Hakim Bey em Viena

De Protopia
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Millennium
Hakim Bey
(Original em Inglês)

[Uma versão mais longa aparece como prefácio à tradução alemã de Imediatismo]

10 de julho de 1996, Nova Iorque -- Viena (por telefone)

Pergunta: [As primeiras questões dizem respeito ao livro Imediatismo (também conhecido como Rádio Sermonettes) e a resposta dos leitores a ele]:

Resposta: Claro que ele é se presta a uma discussão do que as pessoas fazem, mais que o que pessoas deveriam fazer. Não estou interessado em pregar, e não me penso como um guru em nenhum sentido. Mais do que isso, nesse livro em particular eu pretendi realmente descrever o que eu considerava ser o potencial revolucionário da vida cotidiana, colocando em termos Situacionistas. A reação tem sido muito boa – digo, não recebo centenas de cartas ou qualquer coisa, mas recebo muitas cartas e recebo muitas reações – e parece ser familiar especialmente a pessoas das artes, para as quais ele foi destinado na verdade. Digo, quando falo pessoas das artes, poderia ser qualquer um, não apenas artistas profissionais; poderia ser qualquer um que sinta uma necessidade de ação criativa em sua vida. Minha ideia foi definir um espaço que sinto existir (de todo jeito...), que é privado, até mesmo secreto, se quiser... clandestino... no qual o problema inteiro da comodificação, o comprar e vender da arte, a transformação da arte em mercadoria e o uso de arte para vender mercadorias, que é um tipo de uma maldição para o artista moderno, é evitado, apenas claramente evitado; apenas um afastamento daquele mundo e a reafirmação de um poder criativo na vida cotidiana, fora da vida da mercadoria, da vida do mercado. Afinal, é por isso que todos os artistas são artistas, é por isso que alguém se tornar um artista – não para vender sua alma para a loja da empresa, mas para criar.

P: Há muito interesse da mídia no que você faz? Porque, de alguma maneira, o Disappearing One poderia atrair muita atenção, e quem fizesse uma crítica poderia tornar-se muito interessante para a mídia. Como esse círculo trabalharia para você?

R: Você está completamente certo, mas isso não funcionou realmente desse jeito. É verdade que o TAZ ["Zona Autônoma Temporária"] fez parte de um livro que causou um pouco de agitação nos círculos do underground ou o que seja, houve alguma publicidade envolvida nisso, mas, em primeiro lugar, não busco publicidade para mim – não estou interessado em estabelecer algum tipo de culto à personalidade. Eu realmente gostaria de ser invisível. Na verdade, foi provavelmente um erro usar um nome exótico para escrever esse material. Isso, na verdade, atraiu curiosidade e atenção, ao invés de apenas ser aceito como um pseudônimo. Então havia um pouco de atenção da mídia, mas não muita, e uma razão para isso é que nos Estados Unidos nada atinge a mídia, a menos que esteja comodificado. Isto é, toda a mídia está interessada em algo que possa vender produtos. E não há outro produto a ser vendido aqui além de um ou dois livrinhos baratos. Na Europa, as coisas são levemente diferentes, talvez exista o que alguém chamaria de restos de uma intelligentsia pública – o que não temos aqui. Nós realmente não temos isso aqui. Temos alguns escritores famosos, que são publicados em todos os jornais, e então temos massas de pessoas que são provavelmente muito mais inteligentes, muito mais criativas, mas que não aparecem na mídia e, portanto, parecem não existir – algumas vezes, nem mesmo para si mesmas, e é por isso que estou escrevendo um livro como Imediatismo: para enfatizar para o artista e para as pessoas criativas que elas existem, elas deveriam saber que existem, então o que eles fazem é importante, até mesmo politicamente importante; mesmo que isso acontecer fora da mídia de massa em um sentido seja uma bênção, não uma maldição. As coisas são levemente diferentes na Europa talvez por essas razões, mas nos Estados Unidos vêm ocorrendo muito poucas trocas entre o meu mundo e o mundo da mídia – e, quando digo isso, não me refiro a revistas e jornais. Não estou falando nem mesmo sobre televisão e propaganda, que são realmente mídia de massa. Estou falando apenas sobre jornais locais. Eles simplesmente não se interessam. Não há interesse em radicalismo político em círculos intelectuais nos Estados Unidos, e penso que seria justo dizê-lo – nenhum interesse por seja lá o que for.

