O decrescimento como projeto político de esquerda

De Protopia
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Serge Latouche

Publicado na Revue de Mauss, 2009/2 (nº 34), pp. 38-45


Que o decrescimento seja um projeto político de esquerda constitui para mim simultaneamente uma evidência e um paradoxo.

Uma evidência

O decrescimento constitui um projeto político de esquerda porque se funda sobre uma crítica radical da sociedade de consumo, do liberalismo e reconecta-se com a inspiração original do socialismo.

1) Crítica radical da sociedade de consumo, do desenvolvimento e do desenvolvimentismo, é uma crítica ipso facto do capitalismo. O que é a sociedade de crescimento de fato? A sociedade de crescimento pode ser definida como uma sociedade dominada por uma economia de crescimento e que tende a se deixar absorver por esta. O crescimento pelo crescimento torna-se assim o objetivo primordial, senão o único, da vida. Crescimento é o nome “vulgar” do que Marx analisou como acumulação ilimitada de capital, origem de todos os impasses e injustiças do capitalismo. O crescimento e o desenvolvimento são, respectivamente, crescimento da acumulação do capital e desenvolvimento do capitalismo, portanto exploração da força de trabalho e destruição sem limites da natureza. Já o decrescimento é um decrescimento da acumulação, do capitalismo, da exploração e da predação. Não se trata somente de desacelerar a acumulação, mas de questionar o conceito para inverter o processo destrutivo. É, portanto, bem erroneamente que acusaram por vezes os decrescimentistas de se acomodar ao capitalismo [Cf. Latouche, 2007, p. 135].

2) O decrescimento é também, evidentemente, uma crítica radical do liberalismo, aqui entendido como o conjunto de valores que sustentam a sociedade de consumo. No projeto político da utopia concreta do decrescimento em oito R (Reavaliar, Reconceitualizar, Reestruturar, Relocalizar, Redistribuir, Reduzir, Reutilizar, Reciclar), três deles, Reavaliar, Reestruturar e Redistribuir, atualizam muito particularmente essa crítica.[1] Reavaliar significa rever os valores em que cremos, sobre os quais organizamos nossa vida, e mudar aqueles que devem ser mudados. Notamos imediatamente quais são os valores que é preciso destacar e que deveriam ficar acima dos valores dominantes atuais. O altruísmo deveria ficar cima do egoísmo, a cooperação acima da competição desenfreada, o prazer do lazer e o ethos da lucidez acima da obsessão do trabalho, a importância da vida social acima do consumo ilimitado, o local acima do global, a autonomia acima da heteronomia, o gosto pelos belos trabalhos acima da eficiência produtivista, o razoável sobre o racional, o relacional sobre o material etc. A crítica do trabalhismo encontra novamente aí a inspiração de Paul Lafargue, o genro de Marx, em sua ótima obra O direito à preguiça – que permanece como um dos mais fortes ataques contra o trabalhismo e o produtivismo. Sobretudo, trata-se de pôr em causa o prometeísmo da modernidade tal como é expresso por Descartes (o homem como “o mestre e dominador da natureza”) ou Bacon (com seu projeto de “escravizar a natureza”). Trata-se simplesmente de uma mudança de paradigma.

Reestruturar significa adaptar o aparelho de produção e as relações sociais em função da mudança dos valores. Essa reestruturação será mais radical na medida em que o caráter sistêmico dos valores for enfraquecido. Isso coloca a questão concreta da saída do capitalismo e da reconversão de um aparelho produtivo que deve se adaptar à mudança de paradigma. O decrescimento é forçosamente contrário ao capitalismo. Não tanto porque denuncia as suas contradições e os seus limites ecológicos e sociais, mas antes de tudo porque põe em causa “o espírito”, no sentido do que Max Weber considera “o espírito do capitalismo”, como condição de sua realização.

Redistribuir é entendido como a repartição das riquezas e do acesso ao patrimônio natural entre o Norte e o Sul, assim como no interior de cada sociedade. A partilha das riquezas é a solução normal do problema social. É porque a partilha é um valor ético essencial da esquerda que o modo de produção capitalista, fundado sobre a desigualdade de acesso aos meios de produção e engendrando cada vez mais desigualdades de riquezas, deve ser abolido.

