo desta ordem. Passam meses no marasmo de ensaios semanais insípidos, às vezes se perguntam se de fato algum dia se apresentaram ou voltarão a apresentar-se, alguns atores desaparecem, o patrocínio míngua, textos são esquecidos, a companhia ela mesma parece uma virtualidade impalpável. E de repente surge uma data, um teatro disponível, um mecenas ou um patrocinador, o vislumbre de uma temporada.. O figurinista recauchuta os trapos empoeirados, a 1900 se compromete a doar aos atores a pizza inescapável que precede cada apresentação, o boca a boca compensa uma divulgação mambembe, atores sumidos há meses reaparecem, às vezes fugidos até de uma internação... Um campo de imantação é reativado, prolifera e faz rizoma. Os solitários vão se enganchando, os dispersos se convocam mutuamente, um coletivo feito de singularidades díspares se põe em marcha, num jogo sutil de distâncias e ressonâncias, de celibatos e contaminações – compondo o que Guattari chamaria de um “agenciamento coletivo de enunciação”. Mas mesmo quando tudo “vinga”, é no limite tênue que separa a construção do desmoronamento.


Por exemplo, no Festival Internacional de Teatro de Curitiba, minutos antes da apresentação de “Dédalus”, nosso narrador, peça- chave no roteiro, comunicou-nos que não participaria – esta era a noite de sua morte. Depois de muita insistência concordou em entrar, mas suas palavras deslizavam umas sobre as outras de maneira tão pastosa que em vez de servirem de fio narrativo nos chafurdaram num pântano escorregadio. E o narrador, no momento em que se transforma no barqueiro Caronte para levar Orfeu até Eurídice, ao invés de conduzí-lo em seu barco rumo ao Inferno, sai do palco pela porta da frente do teatro em direção à rua, onde minutos depois o encontro sentado na mais cadavérica imobilidade, balbuciando sua exigência de uma ambulância – havia chegado a sua hora derradeira. Ajoelho-me ao seu lado e ele diz: “Vou para o charco”. Como assim? pergunto eu. “Vou virar sapo”. O príncipe que virou sapo, respondo carinhosamente, pensando que nesta nossa primeira tournée artística ele viaja com sua namorada recente, é como uma lua de mel. Mas ele responde, de modo inesperado: “Mensagem para o ACM”. Sem titubear digo que “estou fora”, não sou amigo do ACM, melhor mandar o ACM para o charco e ficarmos nós dois do lado de fora. Depois a situação se alivia, ao invés da ambulância ele pede um cheesburger do McDonald´s, conversamos sobre o resultado da loteria em que apostamos juntos e o que faremos com os milhões que nos esperam. Ouço os aplausos finais vindos de dentro do teatro, o público começa a retirar-se. O que eles vêem na saída para a rua é Hades, rei do inferno (meu personagem) ajoelhado aos pés de Caronte morto-vivo, pelo que recebemos uma reverência respeitosa de cada espectador que passa por nós, para quem essa cena íntima parece fazer parte do espetáculo.

Por um triz nosso narrador não se apresentou, por um triz ele sim se apresentou, por um triz ele não morreu, por um triz ele viveu...


