Prefácio: Ação Direta - o que é, e para que serve

De Protopia
Ir para navegação Ir para pesquisar
Receitas Para o Desastre
CrimethInc


O que é?

Este é um manual para a ação direta. Não é o único, existem milhares: qualquer guia de jardinagem é um manual para a ação direta, assim como todo livro de receitas. Qualquer ação que passa por cima de regulamentos, representantes e autoridades para alcançar diretamente um objetivo é ação direta. Numa sociedade onde o poder político, o capital financeiro e o controle social são reunidos nas mãos de uma elite, algumas formas de ação direta são, no mínimo, desencorajadas; esse livro trata particularmente dessas ações, para todos aqueles que querem tomar as rédeas da própria vida e aceitar a sua parcela na determinação do destino da humanidade.

Para os civis nascidos em cativeiro, criados como espectadores e à base de submissão, realmente a ação direta muda tudo. Na manhã em que ela se levanta para colocar um plano em andamento, ela acorda sob um sol diferente – se é que ela tenha conseguido dormir – e em um corpo diferente, atenta a cada detalhe do mundo que a cerca e possuindo poder para mudá-lo. Ela descobre que seus companheiros são dotados de imensa coragem e habilidade, capazes de enfrentar desafios monumentais e dignos de um amor apaixonado. Juntos, eles entram em uma terra estrangeira onde os resultados são incertos, mas tudo é possível e cada minuto conta.

Ação Direta versus Representação

Praticar ação direta quer dizer agir diretamente para suprir necessidades, ao invés de acreditar em representantes ou escolher opções prescritas. Atualmente o termo é comumente usado para indicar táticas ilegais de protesto que pressionam governos e corporações para que tomem certas decisões, o que essencialmente não é muito diferente de votar ou fazer doações a campanhas políticas. Mas é mais precisamente definida por toda ação que exclui os intermediários a fim de resolver problemas sem mediação.

Precisa de exemplos? Você pode doar dinheiro a uma organização de caridade, ou você pode começar seu próprio grupo de “Comida, Não Bombas” e alimentar a você mesmo e a outras pessoas famintas de uma vez. Você pode escrever uma carta raivosa ao editor de uma revista que não faz uma boa cobertura das coisas que você acha importante, ou você pode começar sua própria revista. Você pode votar num prefeito que promete começar um novo programa de ajuda aos sem-teto, ou você pode ocupar um prédio abandonado e abrir ele para pessoas em necessidade. Você pode escrever ao seu senador ou deputado, pedindo que ele se oponha a uma lei que permite o desmatamento e, se a lei passar mesmo assim, você pode ir até a floresta e parar o desmatamento sentando junto às árvores, bloqueando as estradas e destruindo o maquinário.

O oposto de ação direta é a representação. Existem muitos tipos de representação: palavras são usadas para representar ideias e experiências, os telespectadores de uma novela deixam seus medos e esperanças serem representados pelos protagonistas, o papa diz ser o representante de Deus, mas o exemplo mais conhecido atualmente pode ser encontrado no sistema eleitoral. Nessa sociedade nós somos encorajados a pensar na votação como o nosso meio primário de exercer poder e participar socialmente. Ainda assim, quer a gente vote com uma cédula para um representante político, com dinheiro para um produto de procedência corporativa, ou com seu guarda-roupa em uma cultura juvenil, votar é um ato de adiamento, no qual o votante escolhe uma pessoa, sistema ou conceito para representar os seus interesses. Esta é uma maneira, no mínimo, não confiável de exercer o poder.

Vamos comparar votação com ação direta, para mostrar as diferenças entre atividades mediadas e não mediadas em geral. Votar é uma loteria: se um candidato não é eleito, a energia que os seus eleitores gastaram para apoiá-lo é desperdiçada, já que o poder que eles estavam esperando que fosse exercido em prol deles vai para outra pessoa. Com a ação direta todos podem saber que o seu esforço trará resultados. Em contraste com qualquer tipo de petição, a ação direta garante recursos que outros não podem roubar: experiência, contatos na comunidade e o respeito relutante dos adversários, por exemplo.

