O Decrépito Charme da Burguesia
Adaptado de Homenagem à Catalunha, de George Orwell
O seu pai pula de um hobby para outro procurando em vão um modo gratificante de gastar o pouco tempo de lazer que ele tem? Sua mãe termina de redecorar a casa, indo de um cômodo a outro até que possa começar do início de novo? Você agoniza constantemente pensando no seu futuro como se houvesse um caminho predeterminado na sua frente — e o mundo acabaria se você saísse dele? Se a resposta para essas perguntas é sim, parece que você está nas garras da burguesia, os últimos bárbaros da Terra.
A Lei Marcial da Opinião Pública
A opinião pública é um valor absoluto para o homem e a mulher burguês porque eles sabem que estão vivendo numa multidão: uma multidão de animais assustados que vão atacar qualquer um que eles não reconheçam como membro do seu grupo. Eles tremem de medo quando ponderam sobre o que "os vizinhos" vão pensar do novo estilo de penteado do filho. Eles bolam maneiras de se sentir até mesmo mais normais do que seus amigos e parceiros no trabalho. Eles não ousam deixar de regar o jardim ou se vestir apropriadamente para as sextas-feiras no escritório. Qualquer coisa que os leve a sair da rotina é vista com muita suspeita. Amor e desejo são doenças, possivelmente fatais, como todas as outras paixões que podem levar à expulsão da multidão. Mantenha-os em quarentena em encontros secretos e namoros adolescentes, em boates e puteiros ― pelo amor de Deus não contamine o resto de nós. Enlouqueça quando o "seu" time de futebol vencer, beba até esquecer de si mesmo no final de semana, alugue vídeo pornô se você precisar, mas não se atreva a cantar, correr ou fazer amor aqui fora. Em nenhuma circunstância admita sentir o que quer que seja que não pertença à sala dos funcionários ou ao jantar. Sob nenhuma condição admita querer qualquer coisa a mais ou diferente do que "todo mundo quer", o que quer que seja e quem quer que seja.
E é claro, seus filhos aprenderam isso também. Até mesmo depois da competição desumana do ensino médio, mesmo entre os mais rebeldes e radicais dos não-conformistas, as mesmas regras se aplicam: não confunda ninguém sobre qual é a sua posição. Não use os significantes errados ou siga os códigos errados. Não dance quando se espera que você fique parado, não fale quando se espera que você dance, não confunda os gêneros ou os passos. Esteja seguro de que você tem dinheiro suficiente para participar dos vários rituais. Para manter sua identidade intacta, torne claro a que subculturas e estilos você se alinha, com que bandas, modas e políticas você se associa. Você não quer ousar perder sua identidade, quer? É sua couraça de personalidade, sua única proteção contra a morte certa na mão dos amigos. Sem uma identidade, sem bordas para definir seu eu, você simplesmente se dissolveria no vácuo... não é?
O Abismo Entre as Gerações
As velhas gerações da burguesia não têm nada a oferecer aos mais jovens porque eles não têm nada em primeiro lugar. Todos os seus modelos são falsos, todas as suas riquezas são prêmios de consolação, nenhum dos seus valores contém qualquer referência ao prazer real ou à plenitude. Suas crianças sentem isso, e se rebelam de acordo, sempre que podem fugir disso. Aqueles que ainda não foram punidos até aceitar essa terrível submissão.
Então como a sociedade burguesa continua a se perpetuar durante tantas gerações? Absorvendo essa rebelião como sendo parte natural do ciclo da vida. Porque toda criança se rebela tão cedo ela seja grande o suficiente para ter consciência de si mesma, essa rebelião é apresentada como parte integrante da adolescência ― e portanto a mulher que quiser continuar sua rebelião na maturidade, será levada a sentir que está insistindo em continuar sendo criança para sempre. Vale a pena ressaltar que uma pequena pesquisa de outras culturas e povos revela que essa "rebelião adolescente" não é inevitável nem "natural".
Essa perpétua rebelião dos jovens também cria profundos abismos entre as diferentes gerações da burguesia, o que cumpre um papel crucial em manter a existência da burguesia como tal. Porque os adultos parecem ser os sustentáculos do status quo e os jovens ainda não conseguem ver que a sua rebelião também foi absorvida por esse status quo, geração após geração de jovens caem no erro de identificar as pessoas velhas em si mesmas como a causa dos seus infortúnios ao invés de refletir que esses infortúnios são o resultado de um grande sistema de miséria. Eles crescem e se tornam adultos burgueses, incapazes de perceber que eles estão simplesmente tomando o lugar dos seus inimigos e ainda sem a possibilidade de transpor o chamado abismo entre gerações e aprender alguma coisa com as pessoas de outras idades... muito menos estabelecer algum tipo de resistência unificada com eles. Logo as diferentes gerações da burguesia, enquanto aparentemente parecem estar lutando uns contra os outros, trabalham juntos harmoniosamente como componentes de uma grande máquina social que garante a alienação total de todos.