Vidas precárias, práticas estéticas

Seria preciso ousar um salto extravagante: situar a relação entre “vida precária” e “prática estética” no contexto biopolítico contemporâneo. Partamos do mais simples. A matéria prima nesse trabalho teatral é a subjetividade singular dos atores, e nada mais. A tematização do trabalho imaterial nos últimos anos permite iluminar uma dimensão antes inteiramente insuspeitada na encenação que relatei. Chama-se trabalho imaterial aquele que produz coisas imateriais (por exemplo, ao invés de geladeiras ou sapatos, imagens, informação, signos), aquele que para ser produzido mobiliza dos que o produzem requisitos imateriais (não a força física, mas a imaginação, criatividade, inteligência, afetividade, poder de conexão intersubjetiva) e, por fim, trabalho imaterial é aquele cujo produto incide sobre um plano imaterial de quem os consome (sua inteligência, percepção, sensibilidade, afetividade etc.). O que caracteriza o trabalho imaterial, tendencialmente predominante no capitalismo de hoje, é que por um lado para ser produzido ele exige sobretudo a subjetividade de quem o produz, no limite até os seus sonhos e crises são postos para trabalhar, e por outro que os fluxos que ele produz, de informação, de imagem, de serviços, afetam e formatam sobretudo a subjetividade de quem os consome. Nunca a obsessão de Guattari de que a subjetividade está no coração da produção capitalística fez mais sentido do que hoje. Com um adendo que Guattari já deixava entrever: não só a subjetividade está nas duas pontas do processo, da produção e do consumo, mas a própria subjetividade tornou-se “o” capital. Antes de mencionar alguns exemplos, vale insistir: quando dizemos que os fluxos imateriais afetam nossa subjetividade, queremos dizer que eles afetam nossas maneiras de ver e sentir, desejar e gozar, pensar e perceber, morar e vestir, em suma, de viver. E quando dizemos que eles exigem de quem os produz sua subjetividade, queremos dizer que eles requisitam suas formas de pensar, imaginar, viver, isto é, suas formas de vida. Em outras palavras, esses fluxos imateriais têm por conteúdo formas de vida e nos fazem consumir formas de vida. Quem diz formas de vida, diz vida. Então, ousemos a fórmula lapidar. Hoje o capital penetra a vida numa escala nunca vista e a vampiriza. Mas o avesso também é verdadeiro: a própria vida virou com isso um capital. Poia se as maneiras de ver, de sentir, de pensar, de perceber, de morar, de vestir tornam-se objeto de interesse e investimento do capital, elas passam a ser fonte de valor e podem, elas mesmas, tornar-se um vetor de valorização, como se verá a seguir.


Eis o primeiro exemplo. Um grupo de presidiários compõe e grava sua música: o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua singularidade, sua percepção, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de “morar” na prisão, de gesticular, de protestar – sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é isso que eles capitalizaram e que assim se autovalorizou e produziu valor. Nas periferias das grandes cidades brasileiras isso vai se ampliando, uma economia paralela, libidinal, axiológica, grupal ou de gangue, estética, monetária, política feita dessas vidas extremas. É claro que num regime de entropia cultural essa “mercadoria” interessa, pela sua estranheza, aspereza, diferença, visceralidade – e vários filmes recentes atestam essa tendência – ainda que facilmente também ela possa ser transformada em mero exotismo de consumo descartável.


Vampirismo insaciável

É o caso de meu segundo exemplo. Em 2000 fui contactado por uma ONG de índios (Ideti) para acompanhar de ônibus a vinda a São Paulo de duas tribos do Xingú (Xavante e Mehinaku), que queriam marcar presença na comemoração dos 500 anos do Descobrimento. Pretendiam apresentar a força de seu ritual e oferecer ao presidente uma carta aberta em que declaravam nada ter para comemorar. Mas como evitar que a apresentação de seu ritual, uma vez levada a um palco iluminado, se diluísse na mera espetacularização, inclusive televisiva? A forma de vida que queria salvaguardar-se, caso não tomasse muitos cuidados, corria o risco óbvio de ser deglutida como folclore. É o que aconteceu com a maravilhosa exposição de arte indígena na Oca do Ibirapuera, que tive o triste privilégio de visitar ao lado dos índios “vivos”. Na saída o cacique Xavante me desabafou, num diagnóstico de inspiração fortemente nietzschiana[1]: “tudo isso é para mostrar a vaidade de conhecimento do homem branco, não a vida dos índios”. Nunca ficou tão claro o quanto a assepsia de um museu encobre de violência e genocídio – tema benjaminiano por excelência. O domo branco de Niemeyer, a superfície lisa, as curvas sensuais dos corrimãos metálicos, a luminosidade cuidada – tudo ali ajudava a ocultar que cada objeto exposto era espólio de uma guerra. Não havia uma gota de sangue em toda a exposição. A morte fôra expurgada dali, mas também a vida. Não reencontramos, nessa museologização da cultura indígena, nosso vampirismo insaciável?