A votação consolida o poder de toda uma sociedade nas mãos de alguns indivíduos; através da pura força do hábito, sem contar com os outros métodos de imposição, todos estão em uma posição de dependência. Na ação direta, as pessoas utilizam seus próprios recursos e capacidades, descobrindo no processo quais são eles e o que podem alcançar.

Votar força todos num movimento a tentar concordar sobre uma plataforma: coalizões discordam sobre quais acordos fazer, cada facção insistindo que o seu jeito é o melhor e que os outros estão estragando tudo por não seguirem o seu programa. Muita energia é desperdiçada nestas disputas e recriminações. Na ação direta, não é necessário um consenso geral; grupos diferentes aplicam táticas diferentes de acordo com o que eles acreditam e com o que se sentem confortáveis em fazer, sempre atentos para complementar os esforços dos outros. Pessoas envolvidas em diferentes tipos de ação direta não têm necessidade de discutir, a não ser quer elas realmente tenham objetivos conflitantes, ou porque anos de votação os tenham ensinado a lutar contra com qualquer um que não pense exatamente como eles.

Conflitos sobre as votações constantemente distraem as pessoas dos verdadeiros problemas, uma vez que elas são contagiadas pelo drama de um partido contra outro, de um candidato contra o outro e de uma proposta contra a outra. Com a ação direta, os problemas são levantados, trabalhados especificamente e, frequentemente, resolvidos.

Votar só é possível em época de eleições. A ação direta pode ser aplicada sempre que se quiser. Votar é útil apenas para tópicos que estão nos programas de governo dos políticos, enquanto a ação direta pode ser aplicada para todos os aspectos da sua vida, em qualquer parte do mundo que você viva. A ação direta faz melhor uso de recursos que a votação, campanha ou solicitação: um indivíduo pode alcançar, com um dólar, um objetivo que custaria a um coletivo dez dólares, a uma organização não-governamental cem dólares, a uma corporação mil dólares, e ao estado dez mil dólares.

A votação é glorificada como uma manifestação de nossa suposta liberdade. Isso não é liberdade, liberdade é poder escolher as escolhas em primeiro lugar, e não escolher entre Pepsi e Coca-Cola. Ação direta é a coisa real. Você cria o plano, você cria as opções, o céu é o limite. Por fim, não quer dizer que as estratégias de votar e de ação direta não possam ser usadas juntas. Uma não cancela a outra. O problema é que tantas pessoas pensam em votar como sua principal maneira de exercer poder político e social, que um número desproporcional de tempo e energia é focado no sistema eleitoral enquanto outras oportunidades de efetuar mudanças são desperdiçadas. Por meses e meses antes das eleições, todo mundo discute sobre o voto, em qual candidato votar, se votar ou não, quando na verdade votar leva menos de uma hora. Vote ou não, mas siga adiante! Lembre sempre de todos os outros caminhos pelos quais pode fazer com que sua voz seja ouvida. Esse livro é para as pessoas que estão prontas para fazer uso dele.

E para que serve?

A ação direta não precisa ser popular para ser eficiente. O objetivo da ação direta é a própria ação, não se importando com suposta opinião pública ou com a cobertura da mídia. Aqueles que cresceram dentro da Monocultura da Democracia, acreditando que a votação é o começo e o fim da participação social, constantemente presumem que o único objetivo possível para qualquer atividade política é o de converter outros para uma posição de modo a constituir um eleitorado; consequentemente, eles falham em reconhecer a vasta gama de fins para os quais a ação direta pode servir. Estas são as pessoas que são sempre rápidas em apontar como o grafite destrói a imagem do “movimento”, ou como projetos artísticos pessoais são irrelevantes para as necessidades do “povo”. Mas ajudar a “converter as massas” é apenas uma das possíveis finalidades da ação direta. Vamos examinar algumas outras.


