Um Projeto Anarquista Verde na Liberdade e Amor

De Protopia
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De Amor e Anarquia

Mae Bee

(Original em Inglês)




«"Precisamos prosseguir nossos encontros sexuais, como fazemos com todos os nossos relacionamentos, em total oposição a esta sociedade, e não por algum senso de dever revolucionário, mas porque é a única maneira possível de ter plenas, ricas e desinibidas relações sexuais em que o amor deixa de ser uma dependência mútua e desesperada e em vez disso torna-se uma exploração extensa do desconhecido." »
(Sobre a pobreza sexual - Willful Disobedience, Volume 4)


NOTA PESSOAL: embora este pequeno fragmento espera inspirar pensamentos, sua pretensão não é ser completo: muito coisa falta dele... E se ele provoca polêmica espero que seja para despertar emoções, discussões e esperançosamente outros escritos, ao invés de causar aborrecimento. É apenas a minha contribuição atual para algo em curso, em vez de uma palavra final.


Este fragmento não defende uma outra opção, outra "escolha" de se relacionar para casais. É mais um reconhecimento àquele nosso “projeto comum” - a abolição de todas as relações de poder - incluindo a abolição dos relacionamentos coercitivos/fechados. Estes são aqueles relacionamentos com estatura fixa, com regras ou contratos permanentes. Estes relacionamentos não podem realmente ser parte de uma sociedade livre. E assim como com outras relações coercitivas em desacordo com a nossa liberdade, eles devem ser confrontados por todxs que buscam essa liberdade e comunidades.


"Na melhor das hipóteses, então, o anarco-primitivismo é um rótulo conveniente usado para caracterizar diversos indivíduos com um projeto comum: a abolição de todas as relações de poder. Por exemplo, estruturas de controle, coerção, dominação e exploração - e a criação de uma forma de comunidade que exclui tais relações.” (John Moore - Uma Introdução ao Anarco-Primitivismo)


REGRAS DE ADMISSÃO

Eu vou usar o termo "relacionamentos com regras” ou às vezes “relacionamentos coercivos ou restritos", porque eu não conheço outro termo genérico para relacionamentos monogâmicos e os que afirmam ser poliamorosos ou abertos, mas tem regras. Por este último quero dizer aqueles onde a coerção é consentida quando - embora a pessoa amada não esteja restrita a uma única pessoa - elas ainda não estão livres ou encorajadas a seguir seus desejos.


A partir de uma visão política estas duas opções de relacionamento são iguais. Se as suas razões para a não-monogamia são meramente maior prazer sexual com um número maior de pessoas, então os relacionamentos com regras podem servir a esse propósito. Se, no entanto, é pelo desejo de criar comunidades e não casais, pelo desejo e não consentimento, pela confiança e não medo... Bom, então, a "lista proibida", o "não na minha empresa", e todas a normas devem sumir. Quando relacionamentos abertos ou relacionamentos livres são mencionados neste texto estou falando exatamente disto...

ESCOLHA E RESPEITO

Enquanto há uma aceitação de relacionamentos abertos dentro de nossas comunidades eco-anarquistas, não há igual aceitação de relacionamentos restritos. Esta vem, em parte, por motivos sadios: as pessoas podem ter a liberdade de definir as próprias relações, não há padrões estabelecidos, etc. No entanto, há uma série de razões pelas quais esta perspectiva libertária é uma questão ociosa.


Em primeiro lugar, em sociedades de massa consentimos com inúmeros tipos de relações coercitivas. Seja trabalhando por um salário, assinando -literalmente- contratos, assumindo o papel de "cliente" e, portanto, umx exploradorx de trabalhadorxs... Na verdade, é difícil encontrar muitas relações que não são baseadas em algum grau de coerção ou exploração. Consentimento às relações coercivas de nenhuma maneira indica que nós desejamos vivê-las. Desde os anos 70 (pelo menos!) o feminismo radical tem explorado as grandes diferenças entre aprovação e desejo, particularmente no âmbito do amor e do sexo. Muitas mulheres consentem relações sexuais para evitar o estupro, por exemplo. Consentimento está enraizado na linguagem da lei e dos direitos de propriedade. É por isso que é útil para sociedades de massa, mas inútil para criar radicais. Certamente não vivemos num lugar onde entendemos o mundo baseado no desejo. E, certamente, nossos relacionamentos sexuais são um dos lugares mais óbvios para situar o desejo e não o consentimento.