Vida e capital

Último exemplo. Arthur Bispo do Rosário é um dos mais destacados artistas da atualidade no Brasil, se é que se pode chamar seu trabalho, feito ao longo de anos de internação num hospício, de artístico, ele que tinha uma única obsessão na vida, registrar sua passagem pela terra para o dia de sua ascenção ao Céu, momento para o qual preparou seu majestoso Manto da Apresentação, onde está inscrita parte da história universal. Os museus, críticos de arte, pesquisadores, colecionadores, psicanalistas, o “mercado” tomaram de assalto essa vida singular, seu diálogo direto com Deus e com todas as regiões da terra, de modo que essa missão celestial tornou-se objeto de contemplação estética, como era de se esperar, embora tenha semeado nos modos de se conceber a relação entre arte e vida sua dose de estranheza.


Três trajetos, três destinos: um bandido vira pop-star dentro da cadeia, ou recusa justamente o mercado com o qual ele mantém uma distância crítica (gravadora independente etc.); o índio se indigna com o modo pelo qual os brancos empalham os signos de sua vida; o louco é catapultado para a esfera museológica, à sua revelia. Nesses exemplos todos, vem à tona a relação ambígua e reversível entre vida e capital. Ora a vida é vampirizada pelo capital – chame-se ele mercado, mídia ou sistema da arte –, ora a vida é o capital, isto é, fonte de valor, e é sempre tênue a fronteira entre um caso e outro. Quando a vida funciona como um capital ela reinventa suas coordenadas de enunciação e faz variar suas formas. Quando vampirizada pelo capital ela é rebatida sobre sua dimensão nua, como diz Agamben, de mera sobrevida, com o que nos transformamos por exemplo em gado cibernético, ou cyberzumbis, como o formulou Châtelet no seu texto Pensar e viver como porcos.


O pano de fundo biopolítico que permite elencar conjuntamente esses exemplos é o seguinte. Décadas atrás, Foucault forjou a noção de biopoder para mapear um regime que tomava por objeto a vida. A vida já não era mais aquilo que o poder reprimia, mas aquilo de que ele se encarregava, que ele geria e administrava – o biopoder se interessava pelas condições de produção e reprodução da população enquanto espécie, enquanto vida. É o poder sobre a vida. Foucault intuiu muito rápido, porém, que aquilo que o poder investia – a vida – era precisamente o que doravante ancoraria a resistência a ele, numa reversão inevitável. Mas talvez ele não tenha levado tal intuição até as últimas consequências. Coube a Deleuze explicitar que ao poder sobre a vida, deveria responder o poder da vida, na sua potência política de resistir e criar, de variar, de produzir formas de vida. É o que o grupo de teóricos em torno de Negri tem priorizado ao falar até mesmo em biopotência, invertendo o sentido foucaultiano e dando à biopolítica não só uma acepção negativa de poder sobre a vida, mas sobretudo um sentido positivo referente ao poder da vida. Nessa perspectiva, e voltando ao nosso tema, se é claro que o capital se apropria da subjetividade e das formas de vida numa escala nunca vista, a subjetividade é ela mesma um capital biopolítico de que cada vez mais cada um dispõe, virtualmente, loucos, detentos, índios, mas também todos e qualquer um e cada qual com a forma de vida singular que lhe pertence ou que lhe é dado inventar – com conseqüências políticas a determinar.


É nesse horizonte que, a meu ver, seria preciso situar a referida experiência de teatro. Se é a subjetividade que ali é posta a trabalhar, o que está em cena é uma maneira de perceber, de sentir, de vestir-se, de mover-se, de falar, de pensar, mas também uma maneira de representar sem representar, de associar dissociando, de viver e de morrer, de estar no palco e sentir-se em casa simultaneamente, nessa presença precária, a um só tempo plúmbea e impalpável, que leva tudo extremamente a sério e ao mesmo tempo “não está nem aí”, como o definiu depois de sua participação musical numa das apresentações o compositor Livio Tragtemberg – ir embora no meio do espetáculo atravessando o palco com a mochila na mão porque sua participação já acabou, ora largando tudo porque chegou a sua hora e vai-se morrer em breve, ora atravessar e interferir em todas as cenas como um líbero de futebol, ora conversar com o seu ‘ponto’ que deveria estar oculto, denunciando sua presença, ora virar sapo... Ou então grunhir, ou coaxar, ou como os nômades de Kafka em A Muralha da China, falar como as gralhas, ou apenas dizer Ueinzz... O cantor que não canta, quase como Josefina, a dançarina que não dança, o ator que não representa, o herói que desfalece, o imperador que não impera, o prefeito que não governa – a comunidade dos que não têm comunidade.