A ação direta pode simplesmente resolver um problema isolado: um grupo de moradores de uma mesma casa precisa comer, então comida é plantada, retirada do lixo ou roubada; uma propaganda é considerada ofensiva, então é arrancada ou alterada; um grupo de amigos quer aprender mais sobre a literatura latino-americana, então um clube de leitura é criado. A ação direta pode ser a forma de um pequeno grupo dar sua contribuição para a comunidade: as pessoas precisam ser informadas que um estuprador está agindo na vizinhança, então panfletos são feitos e distribuídos; a polícia está fora de controle, então um grupo de vigias comunitários é iniciado para avisar da presença policial. Ação direta pode ser uma oportunidade para pequenos grupos se acostumarem a trabalhar juntos em grandes redes: o senhorio se recusa a consertar os apartamentos, então um grupo de moradores se une para organizar uma greve no pagamento dos aluguéis.


Ação direta pode ser usada para influenciar a opinião de toda uma nação, mas também pode ser aplicada em um pequeno e específico grupo de pessoas, que pode ser mais facilmente influenciado: o grafite nas ruas pode não ser levado a sério por adultos da classe média, mas algumas das suas crianças o enxergam como uma revelação. A ação direta pode ser direcionada para o benefício de indivíduos isolados, ao invés de tentar atingir todo cidadão comum: um pôster colado com farinha no qual se lê “É UMA PENA QUE CONCRETO NÃO QUEIME” pode não ser vastamente apreciado, mas vai ajudar aqueles que compartilham deste sentimento a sentir que não estão totalmente sozinhos e loucos, e talvez os inspire a transformar o seu rancor silencioso em expressivos projetos pessoais.


Ação direta pode dar visibilidade para um grupo ou para um ponto de vista que de outra forma não seria representado, ou enfatizar a possibilidade de um ponto de vista que aqueles no poder iriam negar: um jornal independente espalha as notícias que a mídia corporativa não dividiria, assim como janelas de corporações quebradas provam que, apesar do que os especialistas dizem, nem todos estão felizes com o capitalismo. Ação direta pode demonstrar que condições psicológicas e sociais que parecem inevitáveis podem ser alteradas: uma festa de rua não-autorizada que transforma um bairro comercial em um espaço grátis e festivo mostra que podemos decidir a função de qualquer espaço. Ação direta pode fazer a nossa vida menos previsível, mais mágica e excitante ou ao menos cômica, tanto para os espectadores ocasionais como para os participantes. Quanto aos negócios, como de costume, são opressivos e depressivos, somente interrompê-los já é um serviço prestado a todos.


Popular ou não, a ação direta pode manter assuntos importantes nas manchetes e nas conversas privadas: sabotar represas que destroem o meio ambiente pode diminuir seus efeitos ecológicos, não importando se as pessoas aprovam ou não a sabotagem em si. Ação direta pode dar a um grupo influência social e política: na década de 1980, okupadores holandeses, enfrentando a ameaça de desocupação, demonstraram o seu poder com uma campanha direta de assédio e vandalismo que custou a Amsterdã sua chance de sediar os Jogos Olímpicos, e lhes deu uma vantagem para barganhar com a cidade por seus lares. A ação direta pode proporcionar um obstáculo: após as demonstrações durante o encontro da Organização Mundial do Comércio em Seatle, somente o Qatar quis sediar a próxima reunião da OMC. Pessoas que normalmente não se oporiam ao seu governo entrar à guerra talvez o façam se souberem que a guerra vai resultar em maciças demonstrações que irão prejudicar os seus negócios e interferir no cotidiano.