O Mito da Normalidade
Os burgueses dependem da existência de uma normalidade mítica para justificar seu modo de vida. Eles precisam dessa normalidade porque seus instintos sociais estão distorcidos da mesma maneira que o seu conceito de democracia: eles pensam que o quer que a maioria seja, queira, faça, deve ser o correto. Nada pode ser mais terrível para eles do que esta nova mudança, que se está começando a se sentir hoje em dia: que não há mais uma maioria, se é que algum dia existiu.
Nossa sociedade está tão fragmentada, tão diversa, que a essas alturas é absurdo falar de uma "normalidade". Ela é um mito parcialmente criado pelo anonimato das nossas cidades. Quase todos que passam na rua são estranhos: as pessoas mentalmente renegam essas figuras anônimas à massa sem rosto que é chamada de normalidade, cujos atributos as pessoas acham que os estranhos possuem (para o elegante comerciante, eles são todos invejosos por ele ser mais respeitável do que eles são, para o rebelde boêmio inseguro, eles o desaprovam por não ser como eles são). Eles devem ser parte da maioria silenciosa, essa força invisível que faz tudo ser do jeito que é, a pessoa assume que ela é a mesma "pessoa normal" vista nos comerciais de TV. Mas o fato é que, é claro, esses comerciais se referem a um ideal inatingível, feito para manter todo mundo à parte e sem plenitude. A "normalidade" é análoga a esse ideal, como mantém todo mundo na linha sem nem mesmo manter a aparência e possui o mesmo grau de realidade da família perfeita no comercial de pasta de dente.
Ninguém se preocupa mais com essa massa distraída do que os filhos boêmios da burguesia. Eles batem-boca sobre como orquestrar seus protestos para ganhar o "apelo da massa" para suas ideias radicais, como se ainda houvesse uma massa! Nossa sociedade é agora feita de muitas comunidades e a única questão é de que comunidades eles devem se aproximar... e se vestir "bem", falar certinho e tudo mais provavelmente não é a melhor forma de atrair os elementos potencialmente mais revolucionários da nossa sociedade. Em última análise, a maioria da chamada "normalidade" imagina que eles estarem se fantasiando para suas manifestações ou eventos políticos é provavelmente um espectro dos pais burgueses, enraizado profundamente em seu inconsciente coletivo (psicose coletiva?) como um símbolo da insegurança e da culpa das quais eles nunca se livraram. Seria melhor se eles cortassem todos os seus laços com a burguesia, sentindo-se livres para agir, parecer e falar de qualquer modo que lhes seja agradável, sem se importar com quem está olhando ― mesmo quando estão lutando por alguma causa política: estar em camuflagem e perseguir um objetivo político não deve ser mais importante do que lutar por um mundo onde as pessoas não tenham que mudar o visual para serem levadas a sério.
Isso não é desculpa para esses boêmios inseguros que usam o ativismo não como meio de criar laços com outros, mas como modo de se colocar à parte: no seu desespero para comprar uma identidade para si mesmo, eles acreditam que devem pagar por isso definindo a si mesmo em oposição aos outros. Você pode reconhecê-los pela sua pompa em discorrer certezas ideológicas, a ostentação com que se declaram ativistas na primeira oportunidade. Hoje em dia "ativismo" é domínio quase que exclusivo deles, sendo que "exclusivo" é a palavra chave... até que isso mude, o mundo não vai mudar.
Casamento... e Outros Substitutos para Amor e Comunidade
Reprodução é um assunto muito importante para o homem e a mulher burgueses. Eles só podem ter crianças dentro de circunstâncias muito precisas; qualquer coisa fora disso é "irresponsabilidade", "imprudência" ou "uma decisão ruim para o seu futuro". Eles devem estar preparados para abandonar todo e qualquer último vestígio de sua jovialidade e liberdade pessoal para ter crianças; a mobilidade que as suas corporações demandam e o vício da competição destruíram a comunidade que há tempos era usada para dividir o trabalho de criar crianças. Agora cada família é um posto militar, fechado para o mundo exterior tanto em seus corações quanto na paranóia de cidades planejadas dos condomínios, cada uma sendo uma economia emocional isolada em si mesmo onde escassez é a palavra chave. O pai e a mãe devem abandonar a si próprios em favor dos prescritos papéis de doadora de cuidados e mantenedor do pão de cada dia para o qual, no mundo burguês, não há outra maneira de prover a criança. Desta forma a própria fertilidade do casal burguês tem sido uma ameaça à sua liberdade, e uma parte natural da vida do ser humano se tornou um mecanismo de controle social.