3) O descimento é, enfim, um projeto ancorado na esquerda porque se reconecta com a inspiração primeira do socialismo, aquela que o classifica, não sem ambiguidade, de utópico. O descimento reencontra através de seus inspiradores, Jacques Ellul e Ivan Illich, as fortes críticas dos precursores do socialismo contra a industrialização. Uma releitura desses pensadores como William Morris, e mesmo uma reavaliação do ludismo, permite dar novamente sentido ao socialismo em uma visão ecológica tal qual foi desenvolvida por André Gorz. É verdade que todos os pensadores citados – Paul Lafargue, Jacques Ellul, Ivan Illich, André Gorz, e aos quais cabe adicionar Bernard Charbonneau, Cornelius Castoriadis, sem falar de Tolstói, Gandhi, ou Thoreau – foram heréticos em relação à doxa da esquerda marxista. Quanto ao socialismo reformista, John Stuart Mill, sua visão de um Estado estacionário com crescimento zero mas que florescesse culturalmente a população, mereceria mais que o silêncio dos marxistas.

Um paradoxo

Sem falar de um problemático decrescimento de direita, representado na França por Alain de Benoist, situar o decrescimento na esquerda representa um desafio. Atacar o produtivismo, exaltar uma sociedade de sobriedade, considerar a crise como uma oportunidade parecem provocações suscetíveis de “desesperar Billancourt”[2] mesmo que isso não exista mais… As reações frente a crise são um bom revelador do dilema que se abre para nós: relançar a máquina para destruir o planeta ou inventar uma nova sociedade.

1) A esquerda social-democrata, comunista, trotskista etc. prendeu-se na armadilha do compromisso keynesiano-fordista. Mesmo os Verdes se fizeram prender. Le Canard Enchaîne [O Pato Acorrentado, um jornal satírico francês] de 17 de dezembro de 2008 ironizava assim o programa dos verdes de um “decrescimento seletivo, justo e solidário”. A própria Dominique Voynet [dirigente dos Verdes] taxava-o de inaudível e um de seus subordinados declarava: “Não me vejo indo dizer ao pessoal demitido da Peugeot: agora será necessário ser sóbrio nas suas vidas cotidianas”.

Certamente, se os partidários do decrescimento sustentassem que se tem o direito de ser feliz e que se o pode ser com 600 euros por mês (referência ao slogan da juventude grega), seriam ridicularizados e tratados imediatamente como aliados objetivos do capitalismo de rapina.

“Não é senão ao termo desse imenso trabalho de falsificação midiática e de memória”, nota Michéa, “que o projeto de um crescimento ilimitado em um mundo sem fronteiras pôde enfim se tornar isso que é atualmente: o último centro de gravidade filosófica de todos os discursos da esquerda e da extrema-esquerda pós-Mitterrand” [Michéa, 2008, p. 138]. Castoriardis já havia denunciado esse movimento. “O caso mais flagrante”, dizia, “é aquele do movimento revolucionário que, sob o comando do marxismo, supunha que tinha que realizar o controle sobre a natureza para dar a autonomia ao homem, o que é uma total ilusão. (…) O que nós precisamos não é de um controle, mas de um controle desse desejo de controlar, de uma autolimitação. Autonomia também quer dizer autolimitação. Precisamos eliminar essa loucura da expansão sem limite, precisamos de um ideal de vida frugal, de uma gestão de bom pai de família dos recursos do planeta” [Castoriardis, 2008, p. 282].

Se “a embriaguez alegre da sobriedade voluntária”, da qual falava Ivan Illich talvez seja possível com 600 euros por mês, então o decrescimento nunca defendeu a passividade e a resignação. A alegria de viver fora das correntes do consumismo não é concebível sem a luta pela justiça e pela melhoria da qualidade de vida. Combater a poluição mental e a colonização do imaginário implica combater as forças responsáveis por essa situação de dependência tóxica. Libertar-se da servidão voluntária para se libertar da servidão involuntária imposta pelo sistema e vice-versa. A felicidade é possível a partir de hoje, no caminho da emancipação da escravidão consumista, desde que seja construída na luta por um mundo mais compartilhado amanhã.

2) O problema é que todos se deixaram seduzir pelo mito do bolo que cresce indefinidamente. Colaborar com o crescimento, ao invés de lutar com obstinação para partilhar um bolo de fatias quase imutáveis, permite melhorar os lados de todos a menores custos. A direita certamente compreendeu bem a necessidade do crescimento para evitar que o sistema seja questionado. Por exemplo, o deputado Christian Blanc publicou um livro intitulado La croissance ou le chaos [O crescimento ou o caos]; escreve ele: “sem crescimento, nenhum acompanhamento social poderá tirar os subúrbios do seu lugar. Sem crescimento, as esperanças de ascensão social desaparecem. Sem crescimento, é inútil esperar romper com a espiral do déficit ou pagar a dívida”. O conselheiro maquiavélico de [Nicolas] Sarkozy, Henri Guaino, acrescenta: “A desigualdade é um motor do crescimento e o crescimento é a única coisa que pode tornar a desigualdade suportável. O crescimento é uma promessa de abundância que atenua a miséria do pobre, enquanto que o Estado estacionário é sobretudo um sonho de riqueza que quer sobretudo que nada mude” [Guaino, 2006]. Essa ideologia se disseminou por toda a sociedade. “O crescimento”, escreve André Gorz, “aparecerá à massa das pessoas como a promessa – ainda que inteiramente ilusória – de que elas um dia deixarão de ser “sub-privilegiadas”, e o não-crescimento como a sua condenação à mediocridade sem esperança”. Finalmente, chegamos à “Pequena oração da alter-globalização”, parafraseada por Hervé René Martin: “Senhor, o mundo não é uma mercadoria mas por piedade não jogue fora as mercadorias e os malvados acionistas, porque vêm deles os nossos empregos e o nosso modo de vida”. “Denunciar por um lado a mercantilização do mundo”, continua”, “enquanto se afirma sempre, por outro, que mais crescimento econômico resolve todos os nossos problemas, ditos como uma extensão da esfera mercantil, parece-me um número de equilibrista [Martin, 2007, p. 188]