A ação direta pode inibir as más ações das corporações se lhes infligir perdas financeiras: ativistas em prol dos direitos animais colocaram fora do mercado diversas corporações comerciantes de peles usando vandalismo, obstrução e protestos. A ação direta pode descredibilizar ou desabilitar organizações malignas se as conectar, no subconsciente popular, à violência e a problemas: se toda vez que um partido racista tentar sediar uma reunião ela terminar em brigas de rua, nenhuma cidade permitirá que eles se encontrem abertamente e poucos convertidos engrossarão as suas fileiras. A ação direta pode polarizar adversários: quando alguém não consegue persuadir ou ao menos coexistir com um oponente, uma campanha de provocações e de interferências pode conduzi-los a um extremismo paranóico que irá afastá-los de todas as outras pessoas.


A ação direta pode definir a atmosfera de qualquer evento: se faixas estiverem sendo esticadas e rádios piratas estiverem transmitindo durante toda a semana, todos esperarão que a conferência de comércio corporativo e a demonstração de repúdio anarquista sejam memoráveis ― e essa expectativa vai ajudar a si mesma a se tornar real. A ação direta pode demonstrar táticas que outras pessoas poderão usar e copiar; durante anos estas táticas podem ser úteis apenas para minorias, até que durante uma crise elas se tornam indispensáveis para todos. Quando a crise chegar, vão estar em melhor situação aqueles que vêm praticando e aperfeiçoando essas habilidades, e todos os outros terão ao menos ouvido falar nelas.


A ação direta pode salvar vidas e devolver a dignidade àqueles que a protagonizam pois torna possível para eles confrontar a injustiça diretamente, em ataques de libertação animal, por exemplo. Pode ser a melhor forma de terapia, ajudar aqueles que agem para curar sentimentos de tédio, desesperança e impotência. Quando não se faz nada, tudo parece impossível; uma vez engajado em alguma atividade, fica mais fácil de imaginar o que mais é possível e de reconhecer oportunidades à medida que elas surgem.


A ação direta oferece a chance de tirar proveito de suas convicções e desejos como a experiência de vida que, por direito, deveriam ser. Não fique apenas pensando sobre algo, não fique apenas falando sobre algo e, pelo amor de deus, não fique só reclamando ― faça alguma coisa! Ação direta é um meio de chegar ao saudável hábito agir ao invés de ficar apenas olhando: todo impulso que leve até a ação direta é um incentivo para a ocorrência de mais ações. É nessa sociedade passiva e paralisada que nós desesperadamente temos que cultivar, em nós mesmos, e incentivar, nos outros, os hábitos de engajamento e participação. Como eles dizem, a ação direta é que consegue as coisas.

Ajuda Mútua e Buscar as Pessoas

Qualquer pessoa com habilidades na prática de ação direta ganha ao dividi-las com outros. Isso é o oposto de “converter” pessoas: isso dá às pessoas o poder de serem elas mesmas, não é uma tentativa de transformar as pessoas em cópias de alguém. Quanto mais capaz cada indivíduo e grupo for, mais eles podem oferecer uns aos outros, e mais capazes todos estarão para promover igualdade. A disseminação da prática de ação direta cria relações de coexistência e apoio mútuo, além de enfraquecer as relações hierárquicas e a opressão: quando as pessoas estão igualmente informadas, equipadas e familiarizadas com a tomada de iniciativa, elas tem mais interesse em aprenderem a se dar bem, e a liberdade e a igualdade necessariamente vêm atrás.


Anarquistas e outros partidários da ação direta não dão ordens nem oferecem liderança: ação direta é um substantivo seguido de um adjetivo, não um verbo seguido por um objeto! Ao invés disso, eles mostram opções ao agirem de maneira autônoma, tendo o cuidado de disponibilizar aos outros qualquer conhecimento e recurso obtido através da experiência ― este livro sendo um exemplo disto.


