Ficção científica: a nova utopia anarquista
Músicos anarquistas como Thom Yorke (Radiohead), Eugene Hutz (Gogol Bordello), Jello Biafra (ex-Dead Kennedys, presentemente com o grupo Guantanamo School of Medicine), Jude Abbot (Chumbawamba), Holger Czukay (Can, ainda e sempre), Chris Johnston (Ghost Mice) e Lemmy (Motorhead, ex-Hawkwind) terão, com certeza, consciência de que a música que fazem, da maneira como a fazem e, sobretudo, como a apresentam e colocam em circulação, é um produto formatado pela «sociedade do espectáculo».
A expressão foi cunhada pela Internacional Situacionista e, em particular, por Guy Débord, significando que a vida social dos nossos dias, em todos os seus aspetos, se transformou em mera representação.
Integridade ou glamour
Diria até que as músicas criadas e interpretadas pelas figuras em causa têm duplamente essa condição, dado que todas estas bandas se movimentam nos domínios da cultura pop. Esta é, por inerência, representação da representação, mesmo quando o propósito que lhes assiste seja mudar as consciências e a sociedade.
Nem todas têm essa ambição militante, funcionando mais ou menos passivamente nos meandros do mercantilismo capitalista (veja-se o caso dos Radiohead), mas mesmo quando a mensagem é política pouco podem os combativos Chumbawamba ou os veteranos e sabidos Can (nome derivado dos acrónimos de «Comunismo-Anarquismo-Niilismo») contra os mecanismos de recuperação e coisificação da máquina industrial de que fazem parte.
Não chega compor canções pop anarquistas, para mais quando se tem por adquirido que, não obstante o seu glamour, o factor «pop» é destrutivo. Faria libertariamente mais sentido optar por um formato menos comercial ou, porque não, inventar algum novo, como, de resto, fizeram os praticantes das músicas improvisada e experimental?
Fará com certeza, mas não implica isso uma diminuição das audiências, o tal «afastamento das massas» que é, desde sempre, o grande pesadelo das esquerdas (e claro que também originando uma diminuição dos rendimentos pessoais)? Pois implica, mas lá está: aceitar o jogo capitalista com a pretensão de o sabotar tem conduzido apenas à sua manutenção…
Não é fácil chegar a boas conclusões, mas estes músicos deviam pensar autocriticamente no que será (ou seria; sejamos objectivos e desapaixonados) a música numa democracia de base, comunalista e federativa. Provavelmente, alguns deles enrolariam a bandeira negra, tais as contestações que encontrariam do seu assumido conceito monetarista de «carreira».
Nada melhor, para tal, do que consultar os cenários musicais avançados pela literatura anarquista, em especial a de ficção científica ou de antecipação, dadas as superiores capacidades de «visualização» narrativa e descritiva que esta tem relativamente à escrita filosófica, bem mais seca e cifrada.
A mais importante forma de arte
Por algum motivo, de resto, o autor da «Mars Trilogy», Kim Stanley Robinson, sustenta peremtoriamente que «a FC é, hoje, a mais importante forma de arte».
Aliás, a FC tomou nos últimos 50 anos o lugar que as utopias tiveram desde, pelo menos, o século XVI e um visionário chamado Thomas Morus. Com a vantagem de o imaginário utópico actual, seja o projectado para outros planetas («The Dispossessed», Ursula Le Guin) como aquele que refere um tempo terrestre derivado dos presentes circunstancialismos («The Free», Mike Gilliland) ter perdido o clássico carácter distópico…
Afinal, em Arrares, o mundo que aplica os princípios da filósofa anarquista Odo (cuja obra Le Guin imagina como uma síntese das ideias libertárias desde Proudhon até 1974, ano em que publicou o livro), no já referido «The Dispossessed», a música, tal como, de resto, todas as demais artes, «não é considerada como tendo um lugar na vida, sendo antes uma técnica básica da vida, à semelhança do discurso falado».
Se todos aprendem a cantar e a tocar um instrumento desde crianças e se todos criam (ou não) música quando o entendem, na sociedade odonista não há músicos profissionais nem propriamente «concertos». A música faz parte do quotidiano, mas não dispõe de um espaço próprio e diferenciado no aparelho de produção, nem de circuitos de distribuição ou de divulgação específicos.