Casamento e a "família nuclear" (família atomizada?) como grupo escravizador têm sobrevivido como resultado dessa calamidade, para infortúnio de amantes em potencial em todo lugar. Pois como os aventureiros juvenis, que mantêm seu desejo forte e seu apetite aguçado com constante perigo e solidão, bem sabem, amor e desejo sexual não podem sobreviver superexpostos ― especialmente nos ambientes entediantes e sem vida em que muitos casais passam o tempo juntos. O marido burguês vê a única amante que lhe é permitido ter dentro da pior das circunstâncias: depois de toda outras forças deste mundo terem tido a oportunidade de exauri-lo e enfurecê-lo o dia todo. A esposa burguesa aprende a punir e ignorar como "irreal" e "impraticável" todo desejo por romance, espontaneidade, maravilha. Juntos eles vivem num inferno de insatisfação. O que eles precisam é uma real comunidade de carinho em volta deles, então a paternidade não os forçaria a uma indesejável "respeitabilidade", então eles ainda seriam livres para ter suas aventuras individuais que necessitam para manter o tempo juntos de forma doce, então eles nunca se sentiriam tão perdidos e desesperadamente sós.
Da mesma maneira, o suprimento seguro de comida, de conveniências, confortos e diversões não lhes dá vantagens. Como todo caroneiro, todo herói, todo terrorista sabe, essas coisas ganham valor através da sua ausência e podem oferecer contentamento real apenas como luxo acontecendo dentro da perseguição de alguma coisa maior. Constante acesso a sexo, comida, calor e abrigo dessensibilizam um homem para os prazeres que eles podem proporcionar. O burguês trocou a sua oportunidade de buscar por interesses reais na vida pela garantia de que ele terá essas amenidades e seguranças; mas sem interesses reais na vida, essas amenidades não podem oferecer a ele nenhum contentamento real diferente da companhia de seus companheiros prisioneiros.
Os prazeres de uma vida alugada!
Você pode fazer um passeio por todos os desejos do homem burguês apenas ligando a TV ou indo até um cinema. Ele gasta tanto quanto ele pode do seu tempo nessas várias realidades virtuais porque sente instintivamente que elas podem oferecer a ele mais emoções e satisfação do que o mundo real. A parte mais triste é que, enquanto ele permanecer burguês, isso pode ser verdade. E enquanto ele aceitar o deslocamento dos seus desejos para o supermercado pagando por imitações do seu preenchimento, ele ficará enredado na armadilha que é ele próprio.
Esses desejos não são sempre agradáveis de se ver em Technicolor e com som Surround: os sonhos do homem burguês e seus apetites estão tão contaminados pela fetichização do poder e do controle quanto a sua sociedade. O mais próximo de desejos livres e liberados que ele parece ser capaz de oferecer é a fantasia da destruição de tudo, que aparece vezes sem conta no coração negro do sonhos cinemáticos febris. Isso faz sentido ― afinal de contas, num mundo de shopping centers e parques temáticos, que coisa honesta se tem para fazer além de destruir?
O burguês não está equipado para ver seus desejos como nada diferente de uma infeliz fraqueza a ser desviada com placebos, porque sua vida nunca foi sobre a busca por prazeres ― ele tem gasto muitos séculos alcançando padrões cada vez mais altos de sobrevivência, ao custo de tudo o mais. À noite, ele senta na sua sala de estar cercado de computadores, abridores de latas, detectores de radar de trânsito, home theaters, gravatas "estilosas", microondas e telefones celulares sem nenhuma ideia do que deu errado.
O burguês só é possível por causa do tapa-olhos que ele usa, que o impede de imaginar que exista outra maneira de viver possível. Até onde ele pode enxergar, todos, desde o imigrante trabalhador da sua própria nação até o monge tibetano seria burguês também, se eles pudessem ser. Ele dá tudo de si para manter essas ilusões, sem elas, ele teria que encarar o fato de que ele jogou sua vida fora por nada.
O burguês não é um indivíduo. Ele não é uma pessoa real (embora se ele fosse, provavelmente moraria em Connecticut). Ele é um câncer dentro de de nós. Ele pode ser curado agora.