Assim, as pessoas consentem relacionamentos com regras como fazem em outras relações de coerção, mas o que elas desejam? Fundamentalmente, isto é um oxímoro. Não precisamos criar regras sobre coisas que não tememos. Se duas pessoas desejam somente ter relações sexuais uma com a outra então não haveria necessidade de criar regras para regular isto. Isto não a torna uma relação coercitiva, embora torne a monogamia literal. A coerção está na regulação deste desejo, não apenas para si, mas para aquelx que você deseja e ama. Monogamia é um contrato, precisamente porque não esperamos a monogamia literal, porque esperamos que nossx amante deseje relações sexuais com outras pessoas. Talvez não agora, mas certamente no futuro. Também esperamos que nossx amante faça regras para governar o nosso desejo porque também não temos confiança na sinceridade de nosso desejo sexual. É ridículo, então, monógamxs que alegam ter proibido entre si fazer sexo com outrs, porque só desejam sexo umx com x outrx.


Relacionamentos com regras então operam no consentimento sexual, não no desejo. Embora, é claro, há razões para desejarmos coagir e ser coagidxs. Desejamos isso porque queremos controlar, ter e possuir aquilo que está ao nosso redor. Este é um desejo fixado no mito de que nós podemos fazer isso com seres vivos e, pior, que podemos fazer isso em nome do amor, quando na verdade se trata apenas de controle. Se não podemos desistir da nossa crença na posse do ilimitado: e por coisas que quero dizer como amor, afeto, desejo sexual … como é que vamos começar a abrir mão do controle do que é limitado: como os recursos do mundo? Uma incapacidade, ou melhor, uma falta de desejo, de libertar aquelxs que mais amamos - e sem nenhum custo real para nós - sugere que fomos tão longe na loucura da sociedade de massas que a liberdade no horizonte parece já inalcançável.


Vale a pena mencionar aqui, embora apenas como um acessório, que sem o uso constante de vigilância e/ou força, ninguém pode realmente impedir su amadx amorosx de amar ou fazer qualquer outra merda. Els só podem escolher acreditar que podem, o que para mim sugeriria uma forma de doença mental.


CÍUMES E OUTROS SENTIMENTOS

Crianças muitas vezes reagem a uma nova irmã (ou irmão) em contato com o corpo da sua mãe com ciúme extremo, intensos sentimentos de rivalidade e raiva e, finalmente, de posse. Nós não esperamos que a mãe ponha a recém nascida de lado ou mantenha seu amor por esta fora do olhar da criança mais velha. Esperamos, em vez disso, que a mãe tranquilize a primeira filha deixando claro que ela ainda a ama e se preocupa com ela, bem como assegurando a ela que ela ama e cuida do novo bebê também. Exceto em casos muito raros, a criança diminui o ciúme e aceita a situação.


Em comparação, temos a relação dos adultos: O adulto, muitas vezes reage a uma nova pessoa que acaricia o corpo de su amante com ciúme extremo, intensos sentimentos de rivalidade e raiva, e, finalmente, de posse. Como adultxs esperamos também que esta nova pessoa seja posta de lado (monogamia) ou obedeça um código de conduta, tal como o amor pelx novx amante esteja fora do olhar dx primeirx (relacionamentos restritivos). De todas as emoções complexas e diferentes entre três, ou mais, pessoas, nós damos prioridade ao ciúmes e à rivalidade dx primeirx amante.


Como isso pode acontecer? Isto parece demonstrar uma separação civilizada e artificial das potencialidades das crianças e dos adultos. Nós julgamos as emoções das crianças irracionais e por isso , não podem ser controladas e as emoções dos adultos, racionais, portanto, que podem ser dominadas.


A confusão de relacionamentos restritos é que nós não pensamos que outros sentimentos, por exemplo, desejo pelo corpo de outra pessoa, sejam irracionais, mas apenas que esses sentimentos específicos são os únicos a ser controlados. O desejo de possuir e ter para si prevalece sobre outros desejos (vale notar que isto é particular de certas culturas e o ciúme sexual não é compreendido em algumas delas. Embora seja "natural" para aquelxs de nós criadxs em sociedade monogâmica sentir ciúmes, isso não significa que aquelxs criadxs em sociedades poliamorosas estejam apenas reprimindo suas emoções!).


Outra diferença fundamental é que a sociedade civilizada acredita que o crescimento emocional ocorre na infância e não na idade adulta. Aprender não é para a vida. Isto significa que para a criança pode ser dada a oportunidade de crescer e se desenvolver, mas que o adulto já está atrasado e incapaz de aprender.


