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Ingredientes

  • Um evento público
  • Um plano secreto

Instruções

Toda a indústria do entretenimento, incluindo as cenas do punk underground e do hip hop são basicamente uma distração, ou ao melhor, uma válvula de escape: tanto se estamos protelando anseios por prazer e por vontade de ficar próximos até a noite de quinta-feira no bar, ou canalizando raiva e engenhosidade em músicas folclóricas próprias ao invés de ataques frontais contra a polícia, essas pequenas oportunidades para divertimento e saídas para a criatividade nos mantém suficientemente satisfeitos que acabamos não fazendo nada louco demais – como demandando excitamento e auto-determinação em todos os momentos de nossas vidas.

Ao menos essa é uma versão da história. A outra acontece assim: se juntando para criar e celebrar, nós desenvolvemos uma ideia do que somos capazes, com a qual podemos levar adiante em lutas maiories para assim tomar nossas vidas de volta. De qualquer modo, é claramente insuficiente que ideias subversivas e movimentos de dança fiquem sempre em bares e porões. Será que haveria um jeito de liberá-los desses confins? De raptar os breves momentos de vida autêntica que somos permitidos e virá-los contra o status quo que os circunscreve?

Muita energia e expectativa são investidas nesses momentos; pessoas que acham suas vidas entediantes e sem sentido se preparam para concertos e festas com semanas de antecedência, e com toda a irreverência e a sensação de possibilidades ilimitadas como quando os festivais pagãos e religiosos uma vez ocasionaram. Para o revolucionário mais duro, isso pode parecer patético; mas a emoção e o excitamento em si são autênticos o suficiente, faltando somente que sejam redirecionados para um engajamente subversivo e libertador com todo o ambiente social.

Isso poderia ser incitar uma multidão para abandonar um concerto e fazer uma ação do Retome as Ruas, organizar um festival de microfone aberto para quem quiser tocar ao redor de uma fogueira - exatamente fora de uma festival de música previsivelmente alienante, ou até mesmo tornar uma comemoração de uma final de futebol em um protesto de rua em que rivais se unissem contra a polícia. Antes do que lutar para criar uma situação radical partindo do zero, pode-se tirar vantagem de oportunidades já existentes, adicionando quaisquer elementos que estejam faltando para detonar a bomba escondida dos acontecimentos cotidianos. Tendências rebeldes transformadas de possibilidades revolucionários em rituais institucionalizados podem ser redirecionadas de volta; o “real significado”que o punk rock, festas, piquetes, filmes de ação tiveram o tempo todo de repente se torna claro para aqueles que gostaram de participar, e os desejos inibidos através de programas de indulgência controlada são substituídos.

Vamos falar especificamente de um exemplo dos mais desafiantes disso tudo, tornar o final de um show em uma marcha espontânea. Não é fácil organizar marchas – se você anuncia publicamente, a polícia estará lá desde o princípio fazendo com que tudo seja mais difícil, e somente aqueles que são simpáticos à ação direta vão acabar aparecendo. Por outro lado, tirar vantagem de uma multidão já existente para oferecer a oportunidade de uma marcha ilícita oferece não somente o benefício da surpresa, como também pode ser a oportunidade para que muitos que não teriam se juntado à marcha, tenham uma experiência excitante e entusiasmante. A polícia não consegue vigiar todos os shows e eventos públicos procurando sinais de atividades “espontâneas” de protestos; mesmo se conseguissem, isso só iria provocar mais resistência.

Antes do evento começar, boatos podem ser difundidos de que alguma coisa vai acontecer, tentando despertar algum interesse; certifique-se de que ninguém mencione indivíduos específicos como a origem dos boatos. Além disso, ajuda muito ter a banda (ou performistas, apresentadores, etc.) dentro do esquema; eles podem anunciar que alguma coisa vai acontecer, ou fazer com que outros anunciem, ou ainda, pensando no melhor cenário possível, ao final da performance, quando se tem a atenção de todo mundo e quando um clima já foi criado, incitar todos a sair às ruas.

