O Despertar e o Luto: Em memória à Samuel Eggers
«Porém viveram aquelas vidas extraordinárias que nunca serão vividas de novo. E através de suas vidas, me deram uma história que é mais profunda, mais apaixonante, e muito mais útil se comparada a tudo que já li no melhor daqueles malditos livros de história.»
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(Utah Phillips, The Long Memory - 1996)
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Conheci Samuel Eggers como quase sempre se conhece novxs amigxs - através de outrxs amigxs. Mas caso alguém me pergunte, não o conheci o suficiente. Esta manhã fui avisado que ele não estava mais vivo, e foi como levar uma surra.
Sei alguma coisa sobre sua vida. Sei que sua família é da cidade de Caxias do Sul, que havia estudado psicologia na universidade federal, e era estudante e pesquisador da Neuropsicologia. Sei também que praticava kung-fu, era extremamente engraçado, e há algum tempo havia sentido uma forte atração pela ideia de ir e vir de bike.
Há quem passe a vida perdendo tempo se distraindo com qualquer coisa, repetindo bobagens escritas nos jornais. Este não era o caso de Samuel que se interessava por quase tudo que não fosse alienante, tinha visão política aguçada e um acúmulo de conhecimento incrível, incompatível com qualquer tipo de moderação. Seu raciocínio passava longe da vala rasa dos intelectuais que pregam soluções reformistas para problemas estruturais. Tudo isso é possível perceber nos textos de seu blog “Tempo de Rebeldia”.[1]
Quem lê aqueles textos se depara com um legado político interessante e eloquente. Talvez tenha sido esse 'algo' que me motivou a escrever esta homenagem. Sinto que não o conheci o suficiente, ainda que sempre tenha encontrado valor em sua presença. Mas através de seus artigos, pude ter mais de contato com suas ideias, e elas eram profundas, fossem à luz de leituras interessantes, fossem na penumbra da vida cotidiana. Existe algo de partilha nesses escritos, vestígios do despertar de Samuel para a luta.
Por um tempo se considerou pacifista, sem jamais fazer parte da manada de conformados que abana o rabo enquanto finge que não enxerga todas as formas institucionalizadas de violência. Suas convicções o levaram para as ruas de Porto Alegre. Participou ativamente das manifestações contra a derrubada das árvores no gasômetro e esta participação o fez alvo da truculência policial e um breve período nas celas da 9ª Delegacia de polícia de Porto Alegre. Também participou das manifestações pelo passe livre na cidade, deixando algumas das melhores cronicas a respeito.
Alguém consciente foi morto e não convém fazer silencio durante o luto. Não o conheci muito bem, mas tínhamos algumas coisas em comum. Por questão de visão, também ele tomou lugar entre essa gente pintada de bruxas, vândalxs, terroristas & lobos pela imprensa falsária. Com sua atitude sempre tranquila, passou a fazer parte desta minoria da qual faço parte, uma mais perseguidas de todos os tempos – quase 1% e ainda assim existem![2]
Há não muito tempo Samuel havia se reconhecido como libertário, e eu diria, um anarquista dos melhores, daqueles que se posicionam, que se fazem ouvir. Se aproximou da filosofia e prática anarquista também através de sua invejável capacidade de leitura. Vinha defendendo este ponto de vista publicamente, e também em seu fazer científico. Vinha se aprofundando na prática da autogestão em encontros estudantis e outros lugares. Era mesmo um dxs nossxs, um dxs que não se contentam com ruminar distração, um dxs que não encontram satisfação nas oportunidades geradas pelas terríveis consequências de um sistema de exploração, mentira e opressão.
Apesar de não termos muito tempo disponível, contribuíamos para o mesmo espaço – o Espaço Deriva no Clube de Cultura – e volta e meia ali nos encontrávamos, em alguma atividade, para uma boa troca de ideias. Colaborávamos também em outros círculos – mutirões em dias de sol, conversas noturnas junto ao fogo, sob as estrelas. Em alguns dias iriamos nos encontrar... nunca esquecerei das suas tiradas certeiras e bem-humoradas.
Aos 24 anos, Samuel foi morto com três tiros no rosto, dez minutos depois da meia-noite de 13 de setembro de 2013, na cidade de Caxias do Sul. Retornava para a casa dos pais com um costumeiro livro nas mãos, depois acompanhar duas amigas na volta para casa. Não era do tipo que provocava discussões com estranhos na rua, e até onde se sabe, jamais esteve envolvido com gente inconsequente portando armas – bandidos ou policiais.
Diante de um absurdo destes, nossa inteligencia parte em busca de explicações. Teria sido ele morto pela polícia, ou talvez atacado por algum grupo de fascistas de Caxias do Sul, por conta de algum texto publicado na internet ou de alguma fala pública "inaceitável", em um desses congressos? Estaria sua morte sua morte relacionada à alguma pesquisa que desenvolvia? Teria sido vítima acidental do equívoco de um assassino contratado para dar cabo de algum infeliz endividado com o tráfico? Ou será que foi confundido com um amante por algum marido traído, doentio e possessivo?
Nenhuma hipótese, mesmo quando comprovada, nos trará Samuel de volta. Até agora as evidencias são escassas.
O que sabemos é que nesta madrugada, de dentro de um carro, um punhado de vermes atirou no rosto de nosso amigo depois de ameaçá-lo de morte e em seguida desapareceu. Há muita gente suspeita por aí, são deste tipo de corja que se enche de coragem quando anda em bando com armas nas mãos.
Quando se faz parte de uma minoria como a nossa, uma morte assim se torna algo difícil de aceitar, deixa um vazio que não pode ser preenchido. Não há forma de fazer justiça quando umx jovem libertário é assassinado. Entre nós, não há nada que repare essa mutilação.
Mesmo se a bala que o matou nunca tivesse sido disparada, eu jamais teria conhecido Samuel Eggers “bem o suficiente” – porque neste caso, "o suficiente" é um limite que não se poderia (nem se deveria) aceitar. Tiraram de nós a possibilidade de conhecer esta grande pessoa que Samuel estava se tornando. Seguiremos na luta para saber quem assassinou Samuel, quais eram seus motivos e onde se escondem estes vermes assassinos.
Entre nós permanece este sentimento de revolta de quem teve a vida de um amigo arrancada – talvez por muito pouco, ou por quase nada – em meio a uma destas cidades violentas. Não nos será possível esquecê-lo. Menteremos sua memória viva, e ela será inspiração - tanto para aquelxs que como eu tiveram o privilégio de conhecê-lo, quanto para aquelxs que em seu próprio tempo de despertar, jamais terão essa sorte.
Samuel deixará saudades.
Toda Parte, 13 de Setembro de 2013
«por que continuar aqui? Olho para o asfalto da estrada, sigo-o até o horizonte, como quem procura a promessa que existe nele, e escuto sua voz, dizendo "vem comigo ver o mundo." Sinto-me tentado, mas não, não posso. "Depois, depois" digo para mim e para a estrada "sou responsável agora, preciso trabalhar, tornar-me um cidadão de bem". Um dia, quando eu souber que este trabalho acabou, colocarei outra vez meu pé na estrada e meu polegar no ar para pegar carona em qualquer corrente de ar que me leve para longe daqui. Só espero ainda estar vivo quando este dia chegar.»
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(Samuel Eggers - 18/07/2011)
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- ↑ http://tempoderebeldia.blogspot.de/
- ↑ Como na música Les Anarchistes do cantor francês Léo Ferrer.