O projeto partilhado do comunismo está ainda dissolvido no consumismo. O tamanho do bolo certamente aumentou consideravelmente, mas em detrimento do planeta, das gerações futuras e dos povos do terceiro mundo. Com as melhores coisas chegando a um fim, esse “socialismo reduzido às aquisições” não funciona mais muito bem desde os anos setenta pois o bolo reluta em crescer. Os altos funcionários do Capital entenderam mais ou menos isso e se apressam, graças ao jogo de cassino mundial, em aumentar substancialmente a sua parte do bolo (10 a 20% do PIB a mais), antes que o bloqueio não seja total. Isso se traduz pelas remunerações escandalosas dos responsáveis políticos e econômicos com seus prêmios, bônus, stock options, paraquedas dourados [golden handshakes] e outros aumentos. Para a imensa maioria, o aumento muito baixo no contracheque não compensa os efeitos negativos do crescimento (despesas de saúde, estresse, inconvenientes de todos os tipos).

Intoxicada por suas derrotas sucessivas no passado, a esquerda “responsável” não pode senão se refugiar em um liberal-socialismo miserabilista. O famoso trickle-down effect, a difusão a todos dos benefícios do crescimento, se degrada em “efeito ampulheta” [effect sablier]. Como há mais ricos e eles são cada vez mais ricos, é preciso também que haja mais lavadores de carros, garçons, entregadores, faxineiros e guardas privados para se proteger dos pobres cada vez mais numerosos. É o socialismo reduzido às migalhas… O crescimento dos Trinta Gloriosos havia sido impulsionado pelas exportações; o dos trinta medíocres que se seguiram puderam se manter mal ou bem graças ao endividamento fenomenal das famílias e dos Estados.

Mesmo no Sul, a armadilha do bolo funcionou. Ela é chamada de desenvolvimento. O projeto desenvolvimentista lançado pelo famoso discurso do presidente Truman sobre o ponto 4 do Estado e da União, em 20 de janeiro de 1949, também visava a substituir a revolução social pelo crescimento econômico graças à transferência tecnológica. Ele andou bem com a revolução verde nos anos sessenta. A Índia, secularmente deficitária, tornou-se exportadora de cereais. As reformas agrárias foram evitadas, limitadas ou desviadas.

Hoje a festa acabou; não existem sequer mais essas margens de manobra. O bolo não pode mais crescer. Mais ainda (e sabemos disso há bastante tempo, mesmo que nos recusemos a admitir), ele não deve crescer. A única possibilidade para escapar à pauperização do Norte, assim como do Sul, é retornar aos fundamentos do socialismo sem esquecer desta vez a natureza: partilhar o bolo de maneira justa. Em 1848, enquanto ele era de trinta a cinquenta vezes menor, Marx e também John Stuart Mill já pensavam assim! O comunismo não era para fazer o bolo crescer, já que ele era suficiente, mas para organizar de outra maneira o sistema para que todos o possuíssem conforme as suas necessidades.

É verdade que falta integrar as limitações ecológicas, a crítica marxista da modernidade permaneceu afetada por uma terrível ambiguidade[3]. A economia capitalista é criticada e denunciada, mas o crescimento das forças que ela libera é sempre classificado pela esquerda como “produtivo” (mesmo que elas sejam igualmente ou até mais destrutivas). [Charles] Péguy já escrevia: “É até um espetáculo engraçado ver como os nossos socialistas anticristãos, particularmente anticatólicos, indiferentes à contradição, incensam o mesmo mundo sob o nome de moderno e o criticam sob o nome de burguês e de capitalista” [Péguy, 107]. No final, esse crescimento, visto sob o ângulo da produção/emprego/consumo leva o crédito de todos os benefícios mesmo se, visto sob o ângulo da acumulação do capital, ele é julgado responsável de todos os flagelos: a proletarização dos trabalhadores, a sua exploração, a sua pauperização, sem falar do imperialismo, das guerras, das crises (aí contidas as ecológicas) etc. A mudança de relações de produção (na qual consiste a revolução necessária e desejada) se encontra assim reduzida a uma subversão mais ou menos violenta do estatuto dos proprietários direto na repartição dos frutos do crescimento. A partir daí, pode-se certamente entrar em minúcias irrelevantes de seu conteúdo, mas não colocar em causa o seu princípio.