O momento quando as pessoas saem da área das performances é um dos momentos mais críticos: as pessoas precisam desenvolver um ímpeto coletivo, uma moral, e coesão antes que comece alguma indisposição ou antes da intervenção da polícia. Irá ajudar se um núcleo do grupo comece a tocar e distribuir atabaques e outros instrumentos musicais, assim como máscaras, faixas e etc., exatamente no momento em que as pessoas comecem a sair para a rua; em que o material comece a ser distribuído, já será difícil dizer quem originou a ação, os protejendo e ajudando todos os presentes a compartilharem um sentimento de propriedade da situação. A marcha deve começar assim que a maioria das pessoas derem um jeito de sair e se juntar ao grupo, e para fazer isso rápido é bom se as pessoas que estavam dentro saiam em massa ou ao menos sucessivamente rápido. Tenha uma rota planejada com antecedência, se possível, e de repente com alguma surpresa pelo caminho: um bairro lotado de espectadores entusiamados que possam se juntar, ou um local onde se possa armar fogos de artifício, ou fogos estabelecidos anteriormente, ou ainda um alvo digno de sofrer destruição de propriedade. Estabeleça planos de acordo com o nível de conforto que você consegue perceber dos participantes – isso deve ser uma experiência positiva para as pessoas, especialmente àquelas que nunca se imaginaram fazendo esse tipo de coisa.

Assim que alguma atividade ilegal começar, inicie uma contagem regressiva de quanto tempo a polícia irá demorar para chegar. Se eles estiverem despreparados para o evento, é grande a chance da polícia ter que esperar ao menos um pouco, mas não conte muito com isso. Certifique-se de como será a dispersão do movimento; se a marcha acaba por se separar em um local onde há poucas rotas de fuga, a polícia pode se aproveitar da oportunidade para pegar alguns retardatários, e se eles voltarem ao ponto de origem – ou mesmo se a polícia consegue determinar o que foi aquilo – eles irão revistar as pessoas com seus veículos, ou ao menos pegar suas licenças e talvez seguir seus carros. Fique certo de que qualquer pessoa que a polícia pegue não possa ser convincentemente responsabilizada por incitar uma revolta.

Existem muitas armadilhas que podem ser evitadas nesse tipo de ação; um redirecionamento de rota perdida pode acabar catastroficamente. Aqueles e aquelas que tentarem não podem enganar a multidão, nem tentar controlá-la; seu papel é apenas o de abrir a porta para outras situações, de apontar para opções que já aparecem presentes. Um redirecionamento da marcha deve finalmente transparecer como um escolha coletiva e informada por parte daqueles envolvidos; qualquer coisa diferente disso é simplesmente demagogia e manipulação. É extremamente importante que a ação não coloque em riso pessoas despreparadas – pode sim existir riscos envolvidos, mas eles precisam ser facilmente reconhecidos pelo o que são, e é necessário que seja uma escolha pessoal de cada indivíduo avaliar se está preparado ou não para encará-los. Na pior das hipóteses, aqueles que são conscientes do que estão fazendo podem formar uma zona de amortecimento entre a polícia e as pessoas mais vulneráveis e inexperientes – caso alguém tenha algum problema, que seja alguém que esteja preparado para isso. Além disso, é crucial que os sequestradores de eventos não façam inimigos, nem desrespeitem ou desviem projetos que outros dispenderam esforços bem-intencionados. Se as pessoas acabam por notar o papel que uma pessoa assume em um redirecionamento de rota, elas devem sentir apenas gratidão, e não medo ou ressentimento – ou, nesse sentido, uma admiração. Os melhores em redirecionamento são aqueles e aquelas que agem sem ser notados e sem assumir o comando sob a situação.

Relato

No dia anterior, os porcos mataram um homem preso com acusações de furto, e naquela noite uma banda de ambientalistas radicais iria se reunir novamente para fazer um show. Aquilo significava que teria um monte de jovens com inclinações anarquistas reunidos em um único lugar, e, como o show estava marcado para acabar cedo, todos ainda estariam com muita energia não descarregada. Decidimos então de tirar vantagem da oportunidade para colocar o calor na polícia, para lembrá-los que havia uma cidade inteira de pessoas que não iria ficar de braços cruzados enquanto eles assassinavam e saqueavam impunemente.

Algumas pessoas trabalharam no discurso para o público, e fizeram uma produção em massa na forma de panfletos. Outros coletaram baldes e baquetas. Enquanto outros foram em uma casa abandonada onde ainda havia uma pilha de madeiras boas para queimar, e as coletaram; mais tarde naquele dia, essas madeiras estariam fora, envoltas em um plástico para mantê-las protegidas da chuva, escondidas ao lado de uma imperceptível e esquecida porta no centro da cidade.

