O suicídio do espetáculo
O ritual do ano social queria que se passasse das greves de primavera aos festivais de verão. É essa política de supressão do social pelo cultural, pelo festivo e pelo espetacular, que foi vencida este ano pelo movimento dos intermitentes, e com ela a estratégia de desmobilização que tinha ainda tão bem funcionado na primavera passada. A greve rompeu a muro das férias e, sejam quais forem seus conteúdos e seu modo de ação, este é um acontecimento.
O acontecimento é também que seja a fração inútil, a fração produtora de signos inúteis, e não os ferroviários ou os professores, que sejam os atores. As “vítimas” da greve também mudaram: não são mais os usuários do metrô ou da SNCF[1], mas os usuários do supérfluo e dos bens imateriais de consumo. E isso faz politicamente muito mais mal, já que isso toca o contrato e a imagem simbólica de uma sociedade. É interessante ver o patrimônio cultural degenerar de repente em parte maldita, da qual não se sabe como se livrar.
E não saberíamos ser mais agradecidos ao próprio poder por ter criado, por suas infelizes iniciativas, essa situação, por ter fracassado sem querer na lavagem cerebral geral, nessa orgia de “criação” e de consumo cultural da qual todos somos reféns e cúmplices (mesmo que os espectadores “colocados como reféns” colocaram-se por vezes, tomados pela síndrome de Estocolmo, do lado dos grevistas). Não podemos nos alegrar dessa cegueira do poder, que evidentemente não compreendeu o efeito colossal do desvio dos conflitos pelo lazer e pela cultura (ainda nos anos 80, Nicollini, em Roma, conseguiu evitar o terrorismo pela realização de festas – entre nós, isso o fez Jack Lang, que explodiu a bomba ao invés de desarmá-la).
De todo modo, não se pode fazer mais que apreciar essa cura, mesmo que efêmera, da desintoxicação.
É então da parte do Estado que poderíamos falar de suicídio, por desconhecimento de seus próprios interesses. No entanto, os intermitentes é que foram acusados de ser “suicidas”. E, de certo modo, eles o são, mas deliberadamente; se trata de uma coisa completamente diferente de se dar um tiro no pé. Não importa qual medida importante implica uma dimensão suicida, isso é pôr em questão seus próprios privilégios.
Maio de 68 foi já um ato de autodestruição da cultura, do saber e do privilégio universitário. Esse saber, cuja troca tinha se tornado impossível, tanto sobre o plano econômico e profissional (mais oportunidades) quanto na relação de saber e em sua finalidade, é o que se afunda em 68. Era esse o acontecimento original, que justamente a greve geral, a greve “útil”, veio a desarmar, mas que conseguiu criar uma fratura simbólica, além da fratura social. O que lhe aconteceu politicamente não é determinante – não se julga um acontecimento como esse por suas consequências “úteis”. Mas quando não existe esse tipo de questão, desqualificada sob o termo infame de “suicida”, não existe mais acontecimento, e tudo entra no jogo.
Trata-se então – e o fato é muito raro – de um atentado à cultura.No entanto, nossa cultura dominante é aquela da sociedade do espetáculo (transformada em uma torta da nata cultural). Esse atentado “suicida” é assim um atentado contra a sociedade do espetáculo. Justa revanche contra o espetacular – feita pelas pessoas do espetáculo. É uma fração desse mundo do espetáculo, transformado em espetacular, que por se vigiar, acaba, por um momento, nesse extermínio lento. A cultura sob ameaça da culturalidade programada e devoradora, vira-se contra si mesma.
Sabe-se que a cultura, a “verdadeira”, é mantida para nada. Ela é por sua vez inestimável (no discurso) e supérflua, sem qualquer interesse. O que sobra, em um dado momento, além de transformar em nada e de se suicidar para provar sua destruição? É sacrificando esse resíduo imutável que é a cultura que representamos um desafio ao poder, o único que pode lhe representar, já que o poder não tem verdadeiramente medo senão da morte.
Evidentemente, pode-se objetar que os intermitentes não fazem, novamente, mais que colocar no espetáculo sua recusa da sociedade do espetáculo – na linha do espetáculo integrado, segundo Debord. Assim como pode-se argumentar que terroristas do 11 de setembro não fizeram, sem o querer, mais que jogar o jogo do sistema. Sob essa perspectiva, não há mais nenhuma contestação possível, não é possível flanquear a cultura ou o poder dominante. Mas uma cumplicidade no segundo nível, onde inverso e o direito se prolongam sobre a faixa infernal da fita de Moebius – seja aquela da sociedade do espetáculo ou aquela da globalização.
A objeção é incontestável, e a situação, toda situação desse tipo é hoje em dia indecidível. Ela está ao mesmo tempo dificilmente suportável. Todos podem escolher e pegar seus lugares, tanto na ação quanto em teoria.
Notas
- ↑ N. do T.: Société Nationale des Chemins de fer Français: Sociedade Nacionais das Ferrovias Francesas. Empresa estatal francesa.
Traduzido por oceano
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