Até um ilustre, ainda que polémico, cientista como o protagonista Shevek dedica uma boa parte da sua atenção ao trabalho socialmente útil no imediato, surgindo a Física apenas como um part-time no seu dia-a-dia ou como uma actividade concentrada em períodos isolados na sua duração.
Ora, não sendo a música considerada um bem de primeira necessidade, os odonistas criam música somente nos tempos que o ensino de música lhes deixa livres, inserindo-a em contextos de socialização dos trabalhadores em que todos são músicos e ouvintes em simultâneo.
Como escreve Ursula Le Guin quando Shevek assiste a um espectáculo na capitalista Abbenay, «ele pensava que a música era algo que se fazia e não que se ouvia». Pela primeira vez, testemunha um momento musical fruto da divisão e da especialização do trabalho, em que músicos tocam para não-músicos.
Esta diferenciação social entre «produção» e «consumo» está no cerne mesmo do fenómeno pop. Se todos tivéssemos habilitações musicais não haveria tops ou hits. Nem, de resto, Radiohead, Gogol Bordello e Chumbawamba.
É neste ponto que a utopia da escritora norte-americana se confirma como uma contra-utopia. Mesmo não havendo governo, patrões e hierarquias, a sociedade e os seus utilitarismos constituem, ou podem constituir, uma forte pressão sobre os indivíduos.
Como afirma outra personagem, Bedap, sobre o «sofrimento espiritual» de alguém que deseje outra coisa que não aquilo que é pretendido pela generalidade dos cidadãos, alguém, por exemplo, que sinta a necessidade de se expressar musicalmente a tempo inteiro:
«O sofrimento de pessoas que vêem o seu talento, o seu trabalho, a sua vida perdidos. De boas mentes submetidas a gente estúpida. De força e coragem estranguladas pela inveja, pela ganância do poder, pelo receio da mudança. A mudança é liberdade, a mudança é vida – há algo de mais básico no pensamento odoniano do que isso? Mas nada mais muda. A nossa sociedade está doente.»
Coletivismo egoísta
É o que se passa, precisamente, com Salas, o compositor. Porque os mandatados do Sindicato dos Músicos não gostam do que faz, impedem-lhe uma maior dedicação à escrita. Numa reacção de rebeldia, ele recusa-se a dar aulas…
«É que eu não componho da maneira que se ensina no conservatório. Componho música disfuncional. Eles querem corais, mas eu odeio corais. Querem peças de harmonia aberta como as que Sessur escrevia, mas eu odeio a música de Sessur. Estou a escrever uma peça de música de câmara e vou chamar-lhe “O Princípio da Simultaneidade” (nota: o mesmo nome da teoria física de Shevek): cada um dos cinco instrumentos toca um tema cíclico independente, sem causalidade melódica, com o processo de desenvolvimento surgindo inteiramente da relação entre as partes.»
Infelizmente, como Sala conclui, «eles não ouvem, não querem ouvir».
É a vertente coletivista da anarquia que se contrapõe à individualista, comprovando que os preceitos colectivistas de Kropotkin só fazem sentido quando se colocam em prática também os «egoístas» de Stirner, sob o risco de se instalar outro totalitarismo. Repare-se no comentário de Bedap:
«Como podem eles justificar esse tipo de censura? Tu compões música! A música é uma arte cooperativa, orgânica por definição, social. Pode ser a mais nobre forma de comportamento social de que somos capazes. E é com certeza um dos mais nobres trabalhos que um indivíduo pode desempenhar. Pela sua natureza, pela natureza de qualquer arte, é uma partilha. O artista partilha, é essa a essência da sua actividade.»
Ou seja, «a complexidade, a vitalidade, a liberdade de invenção e iniciativa que estavam no centro do ideal odoniano estão a ser deitados fora». «Estamos a voltar à barbárie.»
«The Dispossessed» vira os princípios anarquistas contra os próprios princípios anarquistas, apresentando a sociedade alternativa não como uma solução perfeita, mas como algo que tem os seus inerentes paradoxos e é necessário aperfeiçoar continuamente, segundo a ideia de «revolução permanente». Nada que se assemelhe ao congelado e estéril Falanstério de Fourier.