Muitos dos que tentam educar os outros sobre injustiças cometem o erro de prover as pessoas com grande quantidade de material sem oferecer idéias sobre o que fazer. Sobrecarregadas com fatos, figuras e más notícias a maioria das pessoas acha ainda mais difícil agir, não mais fácil; portanto tais tentativas de conscientização com a intenção provocar mudanças são constantemente auto-sabotadas. Seria sábio aplicar as seguintes técnicas na hora de informar as pessoas: para cada assunto que você apresentar, gaste a mesma quantidade de tempo e energia apresentando habilidades, sugestões e oportunidades para a ação, do que apresentando a informação e o contexto. Uma regra semelhante é que quanto mais parecida a situação de uma pessoa for com a sua, mais ela ou ele pode ganhar ao ouvir as suas sugestões e perspectivas; e quanto mais as suas histórias de vida divergirem, mais você vai se beneficiar de ouvir e aprender, ao invés de tentar explicar algo fora do contexto que você conhece.


Também ocorre que algumas pessoas que praticam a ação direta, ansiosos para saírem debaixo da bota de seus opressores, se afundam na luta de maneira tão profunda que ninguém mais pode se juntar a eles, para o seu próprio infortúnio. Ao considerar uma tática, é importante se perguntar até que nível ela torna as outras pessoas capazes de agir, ao invés de apenas deixá-las imobilizadas como espectadores. Por exemplo, o bloco negro nos protestos contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle em 1999, apresentou um modelo que passou a ser usado várias vezes com grande impacto, enquanto as táticas do Weather Underground nos anos 70 atingiram feitos notáveis, mas falharam em inspirar outras pessoas a se tornarem ativas. A longo prazo, as táticas mais poderosas são aquelas que inspiram e equipam outras pessoas para se juntarem à luta. É importante definir a velocidade de evolução de uma luta para que novas pessoas se envolvam em uma taxa maior do que a de participantes que são paralisados pela repressão: é assim que o impulso que dá início às revoluções é criado. Os seus inimigos lá em cima só querem isolar você de todos outros que estão bravos pelas mesmas razões. Faça questão de se manter acessível e conectado com outros, de modo que eles possam vir com você, se assim desejarem, quando começar sua jornada para um novo mundo.

A diversidade de táticas

Comunidades que praticam a ação direta são constantemente perturbadas por conflitos sobre que táticas são mais apropriadas e eficientes. Normalmente esses debates são impossíveis de serem resolvidos, e isso é uma coisa boa. Ao invés disso, na medida do possível, as atividades daqueles que empregam métodos diferentes e mesmo daqueles que buscam objetivos distintos devem ser integradas de maneira que gerem benefício mútuo.


Aceitar a diversidade de táticas provê para toda diversidade de verdadeiros seres humanos. Todo indivíduo tem uma história de vida distinta e, consequentemente, considera libertadoras e vê sentido em diferentes atividades. Insistir que todos devem adotar a mesma abordagem é prova de arrogância e falta de visão ― esse tipo de atitude parte do pressuposto que você tem capacidade de decidir para outras pessoas ― além de não ser realista: qualquer estratégia que exija que todos pensem e ajam da mesma maneira está destinada ao fracasso, pois seres humanos não são tão simples ou submissos. Críticos constantemente alegam que as táticas as quais eles se opõem irão alienar participantes em potencial, mas quanto mais diversificadas forem as táticas usadas por um movimento, maior será o número de pessoas que poderão se identificar com alguma das diferentes táticas empregadas. Pode ser necessário para grupos que aplicam diferentes táticas se distanciarem perante os olhos do público, mas eles não precisam se colocar de maneira antagônica.


Um movimento que usa várias táticas é capaz de se adaptar no caso de mudança de contexto. Um movimento destes é um laboratório no qual vários métodos podem ser testados; os que funcionarem serão facilmente identificados, e irão, naturalmente, se tornar populares. Como nós ainda não conseguimos derrotar o capitalismo de uma vez por todas por nenhum método, todos ainda valem a tentativa, pois algum pode funcionar. Dessa maneira, aqueles que usam métodos diferentes daqueles que você favorece estão lhe fazendo um favor ao poupar-lhe o trabalho de testar os métodos você mesmo.