O show foi excessivamente caro, e somente duas bandas estavam tocando; a segunda era uma banda que era familiar para a maioria de nós por suas performances em vários protestos. Na medida em que as pessoas começaram a chegar no show (um fluxo constante delas dando seu jeito pela porta de trás, já que o preço da entrada estava intolerável), começamos a distribuir nossos panfletos que descreviam o massacre da polícia e delineavam nossa posição a respeito do assunto. Alguns de nós falaram com os membros da banda conhecida, contando sobre os eventos do dia anterior e pedindo a eles se, em sua última música, poderiam incentivar as pessoas a saírem do show e irem às ruas. Como já fizeram o mesmo em outros shows, eles rapidamente concordaram. Contudo, deixaram claro que queriam ir embora logo depois disso.

A banda de abertura tocou suas “mais pedidas”. Eles eram talentosos como nunca, mas pareceu que alguma coisa estava faltando, e a energia particularmente machulenta da presença de palco do cantor gerou um certo desconforto entre nós. De qualquer jeito, nós pensamos – não é a responsabilidade de outros fazerem coisas que nós faríamos se estivéssemos em seus lugares, é de nossa própria responsabilidade fazer as coisas nós mesmos. Então enquanto eles tocavam, baldes e baquetas eram preparados no lado de fora, e o grude cozinhado em pequenos fogareiros nos banheiros. Eles terminaram, e a segunda banda apareceu; para aqueles de nós que já haviam sido transformados por músicas revolucionárias e que agora queria provar um pouco nas ruas, pareceu que eles nunca iriam começar sua última música. Mas finalmente eles tocaram, e quando eles passaram pelas portas com o público hesitante atrás deles, nós já estávamos na rua tocando nossas baterias de plástico improvisadas e nos direcionando por uma rota que tinha sido rapidamente mapeada algumas horas atrás.

Em um primeiro momento, o público ficou meio desorientado em frente ao clube – anos frequentando concertos os ensinaram que quando o show acaba, a emoção também acaba – mas quando alguns mais atinados se juntaram a nós, os outros começaram a seguir, e de repente uma massa de centenas de pessoas invadiram as ruas. Alguns de nós caminhavam na frente, dando o nosso melhor para bater nossas baterias no tempo certo com a banda que andava logo atrás; ao redor deles estava a maior parte do público que antes estava no show. A batucada conseguiu animar o pessoal que estava mais atrás; pequenos grupos de pessoas curiosas começaram a sair dos bares para ver o que estava acontecendo. Não havíamos pensado em termos alguns vigias pelas ruas, e se fosse uma cidade maior certamente não conseguiríamos escapar de algum descuido, mesmo assim alguns de nós estavam de bici. Definitivamente ajudou o fato de que grande parte dos fãs daquela banda já possuíam anos de experiência em manifestações de rua; para eles isso poderia ser um alívio depois de uma noite de show: aquilo evocava a adrenalina de estar na rua fazendo as coisas acontecer, reivindicando o espaço da cidade apenas com a vontade de estar ali, sem qualquer permissão. À medida que prosseguíamos, alguns lokes corriam pela periferia de nós colando cartazes em paredes, cabines telefônicas e muros sobre os eventos ocorridos no dia anterior, isso para que na manhã seguinte houvesse uma explicação clara sobre o quê estávamos protestando.

Rapidamente chegamos num cruzamento importante do centro da cidade; e de repente, já havia uma pilha de lenha no meio da avenida pegando fogo. Do nada surgiram cones, cavaletes e avisos trancando as ruas – “rua interditada”, “em construção”. Figuras mascaradas com correntes começaram a cuspir fogo pela boca, outros dançavam enlouquecidamente, enquanto os bares iam esvaziando pelas pessoas que se juntavam para ver o que estava acontecendo. Todos que se aproximavam ganhavam um panfleto. Finalmente a polícia começou a aparecer – talvez doze carros no total, posicionados em duas das quatro ruas. Eles acabaram deixando duas ruas livres pela falta de viaturas suficientes para bloquear, e também não possuíam os ônibus usados em protestos para prender massas, isso em função de que aquilo era um evento totalmente inesperado. Além disso, a última coisa que eles queriam em meio aos conflitos que estavam passando, era uma enxurrada de notícias sobre uma mal-sucedida conduta policial tornando aquele evento em uma grande manifestação – eles estavam em desvantagem. Algumas pessoas nunca haviam estado em uma situação parecida com aquela, e, compreensivelmente, estavam bastante nervosas; mas outras tinham mais experiência do que muitos dos policias presentes. Parecia, se desejássemos isso, que poderíamos segurar a ocupação do cruzamento para dançar e cantar ao redor do fogo por boa parte da noite – e de fato, já havia precedentes históricos para essa possibilidade: isso já havia acontecido nessa cidade.

