Extinção
Então lá estávamos nós no parque, sentados em círculo, como nos velhos dias ― nossos próprios velhos dias, e os velhos dias de nossos ancestrais ― tentando negociar os termos de nossa nova aliança. Nós éramos os escravos que se rebelaram com Spartacus, a assim chamada nação Iroquesa, os heróis da Guerra Civil Espanhola. E como os escravos, como os assim chamados iroqueses, os anarquistas catalãos, não podíamos superar nossas diferenças, e portanto estávamos condenados.
Depois do atentado, a coalizão liberal local se dividiu em dois; a facção mais jovem e mais militante acusava o governo de colocar a população em perigo ao provocar ataques terroristas, e convocou uma manifestação para tornar essa acusação pública. Isto marcou uma mudança dramática: os mesmos liberais de outras localidades tinham respondido aos ataques com braços cruzados e paralisia, condenando uma guerra após a outra sem fazer a conexão entre guerra e ocupação aos ciclos que produzem terrorismo. Essa manifestação iria coincidir com um protesto sobre mudanças climáticas, então os dois se juntaram sob uma bandeira "Aproprie-se do Fim do Mundo".
Graças aos esforços de Pablo, nosso novo grupo havia sido convidado para dar garras ao evento. Só precisávamos acertar os detalhes entre nós mesmos, mas isso estava se mostrando impossível.
Enquanto a conversa se arrastava, cada um de nós brincava com qualquer objeto que estivesse à mão. Marshall estava construindo pequenos fortes com gravetos caídos dos galhos acima; Diego pegava os gravetos e quebrava-os em pedaços cada vez menores, sem prestar atenção, para depois os arremessar por cima do ombro; eu me descobri rasgando meticulosamente as folhas da grama em tiras cada vez mais finas. Um antropólogo de alguma sociedade futura, observando sem entender o que dizemos, poderia ter concluído que essas brincadeiras eram nossa atividade principal. Talvez seja isso que os nossos antropólogos modernos queiram dizer quando dizem que nossos ancestrais passavam tento tempo brincando: eles estão apenas reconhecendo que eles não podem descobrir o que os nossos antecessores estavam fazendo mais do que os antigos antropólogos que interpretavam essas mesmas atividades como trabalho.
"Ok, amigos, não estamos indo a lugar algum." Kate havia esperado pacientemente pela sua vez para dizer o óbvio. "Nossa única esperança é nos dividirmos em grupos menores. De outra forma ainda estaremos aqui amanhã de manhã."
Olhamos cheios de dúvidas uns para os outros. Fazia quase duas horas que estávamos evitando falar disso: todos nós queríamos desesperadamente voltar à ação, mas nossas relações estavam fraturadas, nossa confiança rompida. Kate continuou com a coragem silenciosa que a distinguia do resto de nós. "Cada pessoa deve ter um parceiro. Pablo, quer tentar trabalhar comigo?"
Este foi um gesto cheio de significados; Kate e Marshall trabalhavam juntos em tudo desde o fim da ocupação, pelo menos até que Marshall lhe contou sobre seu relacionamento comigo. Pablo hesitou. "Acho que sim. Quer dizer, eu não sou muito qualificado..." disse, se esquivando.
Diego quebrou o silêncio. "Tá certo, eu vou trabalhar com o Marshall, mas só com ele."
Eu olhei para Marshall desesperadamente. Ele tentou se desvencilhar de Diego: "Diego, se..."
Diego se dirigiu ao círculo. "Escutem, eu acabo de cumprir dois anos de prisão e no final desse tempo ninguém me escrevia a não ser o Marsh. Eu estou com a sentença suspensa, eu não deveria nem estar envolvido nesta merda ― eu não posso confiar em ninguém que não tenha um passado como esse comigo. Eu sei que todos precisam de parceiros, mas isto é o que eu preciso, senão eu caio fora."
O outro lado do círculo era composto de garotos novos, que observavam esse desastre com desconforto. Eles ainda eram jovens demais para terem posto suas amizades à prova; eles não teriam problemas para encontrar parceiros. Apesar disso, eu não conhecia nenhum deles bem o suficiente para trabalhar junto. "E como eu fico, então?"