Táticas distintas, aplicadas conjuntamente, podem se complementar. Da mesma maneira que os métodos mais agressivos de Malcolm X forçaram brancos privilegiados a levarem a sério a desobediência civil não-violenta de Martin Luther King, Jr., uma combinação de táticas que vão de acessíveis e participativas a militantes e controversas podem, simultaneamente, chamar atenção para a luta, oferecer oportunidades para as pessoas se envolverem em seu próprio ritmo e fornecer influência em diversos níveis àqueles que fazem parte da luta.


Honrar a diversidade de táticas significa frear o desejo de atacar aqueles cujos métodos escolhidos parecem ser ineficazes para você, e ao invés disso se focar nos elementos que faltam que você poderia adicionar para tornar os esforços de todos mais eficientes. Portanto, essa diversidade reformula a questão da estratégia em termos de responsabilidade pessoal: em todas conjunturas a pergunta não é mais o que outra pessoa deve fazer, mas sim o que você pode fazer.


A importância de uma diversidade de táticas não se aplica somente quando é conveniente para você. Não alegue acreditar na diversidade de táticas apenas para depois argumentar que ― apenas neste caso em particular, é claro ― outras pessoas devem priorizar os seus métodos ao invés dos delas. Reconhecer o valor da diversidade de táticas significa levar em conta que outros irão tomar decisões diferentes baseadas nas suas distintas perspectivas, e respeitar isso mesmo quando as decisões deles deixarem você perplexo.


Aceitar a legitimidade da diversidade de táticas significa abandonar uma linha de pensamento competitiva na qual existe apenas um jeito certo de fazer as coisas para um modo de pensar mais inclusivo e cheio de nuances. Isso desafia as hierarquias de valor e de poder, diminui abstrações rígidas como “violência” e “moralidade”.


Finalmente, respeito por táticas diversas torna grupos distintos capazes de construir uma solidariedade duradoura. Tal solidariedade deve ser fundada sobre um compromisso a coexistir e colaborar em harmonia, ao invés de exigências limitadoras para uma unidade.


Assim como alguém de visão curta rejeita táticas que não sejam a sua afirmando que são ineficientes, outros sentem a necessidade de competir para determinar quais táticas são as mais dedicadas ou mais impressionantes. Mas os triunfos mais dramáticos da ação direta militante só são possíveis graças ao apoio de pessoas que aplicam abordagens mais convencionais, e vice-versa. É importante que não vejamos as táticas como partes de uma hierarquia de valores, que vai de seguras e insignificantes a perigosas e gloriosas, mas sim como um ecossistema no qual todas têm um papel fundamental. Como revolucionários, nosso papel nesse ecossistema é criar uma harmonia que ajude tantos os nossos esforços quanto os dos outros, mesmo que alguns deles queiram perder tempo competindo conosco pelo prêmio de "estar certo" ou "ser mais ousado". Nenhuma tática pode ser eficiente sozinha; todas podem ser eficientes juntas.

Legal e Ilegal

Às vezes ação direta significa quebrar a lei. De fato, ação direta é uma forma de se renegociar as leis, tanto escritas quanto não-escritas. Quando as pessoas agem de acordo com a consciência ao invés de por convenção, quando elas transgridem deliberadamente e em massa, a própria realidade pode ser refeita. Isso não quer dizer que você vai safar ao quebrar uma lei somente por deixar de acreditar nela; mas se todo mundo quebrar ela com você, as dinâmicas mudam.


Os agentes protetores da lei estão à mercê de muitos fatores ao mesmo tempo. O seu emprego, é claro, é proteger as leis que estão nos livros, protegendo o poder e a propriedade e mantendo os recursos humanos e financeiros fluindo para a indústria judicial e para o complexo prisonal-industrial. Ao mesmo tempo, até algum ponto, eles estão à mercê da opinião pública: o público, ou pelo menos as parcelas privilegiadas dele, tem que acreditar que eles estão "fazendo o seu trabalho", mas sem exageros. Eles também são limitados por logísticas simples: se cinquenta pessoas saem correndo de um supermercado sem pagar ao mesmo tempo, um único policial só pode esperar prender uma, ou no máximo duas pessoas. Acima de tudo, esses agentes são apenas humanos (e isso é lisonjeá-los): eles têm egos frágeis para manter tranquilos, eles podem demorar para absorver informações, e a sua infraestrutura é frequentemente mal organizada e ineficiente. É possível distraí-los, surpreendê-los, até mesmo desmoralizá-los.