P: Em seu texto, você mencionou certa arte marcial psíquica e o retorno do Paleolítico no sentido de uma tecnologia psíquica que esquecemos. Pode explicar isso?

R: Bem, eu realmente não estou tentando ser misterioso ou insinuar que há uma arte secreta que conheço e que não estou compartilhando. Chamei-a de arte marcial secreta simplesmente porque ela é ignorada ou esquecida. O que eu quis dizer é que viver no corpo, sendo ciente da positividade do princípio corpóreo material (para citar Bakhtin) é de fato uma forma de resistência, uma arte marcial, se você quiser. Em um mundo em que o corpo é tão degradado, tão desfocado por um lado pelo império da imagem e, por outro, ele é degradado por uma espécie de narcisismo obsessivo, atletismo, moda, e saúde, que em algum lugar entre esses extremos está para mim o corpo ordinário que, como os mestres do Zen diriam, é o corpo Zen, para reformular a frase que diz que a mente ordinária é a mente Zen. Ser consciente e informado disso já é tomar uma posição de resistência contra a obliteração do corpo na mídia ou contra as pseudoapoteoses do corpo em esportes modernos, ou contra o fast-food ou contra todo tipo de degradação do corpo que ocorre juntamente com sua rasura. Então o que essa arte seria eu não sei exatamente, penso que seria diferente para cada pessoa talvez, e certamente envolveria um tipo de criatividade física que discuto nos ensaios. Infelizmente, ainda não tenho isso como uma ciência que poderia ser resumida a dojos e em que você lá recebe uma faixa preta. Isso ainda não ocorreu, apesar de talvez algum gênio vir e inventá-la.

P: Você recebe muitos convites para festas que são estranhas para você ou realmente vêm como uma surpresa de quem se identifica com seu material? Pode dar exemplos?

R: Eu lhe darei apenas um exemplo. Fui convidado por um mágico cerimonial que vive em um castelo medieval no sul da França para ir e ver o seu museu de arte oculta. E isso era simplesmente o resultado de ler meu trabalho e se corresponder comigo por um tempo. Foi ótimo. Mesmo assim, não darei seu endereço.

P: Há muito franco não-pessimismo no que você escreve, e há um capítulo em seu livro sobre o riso tanto como uma arma quanto como um remédio. Eu estava pensando quem as pessoas que transmitiriam esse tipo de remédio de riso poderiam ser?

R: Primeiramente, há uma escolha existencial envolvida aqui. Eu sempre pensei que a literatura deveria ser tanto entretenimento como instrução – uma ideia muito fora de moda, mas à qual aderi. Quando comecei a escrever desse jeito – particularmente desse jeito, um jeito político, se você quiser chamá-lo assim – eu pretendia fazer uma doação, tentar dar algo. Não parece haver para mim qualquer sentido em dar mais miséria ou infelicidade exacerbada através de algum tipo de escrita hiper-intelectual, pirotécnica sobre infelicidade e a merda em que nos encontramos. Isso foi feito em abundância. Penso, primeiramente, que isso não precisa mais ser feito e, segundo, que há uma espécie de aspecto reacionário nisso, que é enfatizar a miséria sem qualquer antipessimismo, como você colocou, seria simplesmente sedução para uma inatividade e desespero político. Em outras palavras, para fazer política em qualquer nível, especialmente em um nível revolucionário ou insurrecionário, tem de haver algum antipessimismo – eu não direi otimismo porque isso soa tão fátuo, fútil; mas antipessimismo é uma boa expressão. E há um esforço deliberado a isso na escrita. Então novamente é uma matéria da minha personalidade, eu acho, inclinada à noção de riso curador em algum nível. Nós temos um pensador anarquista nos Estados Unidos, John Zerzan, que escreveu um ensaio contra o humor que talvez seja uma das coisas a que eu estava reagindo. Mesmo se a ironia for contrarrevolucionária, eu penso que talvez possa ser em algum nível, eu não vejo qualquer modo no qual você poderia dizer que o riso em si é contrarrevolucionário. Isso não faz nenhum sentido para mim, a menos que você queira dizer livrar-se da linguagem e pensamento no todo, o que é apenas outra forma de niilismo. Então enquanto você aceitar a cultura em algum nível, você certamente terá de aceitar o humor. E tanto quanto você aceitar o humor, você possivelmente também verá o humor como potencialmente revolucionário. [...]