Mas, de repente, a atmosfera mudou. Alguém pegou o megafone e gritou: “Dispersar! Desaparecer! Corram aos quatro ventos ta qual os anarquistas que vocês são!” Era – alguém viu isso? – o vocalista da banda tocando e assumindo o comando. Nos olhamos com surpresa – nossos sextos sentidos, desenvolvidos pelos anos de experiências com situações de pressão semelhantes a essa, nos dizia que ainda não havia nada para temer, e não era o momento da retirada. Mas quando uma multidão de pessoas toma uma rua ou faz alguma outra ação parecida, toda sua força vem do senso de poder contar uma com a outra, toda sua confiança depende da confiança de seus companheiros e companheiras. O que um grupo, agindo junto, acredita ser possível, se torna possível; o que alguns acreditam ser impossível, se torna impossível, e então ninguém passa a acreditar na possibilidade de fazer dar certo. E então, ao ouvirem uma personalidade importante duvidando da possibilidade de seguir ocupando o cruzamento, muitos repentinamente passaram a duvidar de si mesmos, e se fizeram prontos para abandonar o cruzamento, como se tivessem sido ordenados.

Alguns de nós que eram mais experientes se rebelaram contra isso – era ridículo sair nesse momento, logo agora que não sentíamos qualquer ameaça e quando recém estávamos começando a explicitar nossos motivos! Aquele cara não era sequer daqui, ele não possuía nem uma perpectiva local, nem qualquer direito para tomar uma decisão daquelas – e para piorar a situação, seus motivos eram questionáveis: “Parem de batucar! NÃO levem isso de volta para o show!” ele adicionou, ainda aos gritos no megafone. Enfim, o estrago estava feito e não podíamos fazer nada que não fosse dar um jeito de abandonar o cruzamento com o resto das pessoas – mesmo assim umas pessoas que estavam por último pegaram uma lixeira e atearam fogo nela, como se fosse um presentinho de despedida. Aquilo foi incrível!

Apesar de tudo, a noite foi um sucesso – ainda que, infelizmente, já era muito tarde para fazer alguma coisa pelo cara que a polícia tinha assassinado – e nos deu uma boa lição: precisamos estar sempre vigilantes, líderes tão auto-proclamados assim não podem ditar os limites de nossas atividades. Talvez a banda mesma precisava sair naquele momento , mas para aquele cara pensar que isso significava que o evento todo precisava parar, ou que em sua ausência o resto de nós não podíamos nos manter longe das grades, era uma presunção muito arrogante! Pode parecer irônico que nós, tendo desenvolvido um plano secreto por nós mesmos que não tinha sido “votado” pelas pessoas presentes, ficasse frustrado com um cara que resolveu tomar para si as rédeas do movimento; mas a diferença é gigante já que nós em nenhum momento demos qualquer ordem para as pessoas que estavam ali – nós simplesmente abrimos a porta para infinitas possibilidades, conduzindo e fazendo com nossos próprios corpos atividades que abriam espaços para que outros participassem do jeito que se sentissem melhor. Para uma total, e autogestionada revolução ser possível, todos os indivíduos precisam ser treinados o suficiente em auto-determinação, e os grupos experientes o suficiente em tomada de decisão coletiva e rápida, para que ninguém possa usurpar o controle. Enquanto isso, para aqueles e aquelas de nós que deseja ver as coisas acontecerem, precisa-se estar preparado para contra-atacar líderes auto-proclamados ou “policiais da paz” (aqueles defensores intransigentes da não-violência), apresentando outras opções ao mantê-las visívies e viáveis a todo o momento. Se tivéssemos contra-atacado suas instruções ao enfatizar em alto e bom som que todos nós podíamos sim continuar no cruzamento, teria sido mais provável que o ocorrido após isso fosse o resultado de decisões individualmente pensadas e não fruto de uma psicologia de massas como pareceu ser.

Falando sobre essas tensões e contradições ocasionais entre decisões individuais e em grupo – houve uma pequena controvérsia sobre a lixeira: depois descobriu-se que era uma lixeira de uma cafeteria de economia solidária que já organizou eventos e performances radicais e liberais. Ao meu conhecimento, ninguém jamais foi ver se a cafeteria ficou realmente incomodada por causa do fogo; a lixeira foi vista na rua e em uso logo depois, então eu duvido que tenha tido grandes consequências para a cafeteria. Esses percalços são inveitáveis, mas foi muito engraçado ver que foi a escusa óbvia usada pelos liberais para gerar suas críticas contra nossas táticas ao invés das ofensas ao poder que aquilo foi. Será que da próxima vez alguém deve pedir financiamento para alugar alguma lixeira para que assim possamos colocar fogo?