Sempre que você pensar em quebrar a lei, leve em consideração todos os fatores que irão influenciar a resposta da polícia. Legal e ilegal não são características imutáveis do cosmos ― elas são tão fluidas quanto os contextos: não é contra a lei se você não for pego, como bem sabe toda criança e presidente de corporação. Um protesto não-autorizado que resulta em vinte prisões quando posto em prática por vinte pessoas pode acabar sem nenhum obstáculo se for posto em prática por duzentas pessoas; ao mesmo tempo, vinte pessoas com um plano e a certeza de que ele pode ser levado a cabo podem facilmente alcançar objetivos que duzentas pessoas, menos preparadas, jamais poderiam. Basicamente, quando se trata de ação direta, as leis são imateriais: se o que você está fazendo é realmente subversivo, as autoridades tentarão impedi-lo quer isso seja ilegal ou não ― se eles puderem. Seus números, sua coragem, sua preparação e visão, a sua dedicação em apoiar um ao outro, e acima de tudo a sua convicção de que o que você está fazendo é possível: essas são as suas licenças, suas garantias, e você não precisa de outras.


"Mas e se eu for pego?" Filho-da-mãe, você já foi pego. É melhor se perguntar: e se eu me libertar?


Quando você participa de atividades perigosas, é importante não ir além do que você acredita estar pronto para ir: se você se ferir, for preso ou se encrencar de outra forma ao se envolver em riscos para os quais você não está emocionalmente preparado, os efeitos podem ser devastadores. É muito melhor que você comece devagar e de forma conservadora, construindo um envolvimento sustentável com projetos de ação direta que poderão durar por uma vida, do que sair correndo para a ação com um abandono total, ter uma experiência ruim, e nunca mais querer saber desse tipo de atividade. Acerte o seu passo e sempre pare quando estiver em vantagem, de forma que você possa aprender e desenvolver seus instintos num ritmo seguro. Acredite ou não, existem pessoas no auge da sua vida que lutaram por toda sua vida na guerra contra o capitalismo sem jamais serem pegos. Vamos desafiar a nós mesmos e ao mundo, vamos correr riscos e empurrar limites, mas vamos fazê-lo com consciência e cuidadosamente, como parte de um processo a longo prazo, para que as experiências que ganhamos não sejam desperdiçadas!


Um dia, quando o conflito entre as pessoas e o poder se aproximar do seu clímax, tudo que fizermos será ilegal; então, talvez, a coragem e a cooperação vencerão sobre o medo e a tirania, e nós nos libertaremos da lei de uma vez por todas. Enquanto isso, toda instância de ação direta, por mais humilde que seja, é um microcosmo desse momento decisivo, e uma semente em potencial da qual ele pode crescer.


Alimentando uma Comunidade de Ação Direta

Embora nada seja tão simples, vamos postular que há quatro elementos essenciais que devem estar presentes para uma comunidade se tornar consciente de seu próprio poder e adquirir o hábito de usá-lo deliberadamente. Primeiro, pelo menos um punhado de indivíduos devem investir na ação direta, na ajuda mútua e na mudança social revolucionária como projetos de vida. É preciso a fé, o consumo e o trabalho de turno integral de milhões de pessoas para manter o esquema que garante a servidão, escassez e alienação. Sempre que alguns de nós param de investir na perpetuação desse sistema e, ao invés disso, fazem uso dos nossos recursos para criar um espaço fora da sua ditadura, coisas maravilhosas podem acontecer.