Na verdade, eu não estou aí pra fazer as pessoas rirem. Humor pode de fato tornar-se contrarrevolucionário se for simplesmente exaltado fora de toda proporção e converter-se no propósito ou centro da arte de alguém. Bem, isso talvez possa ser considerado frivolidade. Novamente, eu diria que é parte de uma arte marcial natural da mente e corpo ordinários, é apenas algo que é, e, portanto, deve ser celebrado como parte da existência.

P: Palimpsesto.

R: A ideia toda por trás do palimpsesto era superar o fetiche de uma filosofia única original, a origem de filosofias únicas ou da filosofia de origem única. Eu não penso que deveríamos jogar a ideia das origens pela janela, como, por exemplo, é feito em certos pensadores pós-estruturalistas, ou fato em todo o discurso científico moderno. Em outras palavras, origens são mitológicas, e mitologia comparativa ainda tem muito a nos ensinar, obviamente. Nós ainda vivemos em um mundo que gera mitologia, mesmo que pessoas não percebam isso. Então as origens são importantes, seja por razões positivas ou negativas, e a minha ideia de palimpsesto foi que isso inscreve origens sobre origens, e toda origem que é potencialmente interessante deveria ser adicionada ao texto, e apesar de eu não literalmente escrever no topo do escrito – apesar de isso ser possivelmente um experimento interessante – eu faço algo para encorajar os leitores a tentarem empilhar essas origens ou elementos conceituais em duas mentes enquanto eles leem, e tentar entretê-los simultaneamente. Como a Rainha de Copas disse a Alice no País das Maravilhas, você tem que acolher seis ideias impossíveis antes do lanche. Esse me parece ser o melhor modo de ler. Então há isso, mas por outro lado há espontaneidade, há improvisação, há o jorro do momento, e assim por diante, tudo isso é muito importante. Mas, sabe, eu cresci em uma era em que a improvisação realmente assumia o controle da arte de vanguarda, especialmente teatro e música e assim por diante, e eu não acho que os resultados foram sempre muito positivos. Quando você improvisa em uma situação de apresentação e você não está ligado, você não está brilhante, os resultados são totalmente desastrosos, as passo que ao menos se você tivesse um plano, se você tivesse algum tipo de estrutura com a qual você está trabalhando para começar, você poderia ao menos transformá-la em uma apresentação decente que entreteria decentemente todo mundo. Então eu tendo a me afastar da improvisação como um princípio, a menos que ela esteja ligada a consciências realmente exaltadas em um ou outro departamento. Talvez pessoalmente eu tenda mais ao palimpsesto do que à improvisação. Eu não gostaria de separá-los necessariamente como uma divisão corpo-mente.

O barulho até poderia ser um conceito melhor do que a improvisação.

(C. Loidl): Desde que tive a sorte de encontrar você de vez em quando, eu acho que sua mente está agora mesmo trabalhando. Você sempre parece estar um pouco à frente de suas publicações.