E isso nos leva à questão do respeito. Relacionamentos coercivos NÃO são respeitosos, pois eles são a negação não só do desejo, mas do crescimento. Se eu estou limitadx pelo ciúme de mi amante, eu pressuponho que elx é incapaz de lidar com suas emoções e também atrasadx demais para mudar. É evidente que existe alguma verdade nisso. É mais difícil de ser flexível aos 30 do que aos 3 anos de idade. Nos 30 eu já tive 30 anos de mega máquina e seus mitos de propriedade pessoal. Tenho mais merda para prosseguir com dificuldade, e eu estou suscetível a ser prejudicadx por outras pessoas bem intencionadas tentando não me "ferir". Esta ferida é apenas as dores do crescimento.


Para alguém se sentir magoada por outra pessoa, não significa que ela tenha sido ofendida por alguma pessoa. Esta é a terra difícil de negociar, mas está longe de ser impossível. Aceitar abertamente os sentimentos de ciúmes e medo, sem pedir ou esperar que x outrx restrinja o comportamento, portanto, "resolver" esses sentimentos nos obriga a ser as possuidoras não dx outrx, mas de nossas próprias emoções. Minha dor é o meu mal. Podemos pedir para xs amadxs que nos amem através da dor, e como a criança, provavelmente descobriremos que a dor diminui e muitas vezes deixa de doer. Em particular, a cultura de vítima das mulheres - mesmo entre anarquistas e feministas - está presa por conceitos de que alguém é responsável por nossos sentimentos de rejeição ou aborrecimento. É triste culpar nossxs amantes por desejar outra pessoa, mesmo desejando alguém mais do que você, e mesmo desejando outra pessoa e não você.


QUEBRAR OU ROMPER

Devido à nossa posição de existir em uma sociedade de massas, e às nossas necessidades de sobrevivência dentro dela, algumas cooptações e concessões serão inevitáveis. Nossa necessidade de comer e ter abrigo nos faz consumidores de exploração, seja de "comércio justo", de produtos ou de pizza de vegarela. Não estamos conectadxs com a natureza em qualquer nível significativo, mesmo se cultivamos nossos próprios vegetais no "campo". Todxs nós usamos tecnologia a um maior ou menor grau. Nossas relações, entretanto, são um dos lugares que são mais livres para tentar ser selvagem - viver no aqui e agora, e sem possuir e oprimir x outrx.


Aceitar relações coercivas, bem como as ditas abertas é algo tão louco como esperar que sociedades industriais, ou sociedades com governos, possam coexistir com sociedades baseadas na natureza. Se meu amor é livre, mas o seu não é, então, a escassez é criada. Dizer que eu estou livre para não possuir terra, mas você está livre para possuí-la, é ridículo. Felizmente, sua posse se baseia na minha complacência e, como anarquistas, nós não aceitamos sua posse e propriedade.


Se acreditamos que o amor deveria se dar livremente a partir do desejo, então não podemos respeitar a cultura do amor-como-mercadoria-amante-como-posse.


"A pessoa do meio no triângulo muitas vezes manifesta uma certa compaixão pelo sofrimento dx ciumentx, respeitando a sua "humanidade", embora ela lamente os efeitos desagradáveis ​​de manipulações miseráveis e melodramáticas. Essa cumplicidade permanece fiel ao modelo do casal, porque respeita as regras tradicionais de amor." - Issac Cronin


Isto significa que não agir em meu desejo de amar quem eu quero e quando eu quero, é ser cúmplice de um sistema de coerção, controle e propriedade do qual eu me oponho. Não, eu não vou e não posso aceitar as regras do "seu" relacionamento. Em uma sociedade livre, não pediremos o consentimento de uma pessoa para dormir com uma outra do mesmo modo como não pediríamos a um pai o "direito" de casar com sua filha. E aqui e agora, também podemos viver isso. "Respeitar" relacionamentos restritivos é apoiá-los.


AÇÃO DIRETA

Seria tão polêmico declarar uma guerra contra a monogamia? Seduzir xs amantes do possessivo? Poderíamos ajudar xs aprisionadxs por seus ciúmes tímidos a crescer em liberdade "roubando" beijos daqueles lábios proibidos na frente de seus olhos aterrorizados? Se isto choca ou ofende você, talvez você deva se perguntar por quê.


COMUNIDADES NÃO CASAIS

Relacionamentos com regras, e a aceitação deles, revela uma hierarquia internalizada. A relação de um casal é de maior valor e preciosa do que a dxs outrxs na comunidade. Seria igualmente irrealista e indesejável esperar que todxs sintam tanto amor e conexão com cada um de sua comunidade - por esse caminho encontra-se grupos formalizados e institucionalizados ou outras formas coercitivas de relacionamento que são tão prejudiciais como os relacionamentos com regras e de casais.