Em segundo lugar, a ação direta deve ser empregada para prover as necessidades básicas das pessoas de uma forma que promova a auto-confiança e construa redes de cooperação e de confiança. Isso pode significar servir refeições de graça no parque, ou impedir à força um despejo, ou organizar shows e eventos sociais radicais ― a necessidade de entretenimento e camaradaria não é menos fundamental que a necessidade de comida a moradia. Quanto mais as pessoas suprirem suas necessidades diretamente e em conjunto, menos elas precisam do sistema capitalista e das soluções condicionadas que ele oferece ― e mais elas podem investir em construir alternativas a ele.


Em terceiro lugar, o poder da ação direta deve ser demonstrado de maneira empolgante, acessível, participativa. Ao invés de deixarmos a ação direta se tornar a especialidade de uma subcultura ou de uma classe de especialistas, aqueles que apreciam o seu valor devem arrumar oportunidades para pessoas de todos os tipos participarem, começando nas comunidades que lhe são mais familiares. Todos envolvidos em tais demonstrações devem ter experiências fortalecedoras que indicam a possibilidade de um modo de vida completamente diferente. Para que isto ocorra, o caráter de toda demonstração deve ser ditado pelas necessidades e circunstâncias daqueles que participarão: uma turma de estudantes do ensino médio, rebeldes e entediados, pode descobrir o seu poder coletivo ao saírem todos juntos da sala de aula, enquanto os moradores de um bairro podem ter uma revelação similar ao cultivarem um jardim coletivo. Todos eventos e contextos estão prontos para a conversação em ação direta participativa, por mais repressivos que eles pareçam: um discurso numa cerimônia pomposa pode rapidamente ser transformado em um furacão de discussão criativa, assim como uma multidão de consumidores dóceis em um show podem ocupar as ruas num protesto não-autorizado ― tudo que é preciso são alguns indivíduos se apropriem de uma possibilidade até então impensável mas há muito desejada de uma forma que seja contagiosa. Mas não basta que essas demonstrações sejam eventos isolados: deve ser fácil para aqueles que se sentirem inspirados por elas se conectarem a projetos correntes e a comunidades nas quais eles possam dar substância às suas novas visões.


Finalmente, deve-se criar uma atmosfera que provoque curiosidade, construa um impulso e mantenha a moral. Onde quer que as pessoas vão, devem haver provas de que algo está acontecendo, que grandes mudanças estão armazenadas. O assunto da ação direta, por mais controverso que seja, deve estar na ponta de todas as línguas, e a sua substância riscada em toda parede e empregada em todo local de trabalho. Especulações loucas, rumores sussurrados, convites secretos, cruzadas apaixonadas, triunfos épicos, surpresas, suspense, drama, aventura: isso é o que faz as revoluções, e sem eles seria impossível romper as correntes entre o medo e o desejo.


Apesar das suas melhores tentativas, haverão períodos quando o impulso morre e parece que você está perdendo o terreno que conquistou. Durante uma fase de declínio da atividade, não entre em pânico nem perca a esperança. Se recomponha, aceite como parte do ciclo da vida; irá passar. Aguente com as outras pessoas que ficaram, focando-se em projetos que valham a pena, que vocês possam realizar sem uma multidão ao seu redor. Use estes períodos para consolidar o que vocês aprenderam e construíram, e para desenvolver novas relações e competências para que você esteja pronto para levar as coisas ainda mais longe quando as coisas voltarem a aquecer ― como certamente acontecerá.


Não deixe ninguém lhe dizer que nada vai mudar. Revoluções sempre acontecem, isso é tão certo quanto o fato de que a Terra gira. A única questão é se participamos delas inconscientemente, lavando nossas mãos da responsabilidade pelas escolhas que fazemos, ou deliberadamente, transformando nossos sonhos em realidade a cada passo.


Crimethinc.png   Este texto foi originalmente publicado por CrimethInc.


Textos

A | B | C | D | E | F | G | H | I | J | K | L | M | N | O | P | Q | R | S | T | U | V | W | X | Y | Z

es:Acción Directa: Qué es, y para qué sirve (Prefacio)