(H. Bey): Estou contente de você ter perguntado. Faz mais de dez anos desde que TAZ foi escrito e cerca de cinco anos desde que eu trabalhei naqueles ensaios sobre o imediatismo e penso que bastante mudou. Eu estou agora mesmo trabalhando em um ensaio "Millennium" para tentar atualizar um pouco de meu pensamento. Basicamente, eu recentemente vim a sentir que o colapso do mundo comunista entre 1989 e 1991 realmente marca o final do século, por assim dizer. Claro que há divisões artificiais na história, mas elas ainda fazem um tipo de modo conveniente de pensá-la. E realmente levei cinco anos para dimensionar as implicações daquilo para o meu próprio pensamento. E o modo que eu expressaria isso agora é que, em TAZ e em Radio Sermonettes, eu estava realmente propondo uma terceira posição, uma posição que não era nem capitalismo nem comunismo. Isso é basicamente, você poderia dizer, algo que toda filosofia anarquista faz. Nesse período, eu estava contando isso do meu próprio jeito. É uma posição nem/nem. É um terceiro posicionamento. Agora, entretanto, quando você vem a pensar sobre isso, não há mais dois mundos ou duas possibilidades ou duas forças opostas rivais. Há de fato apenas um mundo, que é o mundo do capital global. A ordem mundial, o mercado mundial, o capitalismo muito tardio, como você queira chamá-lo, está agora sozinho e triunfante. Está firmemente triunfante. Ele sabe que é o ganhador, apesar de na realidade ser o único ganhador à revelia, penso eu. E ele tende a transformar o mundo à sua imagem. E essa imagem, claro, é uma monocultura baseada em Hollywood, Disney em mercadorias, na destruição do meio ambiente em todos os sentidos, de árvores à imaginação, e a conversão de tudo isso em mercadoria, a conversão do próprio dinheiro em uma experiência gnóstica fantasmagórica que existe fora do mundo, em algum lugar em uma esfera misteriosa sua, onde o dinheiro circula, de onde nunca desce, nunca atinge você e eu. Então o que estamos observando é um único mundo. Obviamente que este único mundo não vai se ir sem sua revolução, não vai se ir sem sua oposição. E, na verdade, é em volta da palavra “revolução” que meus pensamentos estão circulando agora, porque parece para mim que anarquistas e antiautoritários em geral não podem mais ocupar essa terceira posição; porque como você pode ocupar um terceiro posicionamento quando não há mais uma segundo posição? Não podemos mais falar sobre o Terceiro Mundo, porque que não há mais um segundo mundo. Então até mesmo esse terceiro mundo, como é costumava ser, agora é simplesmente a favela do único mundo. É apenas a zona problemática daquele único mundo unificado do capital. Obviamente os comunistas não vão dar um passo para trás na posição de oposição. O comunismo político esgotou completamente sua munição, fez-se parecer mau, ter gosto ruim na boca da história. Ninguém está chamando o marxismo autoritário para dar um passo para trás na posição de oposição. Então onde está essa oposição que supostamente viria? Em minha mente, primeiramente, isso implica que se não estamos mais tentando ocupar uma terceira posição fora dessa dicotomia, então NÓS somos a oposição. Saibamos ou gostemos disso, nós somos a oposição. Agora, quem é “nós”? Para mim a coisa importante é a percepção de que tenho uma nova relação com a palavra revolução, considerando que antes eu estava inclinado a olhá-la como um fantasma histórico, como de fato a mentira contada pelo comunismo como oposta à mentira contada pelo capitalismo. E visto que antes eu estava extremamente desconfiado do dogma esquerdista de revolução como oposto à elevação ou à insurreição, eu agora diria que a história me força mais uma vez a ter de considerar a ideia de revolução e de mim como revolucionário e de minha teoria como teoria revolucionária, porque a oposição ao único mundo já é um pouco real. Não há modo pelo qual esse triunfo do capital possa ser realmente & verdadeiramente um triunfo monolítico excluindo toda diferença do mundo em nome de sua uniformidade. E me parece que a força revolucionária no mundo único de uniformidade tem de ser a diferença: a diferença revolucionária. E, ao mesmo tempo, já que o mundo único é envolvido, já que o único mundo de capital é o mundo da separação, da alienação, que, juntamente com a diferença revolucionária, tem de haver também presença revolucionária (que costumava ser chamada de solidariedade, apesar dessa ser uma palavra que apresenta algumas dificuldades; eu preferiria simplesmente a palavra "presença" como oposto a separação ou ausência). Então, eu diria que a revolução do presente é uma revolução para diferença e para presença. Ela é oposta à uniformidade e à separação. E enquanto olho ao redor do mundo para ver onde pode estar possivelmente se erguendo uma forma organizacional natural militante que exemplifica essa condição, o exemplo reluzente que eu posso estar pronto para dar é o dos Zapatistas no México, defendendo seu direito a serem diferentes, essencialmente. Eles querem ser deixados sozinhos em paz para serem índios maias, mas não estão forçando ninguém mais a se tornar índio maia. Eles nem estão sugerindo isso. Eles são diferentes, mas eles estão em solidariedade com todas aquelas pessoas ao redor do mundo que vêm apoiá-los, porque a sua mensagem é muito nova, é muito recente e atrai muitas pessoas: a ideia de que se pode ser diferente e revolucionário, de que se pode lutar por justiça social sem a sombra de Moscou envenenando continuamente toda ação etc. Isso é algo novo no mundo. O New York Times chamou-a de a primeira revolução pós-moderna, que foi simplesmente o seu jeito zombeteiro e irônico de tentar desacreditá-la, mas, na verdade, quando você pensa sobre ela, ela é a primeira revolução do século XXI nos termos com os quais comecei, dizendo que nós já estamos no começo de um novo século, nós já estamos, se você quiser, no começo de um milênio. E eu espero ver muito, muito mais fenômenos como os Zapatistas. Eu diria que a Bósnia potencialmente pode ter sido um fenômeno tal, não no sentido de uma particularidade étnica como os maias, mas no senso de uma particularidade pluralista: uma pequena sociedade em que as pessoas eram diferentes, mas queriam viver juntas em paz. E isso foi considerado talvez até mais perigoso que o modelo zapatista, que é motivo pelo qual, na minha visão, ela foi destruída. É possível que a Bósnia nunca mais possa recriar-se novamente na utopia do modo como foi sonhada em 1991. Mas aquele momento esteve lá, e eu penso que foi muito significativo para nós. Então, essa é para mim a linha do futuro. Eu penso que temos de reconsiderar todas nossas prioridades, temos de compreender que a militância é mais uma vez um conceito muito importante. Isso não quer dizer que eu tenho qualquer plano de marcha. Eu não sei a quais exércitos me juntar e sempre suspeito de me unir a qualquer exército. Mas as coisas definitivamente mudaram. Estou embaraçado de que tenha levado tanto tempo para perceber isso. Eu não acho que muitas pessoas realmente compreenderam isso ainda. Na verdade, o fato de que nós ainda usemos palavras como "Terceiro Mundo" significa que a linguagem popular não compreendeu o que aconteceu em 1989-1991. Então, o primeiro objetivo é simplesmente tentar formar consciência sobre isso e é isso que espero fazer em um futuro próximo.