Comunidade é mais do que um e é mais do que dois também. Para criar autogestão em pequenas comunidades auto-suficientes não pode haver a tirania do individualismo ou da união. Para criar comunidades selvagens e anarquistas também devemos abandonar a ideia de sacrificar os desejos individuais em prol da comunidade. Temos sido tão programadxs pela megamáquina que é difícil imaginar um mundo de cooperação ao invés de competição excludente. Ainda mais difícil é imaginar um mundo onde somos livres para assumir nossos prazeres e nossos desejos abertamente. Mas se estas são as comunidades que estão no processo de criação, então devemos ser honestxs, abertxs e desafiadorxs. Estas comunidades não prosperarão por recuar do conflito, mas sim por não temê-lo.


Um argumento muitas vezes dado por aquelxs que não necessariamente pregam relacionamentos coercitivos, mas são limitadxs pela ideologia é este:

É razoável que A não beije B na frente de C.

É razoável porque A se preocupa com C, tanto quanto ela precocupa com B.

A não quer chatear C.


Ninguém quer chatear aqueles com quem nos preocupamos. Mas se restringimos ou inibimos nossos próprios desejos pela falsa paz de não perturbar xs outrxs, então ficamos em um mundo apaixonadamente deficiente. E se C ficou chateado porque A e B eram do sexo feminino e a masculinidade de C foi ameaçada por sexo gay? Ou se C ficou chateado porque A era negra e B era branca e a tranquilidade de C como um homem negro ficou perturbada com o amor mestiço? Como radicais nós iríamos inevitavelmente dizer axs amantes que devem desafiar a homofobia e o racismo, que é responsabilidade de C lidar com seus sentimentos. E com razão. Homofobia e racismo são dinâmicas internalizadas e prejudiciais de controle e poder que devem ser desafiadas. Assim como os relacionamentos com regras...


Você beijaria B na frente de C se C ficasse chateado?


AQUI E AGORA

As características que definem a anarquia verde incluem um desejo de viver em pequenas comunidades que governam a si próprias, a auto determinação individual e coletiva, uma reconexão com a natureza e a compreensão de que vivemos apenas no presente, no aqui e agora.


Vivendo no aqui e agora de verdade, em vez de no passado/futuro irreais, é um discernimento característico de muitas sociedades baseadas na natureza e uma das maiores pobrezas para nós na sociedade de massa. Infâncias desestruturadas ou poupanças de aposentadoria podem nos impedir de viver o presente. Sentar num escritório e sonhar com o fim de semana ou passar o tempo livre se envolvendo com personagens míticos da novela, ao invés de pessoas reais, é claramente algo insalubre. Assim como ter sentimentos incompatíveis com o aqui e agora. Sentadx na floresta com umx amante, mas estando miseravelmente ocupadx com algo que aconteceu, como uma criança, seria o mesmo que não desfrutar de uma festa, porque sentia fome. O passado está atrás de nós. O futuro pode nunca acontecer.


Felicidade também se encontra no aqui e agora, no momento. Passamos nossas vidas desaprendendo isso, mas temos vislumbres disso através do sexo, amor, dor, reencontros, do inesperado, etc. Para as nossas relações serem felizes, também devem estar no aqui e agora, porque realmente elas só existem no aqui e agora. A famosa frase "não há algo como a heterossexualidade e a homossexualidade, apenas atos heterossexuais e homossexuais" pode ser estendida para perceber que uniões sexuais são apenas sexuais naquele momento definido não no dia anterior ou no dia seguinte. É ilusório e doloroso insistir no desejo sexual duradouro, exigir que x amante de hoje ainda te ame amanhã.


Gay, hétero, mi amante, su parceire principal, tudo é parte de uma política de identidade de contratos em curso, imprópria para a vida dos desejos mútuos. Não precisamos "trabalhar" nossos relacionamentos, apenas tê-los. Sem contrato, exigência, concorrência e coerção.


"Eu odeio todos aqueles que cedendo aos outros, por medo e resignação, uma parte do seu potencial como seres humanos , não só se deixam dobrar a si mesmos, mas também a mim e aqueles que eu amo, com o peso de sua cumplicidade medrosa ou com a sua inércia idiota."

(Albert Libertad - Eu odeio os resignados)


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Originalmente publicado em um panfleto pela Leeds Earth First! em Junho de 2004.


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