Seja como for, não esperem um Jello Biafra ou um Lemmy um cenário minimamente parecido com aquele que os conduziram à fama.
E o que mais temos na FC a dar-nos indicações?
Utilitarismo revolucionário
Temos a escritora, bruxa (!) e ativista Starhawk, que num texto intitulado «The Vision of the City», sobre a San Francisco «utópica» que propôs em «The Fifth Sacred Thing», idealiza uma cidade ajardinada e artisticamente intervencionada em que a Guilda dos Transportes contrata músicos para circularem em camionetas abertas, a fim de que «correntes de música constantemente flutuem pelas ruas».
A música, pois, como um serviço público, não um produto comercial. Valorado como qualquer outro, e por isso inserido nos currículos estudantis básicos: «Quando as crianças aprendem a tocar tambor, mais facilmente ficam a saber contar.»
A música pode até ser usada nas metodologias educacionais: «Tudo o que precisa de ser memorizado é colocado em música e cantado.»
Em outro escrito seu, Starhawk coloca já na atualidade o utilitarismo revolucionário da música. Por exemplo, nas ações de protesto e nas barricadas, que considera deverem ser mais imaginativas: «Arte, música, dança, marionetas, rituais, teatro de rua, procissões, paradas, todas as coisas que já fazemos e outras em que ainda não pensámos. Divertimentos e surpresas. Humor. Fazer o inesperado. Nunca ser aborrecido, entediante ou estereotipado.»
Autora de «Woman on the Edge of Time», a poetisa Marge Piercy mostra, por sua vez, uma Mattapoisett em que «as carreiras são distribuídas numa base rotativa e quase todos estão envolvidos em serviços públicos», sendo a arte «produzida comunitariamente».
No monólogo fantasista, híbrido de ensaísmo, «Bolo Bolo» o misterioso PM designa por «bolos» os bairros autónomos com identidades culturais próprias e diferenciadoras, «os seus hábitos, filosofia, valores, interesses, estilos de vestir, cozinha, maneiras, comportamento sexual, educação, religião, arquitetura, artesanato, artes, cores, ritos, música, dança, mitologia, body-painting».
Não propriamente tribos, apesar das suas semelhanças com as velhas sociedades de coletores/caçadores, mas unidades sociais de raiz reunindo cerca de 500 indivíduos que tudo decidem em conselhos deliberativos de democracia direta.
Há um motivo que leva PM a imaginar a estrutura base do seu modelo de anarquia segundo a identidade cultural: «A cultura é mais importante do que a sobrevivência material. As pessoas que passam fome lutam mais pela sua religião, pelo seu orgulho, pela sua língua e por outros “luxos” superestruturais do que propriamente por rendimentos mínimos assegurados.»
Dor e prazer
Num «bolo», de resto, é o contexto cultural que define «o que é considerado “trabalho” (= dor) e o que é entendido como “divertimento” (= prazer)». Não há obrigatoriedades, «somente um fluxo mais ou menos livre de paixões, perversões e aberrações». A música pode ser uma dessas aberrações, pode ser um dos «entretenimentos» transformados em «empregos»…
A anarquia na visão de Kim Stanley Robinson surge em «2312» com uma estruturação equivalente ao sampling da electrónica de pesquisa e ao DJing dos clubes de dança, ou seja, trata-se de uma colagem de diversos géneros literários e tipos de escrita. As referências à música, essas, não passam da alusão ao gosto pelos clássicos de Wahram, um intelectual de Titan com cara de sapo.
Já os yunkers (jovens) organizados em clans de «The Free», obra do acima mencionado Mike Gilliland, são os típicos punks com reminiscências hippie do Black Bloc e do movimento okupa. Mas se as personagens deste relato da insurreição anarquista numa conjuntura futurista (para daqui a uns meses?) de colapso do capitalismo na Europa são as do imaginário punk, a música é apenas mencionada como parte da festa revolucionária.
É nada mais, nada menos do que uma ferramenta ao serviço do bem comum. Mas conseguirão os Ghost Mice imaginar-se a animarem, sem palco, nem luzes, nem mesa de mistura, uma reunião guerrilheira prestes a partir para uma investida contra uma milícia fascista? Duvido…
____
Originalmente publicado em Bitaites.