(D. Ender): Você vê quaisquer efeitos tangíveis dessa falta de oposição nos EUA?

(H. Bey): Ah sim, certamente. A coisa mais tangível, e eu penso realmente na coisa que me deu a dica para pensar sobre isso, é precisamente a condição psíquica. Alguém poderia apontar muitos fatores econômicos ou sociais, mas, acima de tudo, sinto um mal-estar psíquico que é algo um tanto novo, e, bem, alguns anos atrás eu comecei a notar em discursos públicos que havia muito menos resposta por parte das audiências. Você pegaria audiências que se sentariam lá um tanto passivamente olhando para você como se você estivesse na televisão. E se perguntas viessem, elas provavelmente seriam questões como "Conte-nos o que fazer". Você sabe que quando pessoas perguntam-lhe esse tipo de questão, elas não têm nenhuma intenção de realmente tomar seu conselho. O que elas estão fazendo é tentar preencher algum buraco nelas mesmas. Então eu pensei, primeiramente, que era apenas a influência da TV, que ocorre desde 1947 aproximadamente, mas então eu percebi que essa não é uma explicação suficiente pra esse tipo de estranha passividade. E comecei a ouvir isso de outras pessoas que são envolvidas em falar em público e então finalmente eu li uma seção inteira sobre isso no livro mais recente de Noam Chomsky. Ele tem exatamente a mesma experiência de audiências, e todas essas experiências começam em torno de 1989, 1991. O que eu penso que nos aconteceu não é só a TV. A TV é apenas um sintoma. Então, o que está acontecendo é um tipo de colapso cognitivo ao redor desse mundo único. Quando as pessoas não sentem mais uma possibilidade no mundo, uma possibilidade de outro posicionamento, então elas se tornam conscientemente opostas a ele. E oposição consciente é extremamente difícil em uma atmosfera que é completamente envenenada pela mídia tal que nenhuma voz de oposição nunca é realmente ouvida. A menos que você mesmo faça o esforço de procurar a mídia alternativa, onde essa voz está ainda debilmente falando, então você é deixado simplesmente nesse mundo de uniformidade e separação. Uniformidade – tudo é uniforme; separação – todo indivíduo é separado de todo outro individuo; alienação completa, unidade completa. E penso nisso em um nível inconsciente, no nível das imagens, no nível mitológico, no nível religioso se você quiser colocar assim, isso é o que está acontecendo, especialmente os Estados Unidos. Eu não posso falar realmente de outros lugares com o mesmo grau. Eu viajei a outros países, mas ninguém tem a percepção de outros países como tem a percepção de seu próprio país. Mas eu imaginaria que é um fenômeno de extensão global – esse tipo de capitulação à monocultura no nível psíquico mais profundo. Então, sim, esse foi de fato o sinal que começou a me aborrecer ao ponto de que eu tive de pensar do meu jeito esse problema do mundo únicos, dos dois mundos, dos três mundos e do mundo revolucionário. De modo algum eu terminei de pensar sobre isso, mas recentemente tive isso – para mim – essa descoberta sobre a palavra "revolução". Assim vejo esse como o único modo de romper essa parede particular de vidro, essa tela, sim, quebrar a tela.