Não consigo deixar de pensar que é esta vida em cena, “vida por um triz”, que faz com que tantos espectadores chorem em meio às gargalhadas: a certeza de que são eles os mortos-vivos, que a vida verdadeira está do lado de lá do palco. Num contexto marcado pelo controle da vida (biopoder), as modalidades de resistência vital proliferam de maneiras as mais inusitadas. Uma delas consiste em pôr literalmente a vida em cena, não a vida nua e bruta, como diz Agamben, reduzida pelo poder ao estado de sobrevida, mas a vida em estado de variação, modos “menores” de viver que habitam nossos modos maiores e que no palco ganham visibilidade cênica, legitimidade estética e consistência existencial.


No âmbito restrito ao qual me referi aqui, o teatro pode ser um dispositivo, entre outros, para a reversão do poder sobre a vida em potência da vida. Afinal, na esquizocenia[2] a loucura é capital biopolítico. Mas o alcance dessa afirmação extrapola em muito a loucura ou o teatro, e permitiria pensar a função de dispositivos multifacéticos –ao mesmo tempo políticos, estéticos, clínicos– na reinvenção das coordenadas de enunciação da vida. Nas condições subjetivas e afetivas de hoje, com as novas formas de “ligação” e de “desligamento” que caracterizam a multidão contemporânea, e que se deixam ler na “comunidade dos que não têm comunidade”, um dispositivo “minúsculo” como o que apresentamos ressoa com as urgências maiúsculas do presente.


A Cia Teatral Ueinzz é composta por pacientes e usuários de serviços de saúde mental, terapeutas, atores profissionais, estagiários de teatro ou performance, compositores e filósofos, diretores de teatro consagrados e vidas por um triz. Fundada em 1997 no interior do Hospital-Dia “A Casa” em São Paulo, em 2002 se desvinculou por inteiro do contexto hospitalar. Com três peças dirigidas por Sérgio Penna e Renato Cohen, e música de Wilson Sukorski, num total de mais de 100 apresentações, boa parte no Teatro Oficina, e também no exterior, a trupe conquistou sua independência e maioridade. Talvez seja o único grupo no gênero, em todo o Brasil, e um dos poucos no mundo[3]

Referências

  1. F. Nietzsche, “Da utilidade e desvantagem da história para a vida”, Considerações Extemporâneas II.
  2. Termo cunhado pelo diretor Sérgio Penna para designar essa interface teatro/loucura.
  3. Para mais informações sobre a Cia, ou para contatos e apoios sempre bem-vindos, consultar o site: http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm Sob minha coordenação geral, juntamente com os atores-terapeutas Ana Carmen del Collado, Eduardo Lettiere, Erika Inforsato, Paula Francisquetti, o projeto Ueinzz é fruto de um esforço coletivo, e também de parcerias bem-sucedidas, tal como com o Centro Cultural Elenko, ou o curso de Comunicaçao e Artes do Corpo, da PUC-SP. Para um relato mais detido sobre o percurso do grupo desde o início, ver os artigos “Ueinzz – viagem a Babel”, em A vertigem por um fio, e “Tempo dos loucos, tempos loucos”, na revista Sexta-feira, n.5. Carmen Opipari e Sylvie Timbert realizaram um documentário de hora e meia a partir da experiência da trupe, intitulado “Eu sou Curinga! O Enigma!”. O vídeo pode ser encomendado no endereço: opiparitimbert@hotmail.com



Textos

A | B | C | D | E | F | G | H | I | J | K | L | M | N | O | P | Q | R | S | T | U | V | W | X | Y | Z