Diego saltou. "Bem, onde estão os seus amigos? Onde está Rita? Ela não deveria estar aqui? E a Floco, ou Floco-de-Neve ou qualquer que fosse o seu nome, e todos aqueles jovens viajantes com quem você fugiu? Eles se derreteram?"
Eu não sabia o que dizer. Já não tínhamos passado por isso há anos atrás? Marshall sussurrava algo no ouvido de Diego, bravo. Meus lábios tremiam e o meu rosto estava quente.
Kate não ajudou quando tentou mudar de assunto. "Lembrem-se, temos que montar o Centro hoje à noite, também. Se não conseguirmos..."
"Ótimo, eu vou fazer isso. Vocês podem resolver isso sozinhos."
"Samia..."
Eu estava fora de alcance antes que ela pudesse terminar a frase.
Era doloroso retornar ao nosso espaço justamente porque eu estava tão empolgada com isso. Se eu apenas conseguisse me desapontar com tudo, eu conseguiria desistir e parar de me magoar ― e eis que tínhamos conseguido um prédio de dois andares com uma cozinha industrial e espaço para acomodar mais de cem pessoas.
Eu passei pela fachada lacrada e entrei pela porta lateral. A sala principal ainda estava uma bagunça: mesas e cadeiras da universidade empilhadas contra a parede, caixas de livros da biblioteca, latas de tintas misturadas, sacos de pães. Pelo menos os congeladores estavam funcionando então o programa de alimentos poderia se expandir sem sobrecarregar a casa apertada que o havia abrigado. Quando este espaço estiver pronto ― quando as paredes estiverem pintadas, as prateleiras cheias de livros, o laboratório de informática funcionando, o palco construído ― seria maravilhoso.
Mas como era horrível estar comprometida com um projeto tão maravilhoso com pessoas tão problemáticas! Tudo em que eu estava envolvida dependia de pessoas como Diego ― era vulnerável aos seus caprichos, aos seus ressentimentos e vendetas, à sua recusa egoísta de levar as necessidades dos outros a sério. Como eu poderia ir rumo à decepção ao me comprometer com coisas com eles quando eles não estavam comprometidos em cuidar de mim?
Ao mesmo tempo, como eu poderia deixar para trás tudo que eu trabalhei tão duro para construir? Se eu estava presa aqui da mesma forma que eu estava presa naquele prédio de escritórios anos atrás, era ainda pior o fato de que eram os meus próprios desejos e aspirações que me prendiam ao invés simples medo e inércia. Era como um casamento abusivo onde eram os meus projetos que estavam servindo de refém ao invés dos meus filhos. Eu larguei uma leva de caixas na despensa e fui buscar mais.
E por falar em dinâmicas de poder, não era óbvio que, como a única mulher de cor no grupo, aqui estava eu limpando enquanto todos os outros brincavam de heróis? Era muito conveniente que eles pudessem enxergar isto como um conflito pessoal entre Diego e eu. Pessoas brancas sempre têm medo de se envolver quando pessoas de cor estão brigando. E quanto à Kate, ela não deveria ter me acolhido se Marshall e eu não pudéssemos ficar juntos? Por que é tão difícil para as pessoas lidar com mudanças nos seus relacionamentos?
Eu removi uma pilha de cartazes de divulgação do protesto de uma caixa e carreguei-os junto ao peito. Por que diabos estávamos protestando contra o terrorismo e as mudanças climáticas? Com certeza, eles estavam nos matando, mas nenhum protesto iria pará-los. Um grupo passou pela cidade há algumas semanas em uma turnê de palestrar sobre aquecimento global. Ouvi eles contarem que, dentro de algumas gerações, nossa espécie teria o mesmo destino que todas as espécies que nós já levamos à extinção.