C.L.: Parece quase uma conclusão.

H.B.: Bem, se você desejar.

C.L.: Não, não é isso que eu desejo... Quando você fala sobre um ou dois ou três ou oposição ou assim por diante, eu recebo imagens totalmente contrárias àquelas na minha cabeça, porque a Europa neste instante, e quanto mais você vai para o leste no Velho Mundo, mais você vê como isso tudo ruiu para entidades pequenas, quase tribais, muito chauvinistas de pessoas tentando freneticamente sobreviver – a máfia é o melhor modelo – desse ponto de vista e também da sua fala sobre o Capitalismo Muito Tardio, eu gostaria de ter uma imagem sua de como a Europa ou como a Comunidade Europeia ou a União Europeia, na qual nós estamos sentados neste momento, apresenta-se de lá.

H.B.: Bem, obviamente, especialmente desde o colapso do comunismo, você vai tê-la quebrada em muitas pequenas peças. Mas é mais do que isso. Nós temos de perceber que a diferença é a resposta orgânica revolucionária à uniformidade, e todas essas sociedades estilhaçadas das quais você fala são conscientemente ou inconscientemente revolucionárias. Agora, no caso dos Zapatistas ou dos bósnios, digamos, esse é um tipo positivo de revolução que nós podemos possivelmente apoiar. No caso dos sérvios, é algo diferente. É uma revolução conservadora, talvez até mesmo uma revolução fascista. Não é realmente "nacionalismo", é uma forma de imperialismo étnico. A questão é que as pessoas vão enfatizar a diferença. Olhe desse jeito: se você tem sua própria cultura, vamos dizer que fosse islamismo bósnio ou finlandês ou celta ou ashanti ou alguma cultura tribal – isso vai se tornar mais e mais precioso para você como uma fonte e um lugar de diferença. É aqui que a diferença está para você. Ela está na linguagem, está na culinária, está na arte, está em todas essas coisas. A distinção é que a diferença não tem de ser hegemônica ou fascista. E isso será extremamente difícil para os antigos esquerdistas compreenderem, porque a antiga esquerda tinha um ideal de uma cultura única mundial – secular, racionalista, você sabe, totalmente iluminada, sem sombras, indústria, proletariado, avançando para o futuro, basicamente extremamente hegemônica em relação às diferenças. Sim, eles tinham seus pequenos dançarinos folclóricos uzbeques, mas isso é simplesmente um espetáculo da diferença, não é a verdadeira diferença. E nós temos a mesma coisa: temos seiscentos canais – escolha um! Há um canal para todo mundo. Isso é a diferença? Não. Isso não é realmente diferença. Isso é apenas uniformidade disfarçada de diferença. Mas a verdadeira diferença orgânica integral é revolucionária, agora. Ela tem de ser, porque é oposta ao mundo único, ao mono-mundo, à monocultura do capital. Então, nós temos de escolher e temos de influenciar as escolhas de outras pessoas para ir atrás de uma particularidade anti-hegemônica mais do que uma particularidade hegemônica. Em outras palavras, pegue os Zapatistas novamente como modelo aqui. Como eu disse, eles não estão pedindo para outras pessoas se tornarem índios maias. Eles estão simplesmente dizendo "Essa é a nossa diferença. Isso é revolucionário para nós. Nós estamos defendendo isso". Então parece para mim que o que está acontecendo na Europa por um lado é esse despedaçar em todos esses fragmentos, que é uma situação em que a consciência política torna-se extremamente difícil. Por outro lado, você tem coisas como a UEE (União Econômica Europeia), que é simplesmente, na minha mente, sintomática da monocultura capitalista. Então eu acho que isso significaria, apesar de eu ter de pensar sobre isso muito cuidadosamente, eu diria que uma estância revolucionária na Europa seria anti-UEE. Eu penso que teria de ser, porque o que temos de preservar é uma ecologia, você sabe. Uma ecologia de mente e corpo implica diferença. Isso implica diferença em um estado de equilíbrio – equilíbrio que pode até mesmo incluir conflito. Se você olhar para sociedades tribais, elas não são necessariamente sociedades pacíficas. Mas a ideia de guerra para a extinção de todo desejo individual – isso é o monopólio do capital triunfante. E eu penso que isso diz respeito a nós – nós temos de repensar nossa posição se nos consideramos esquerdistas de algum tipo ou parte da tradição de esquerda de algum modo. Temos de realmente repensar seriamente nossa visão do que a diferença revolucionária é, do que ela poderia ser. Então, isso tudo me é inevitável. O que está acontecendo na Europa Oriental é inevitável e é potencialmente revolucionário. Se ela ficar atolada em uma revolução conservadora e no neofascismo, essa seria a maior tragédia do século XXI, mas eu não penso que é necessário no sentido exato. Há uma coisa como particularidade revolucionária. E tanto quanto a Europa Oriental vai, eu mencionaria não apenas a Bósnia como um fracasso, mas talvez alguns dos outros pequenos enclaves como possíveis sucessos, você sabe. Os anarquistas em Ljubljana [Eslovênia], eles parecem estar fazendo coisas interessantes. É um país pequeno o suficiente onde eles poderiam ter alguma influência real. Então, tempos interessantes à frente, não duvide disso.

