Lobos

De Protopia
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Espere Resistência
CrimethInc


No começo éramos como lobos, estávamos sozinhos. Nós descobrimos pequenos crimes ― roubar de lojas, golpes, grafite, vandalismo ― e os praticávamos da mesma forma que outras pessoas praticam religiões, esportes ou drogas. Como Pablo, nós pensávamos estar em guerra, mas era uma guerra particular, nós seis contra seis bilhões deles. Como a maioria dos empregados do setor de serviços, nós odiávamos nossos chefes, mas não havíamos elaborado uma crítica à autoridade; nos ressentíamos de nossos professores na escola da mesma forma instintiva, assim como nossas mães se ressentiam de nossos pais sem usar palavras como patriarquismo. Eu não me via como um opositor ao capitalismo, pois para mim era algo muito mais específico: eu queria fugir da esteira que levava pilhas de pratos sujos à pia da cozinha, e o cheiro de detergente industrial misturada com o ranço da gordura, de noite eu acordava raspando a sujeira de pratos fantasmas nos meus sonhos.


Se a delinqüência não me tornasse capaz de escapar de tudo isto, pelo menos ela demarcava um território longe disto. Pela primeira vez eu roubei um par de sapatos, eu estava tão condicionado ao meu lugar na base da pirâmide social que eu roubei os mais baratos da loja. Um ano mais tarde, eu estava acostumado a comer o melhor da cozinha orgânica, produtos selecionados apenas para os consumidores mais ricos: por quê não pegar os itens mais caros, se a acusação seria a mesma?


Esta mudança na dieta foi acompanhada por mudanças radicais na minha auto-estima, o que levava a novas linhas de raciocínio. De uma forma muito concreta, as comidas que eu era permitido por lei a comer refletiam o meu valor na sociedade. Como um lavador de pratos, eu literalmente não poderia comprar os produtos que eu roubava; isso significava então que eu não os merecia? Meu gerente, que nunca sujou suas mãos, tinha como certos luxos que eu tinha que arriscar um tempo na prisão apenas para experimentar. Os conselheiros na escola nos diziam que as pessoas acabavam com empregos como os nossos porque eles não tinham educação suficiente, mas eu sempre pude ver através disso: onde quer que houvessem restaurantes e cafeterias, alguém teria que lavar os pratos, e certamente não seriam os proprietários. Alguns dos meus colegas de trabalho tinham freqüentado a faculdade e não tinham conseguido nada além de dívidas.


Quando eu pensava sobre a pobreza que eu via crescer e os séculos de destituição que devem ter ocorrido antes, me indigna que alguém pudesse dizer que roubar é imoral. Alguém realmente podia argumentar com a consciência limpa que toda a privação já não era suficiente, que as pessoas pobres de toda história teriam que ter sobrevivido sem o que elas roubaram também?


Então nós desenvolvemos uma análise mais ampla do que estávamos combatendo, mas nossos motivos ainda eram esquizofrênicos: nós desprezávamos as pessoas ricas, os seus privilégios e o seu sentimento de merecimento e sobretudo as injustiças que eles jogavam sobre os outros, mas eu invejava o seu estilo de vida ― mesmo que isso os deixasse moles, mesmo que fosse necessária a exploração de outras pessoas. Viver em constante conflito com a lei aguçava os nossos sentidos e apimentava a nossa existência cotidiana que de outra forma seria extremamente desmoralizante, mas isso não deixava as coisas melhores para ninguém da nossa classe social ― na melhor das hipóteses, eu levaria comida para a casa da minha mãe, mas eu não tinha idéia do que fazer pelas outras pessoas da sua rua.


Depois das primeiras prisões, tivemos que procurar uma abordagem mais sustentável. Alguns partiram atrás de carreiras como criminosos barra-pesada; o resto desistiu das atividades mais arriscadas e aumentou todas as outras. Nos focamos mais e mais nos excessos de nossa sociedade ― não eram tão bem guardados. E que fartura! Por que encher os nossos bolsos dentro das lojas com um olho no segurança quando podíamos encher um caminhão inteiro atrás da loja?


Foi assim que eu passei a questionar o meu próprio materialismo. Eu fui ensinado a querer coisas que eu nunca poderia ter ― carros esportivos, relógios de ouro, mobília e óculos de marca. Todo mundo no país estavam atrás da mesma miragem, e de alguma forma haviam lixões transbordando com todas essas coisas ― um deles não era muito distante do meu antigo bairro. Em distribuidoras eu revirava caçambas enchidas com suco em perfeito estado e balançava minha cabeça em reprovação. Escravos assalariados como eu estavas jogando fora vidas inteiras trabalhando para produzir coisas que ele nunca poderiam possuir, e nossa sociedade estava descarregando elas, pelas nossas costas, direto no lixo. Eu não queria ter nada a ver com isso, mesmo como ladrão.


Rodando pela cidade à noite, catando cobre para vender ou mercadoria que danificamos durante o dia, Diego e eu tirávamos sarro dos outdoors onipresentes. "Olha aquele lá," ele apontava, "Belo chapéu de cowboy, gringo! E para finalizar é chamado 'Colt 45' ― você já notou como toda maldita companhia de licor de malte tem um nome desse tipo? Supostamente devemos nos identificar com o nome das marcas, nos sentirmos durões e poderosos enquanto acabamos com o nosso fígado ― mas a arma está apontada para nós."


"E o mais louco é que eu quero isso. O que mais vou fazer no resto da noite?" Isso foi alguns meses antes de conhecermos os estudantes que nos convidaram para o acampamento. "Eu sei como conseguir tudo de graça, mas eu não tenho idéia de como me libertar."


"Para isso, vamos precisar de uma gangue maior," Diego terminou com o assunto.