Crescendo, o bolo torna-se cada vez mais tóxico – a taxa de crescimento da frustração, seguindo a fórmula de Ivan Illich, excedendo amplamente a da produção – e será necessário mudar a receita. Quanto mais ele crescia, mais ele estava envenenado no sentido próprio e no figurado, tanto no Norte como no Sul. Pesticidas, fertilizantes químicos e outras poluições intoxicavam as populações, as outras espécies e a própria terra, enquanto que as desigualdades e as injustiças se agravam.

Para resolver os dramáticos problemas sociais e ao mesmo tempo salvar o planeta, é preciso inventar a receita de um belo bolo com produtos naturais, de um tamanho razoável para que os nossos filhos e os nossos netos possam continuar a refazê-lo e, sobretudo, convém partilhá-lo de maneira equitativa. Os pedaços talvez não sejam tão grandes a ponto de nos tornar obesos, mas a alegria estará no encontro. O decrescimento é a única receita para sair positiva e duravelmente da crise[4].

Bibliografia

  • Blanc Christian, 2006, La croissance ou le chaos, Odile Jacob.
  • Castoriadis Cornelius, 2008, Débat avec R. Legros, in Bachofen Blaise, Elbaz Sion, Poirier Nicolas (sous la dir. de), Cornelius Castoriadis, Réinventer l’autonomie. Éditions du Sandre, Paris.
  • Guaino Henri, 2006, « Pour une croissance durable », La Croix, 23 octobre.
  • Gorz André, 1974, A ecologia deles e a nossa, Les Temps Modernes.
  • Latouche Serge, 2007, Petit traité de décroissance sereine, Mille et une nuits.
  • Martin Hervé René, 2007, Éloge de la simplicité volontaire, Flammarion.
  • Michéa Jean-Claude, 2008, La double pensée. Retour sur la question libérale, Champs essais, Flammarion.
  • Péguy Charles, 1907, « De la situation faite au parti intellectuel dans le monde moderne », Cahiers de la Quinzaine.

Notas

  1. Esses oito R são agora 10, Cf. a nota 3.
  2. N.T.: Billancourt é uma comuna nos subúrbios de Paris, onde ficavam plantas de várias indústrias francesas, como a Renault. “Não é preciso desesperar Billancourt” é uma frase famosa (na França), dita originalmente por Sartre, nos anos 1950, querendo dizer que não é preciso dizer a verdade aos proletários para não alarmá-los.
  3. É lamentável, e talvez trágico, que a relação entre Serguei Podolinsky (1850-1891), esse aristocrata e cientista ucraniano exilado na França, e Karl Marx tenha sido curta. Esse genial precursor da economia ecológica tentava, de fato, conciliar o pensamento socialista e a segunda lei da termodinâmica e fazer a síntese entre Marx, Darwin e Carnot. Sem tempo e pouco interessado por questões científicas, Marx cometeu o indubitável erro de confiar ao seu amigo Engels a avaliação do dossiê. Imbuído da concepção positivista e mecanicista da ciência, este último simplesmente não compreendeu as questões da segunda lei da termodinâmica. Por outro lado, ele viu bem os perigos que o “valor energia” poderia fazer correr a teoria da mais-valia. Concluiu que não havia interesse nas pesquisas de Podolinsky. Não é absurdo pensar que, se o encontro tivesse ocorrido, muitos dos impasses do socialismo teriam sido evitados.
  4. O nosso programa “eleitoral” de transição em 10 pontos se propõe a ir em direção a esse objetivo. Esses 10 R do programa reformista são: 1) Reencontrar uma pegada ecológica sustentável. 2) Reduzir o transporte internalizando os custos por eco-taxas apropriadas. 3) Relocalizar as atividades. 4) Restaurar a agricultura camponesa. 5) Rearranjar os ganhos de produtividade reduzindo o tempo de trabalho e criando emprego. 6) Retomar a “produção” de bens relacionais. 7) Reduzir o desperdício de energia do fator 4. 8) Restringir fortemente o espaço publicitário. 9) Reorientar a pesquisa técnico-científica. 10) Reapropriar-se do dinheiro.


Tradução: Reticente

  • Tradução e revisão concluídas em 9 de maio de 2017.
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