C.L.: Sim. Eu gostaria de poder compartilhar sua visão sobre isso.

H.B.: Vá em frente e argumente comigo porque–

C.L.: Não, não. O que eu mais vi foi a parte final do que você falou – o renascimento do capitalismo conservador em todos aqueles países como Lituânia e Romênia e por aí vai. Havia um tipo de espírito de resistência lá, enquanto havia aqueles governos autoritários. E agora que eles ruíram, é como se o dólar fosse a principal autoridade para todos, são todos contra todos, e é muito difícil de ver algo de revolucionário nisso. Exceto que isso parece com algo muito autossabotador.

H.B.: Eu concordo com você, mas a Europa Oriental é o campo de batalha ideológico onde o capital quer desfilar seu triunfo, onde o capital está determinado a converter todo mundo. E claro, não há dúvida de que aqueles sessenta anos de comunismo deixaram todos extremamente exaustos.

C.L.: E os deixaram para trás também mentalmente. As pessoas foram privadas de todo tipo de informação.

H.B.: Eu sei à exaustão, mas ao mesmo tempo, quando encontro pessoas brilhantes da Europa Oriental, jovens intelectuais, punks, anarquistas e assim por diante, fico com o sentimento de um tipo de frescor de abordagem que está faltando na Europa Ocidental e nos americanos; porque eles ficaram de fora do circuito por tanto tempo, porque há talvez até mesmo certa ingenuidade baseada em (risos) ignorância. Isso pode ser transformado em um tipo de força, também, de um modo paradoxal. Digo, nas conferências às quais eu fui no ano passado na Europa que tratavam na maior parte sobre internet e teoria da comunicação, sempre, sem exceção, as pessoas mais interessadas eram da Europa Oriental. Eles têm mais o que falar, eles têm mais energia, as ideias mais criativas etc, etc, etc. Então eu não penso que seja uma situação totalmente horrível e sem esperanças. Eu penso que o poder do capital internacional é muito mais focado naquela parte do mundo neste momento. Então, a resistência é extremamente importante. Eu penso que é uma das principais prioridades os americanos e os europeus ocidentais mostrarem todo tipo de apoio à resistência na Europa Oriental. Funcionando ou não, quem sabe, você sabe. Mas o que mais nós temos a fazer?


  • David Ender
  • Jack Hauser
  • Christian Loidl


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Nota Sobre o Nacionalismo Hakim Bey em Viena