Nossa própria mortalidade já é assustadora o suficiente: se todo momento que passa é irrecuperável, como possivelmente podemos viver de acordo? O que seria necessário para aumentar o desafio e realmente tirar o máximo da vida? Certamente eu não estava fazendo isso ao arrastar caixas pelo pó.
Mas a extinção da espécie humana ― isto é impensável. Faz você tremer só de pensar, apesar de todos saberem que, com aquecimento global, inverno nuclear ou não, todas as espécies morrem mais cedo ou mais tarde. Śe já é doloroso confrontar nossos fracassos individuais de aproveitar cada dia face a nossas mortes iminentes, multiplique isso por seis bilhões.
Larguei outra pilha de caixas e desisti de limpar o piso. Todo dia, cada um de nós aceita inumeráveis indignidades e adiamentos da felicidade com fé de que um dia não será mais assim. Quer ou não você acredite em paraíso, o futuro está sempre aí para redimir o potencial desperdiçado do presente ― e o futuro de nossa espécie é a maior das políticas de seguro, a maior das eternidades. Quando nos negamos a viver os nossos sonhos, nós depositamos esta responsabilidade sobre os ombros da próxima geração; se não conquistarmos a libertação em nossas próprias vidas, sempre há o futuro, luzindo à distância, quando todas nossas profecias deverão tornar-se realidade.
Mas se o futuro é só uma ilusão, uma projeção, como fica? E se nunca houver um felizes-para-sempre, uma redenção, uma revolução? O amanhã chegará tão terrível como o hoje, e as pessoas irão adiar tudo novamente até que cada um de nós tenha se tornado um cadáver ― e se torne claro que nós éramos cadáveres o tempo todo.
Eu tinha chegado no topo da escadaria; agora eu comecei a subir a pequena escada que levava até o telhado. Mesmo que conseguíssemos fechar todas as fábricas, mesmo que conseguíssemos desfazer as centenas de anos de poluição que causaram o aquecimento global, mesmo que desarmássemos todas as ogivas, derrubássemos todos governos e incendiássemos todas as prisões, ainda estaríamos condenados: como indivíduos, como sociedade, como espécie. O mundo que viria era um grande cemitério.
A vista do telhado me tirou desses pensamentos sombrios. A noite estava caindo e as primeiras estrelas brilhavam no céu. Em algum lugar sob estas mesmas estrelas haviam estradas pelas quais eu nunca tinha viajado, litorais em que nunca pisei, pessoas bonitas que eu nunca encontrei. Se tanto o presente quanto o futuro eram inescapáveis e irrecuperáveis, isso não me tirava todo o peso, todos os débitos e me deixava livre? Eu não deveria estar lá fora viajando por essas estradas, caminhando por esses litorais e conhecendo essas pessoas? O que é que eu estou fazendo neste lugar deprimente, mesmo?
Eu voltei a mim em um sobressalto. Este era exatamente o jeito que eu começava a pensar toda a vez antes de começar a pular de cidade em cidade. E não era tão distante da corrente de pensamento da Rita na época em que ela voltou atrás e renunciou às suas antigas crenças. Se eu queria parar de andar em círculos, eu tinha que fazer as coisas darem certo com Marshall e Kate, até mesmo com Diego. Talvez fosse impossível, mas eu tinha que descobrir do jeito mais difícil.
Logo mais eu seria pó, talvez junto com toda minha civilização. Todos os rebeldes e heróis do passado ― todos os escravos fugitivos e guerreiros indígenas, todo Cavalo Doido e Durruti ― já eram pó ao lado dos mercenários que os mataram, as massas anônimas que ficaram olhando, e os covardes que quiseram juntar-se a eles mas sempre encontravam desculpas para não o fazer. Isso não os afastou dos seus feitos. Agir quando tudo um dia será nada, arriscar a sua breve vida em uma rebelião dos mortos ― esta é uma forma de pular para fora da esteira da história, de parar de ser um cadáver em espera.
Se Daniel houvesse vivido o suficiente para ficar comigo naquele telhado, eu imagino que ele teria ficado para lutar. Eu desci a escada e fui procurar material para fazer uma faixa.