Recortes Comportamentais

De Protopia
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Receitas Para o Desastre
CrimethInc


A nossa civilização preza o progresso e o desenvolvimento lineares, nos quais um indivíduo define objetivos e vai atrás deles; mas existe outro tipo de crescimento, outro tipo de aprendizado, no qual um indivíduo alarga o seu quadro de referências. Ao se focar somente em progresso linear, uma pessoa pode trabalhar toda sua vida e alcançar todos os seus objetivos sem jamais expandir a sua consciência das possibilidades da vida. Realmente, nesta sociedade orientada aos objetivos, é difícil não desenvolver uma visão estreita; e mesmo que você se comprometa a uma vida de exploração, na qual todo dia será uma aventura, às vezes a rotina tentará se estabelecer.


É aí que entram os recortes comportamentais. O recorte comportamental é um método para transformar o familiar em algo estranho, e portanto arremessar a si mesmo para fora da inércia. Em contraste com a atividade orientada ao produto, a prática dos recortes comportamentais implica que pode ser importante conseguir algo que você não previa. Ao contrário da maioria das receitas neste livro, os recortes comportamentais não são úteis para se alcançar fins específicos, mas sim para estabelecer perspectivas que possam indicar novos começos. Recortes comportamentais oferecem uma forma de descobrir a aventura e o potencial escondidos dentro das atividades que normalmente estão enevoadas pelo hábito.


Instruções

Recortes comportamentais podem ser comparados a recortes literários e artísticos, nos quais textos e materiais existentes são desconstruídos para serem reconstruídos de novas formas. Os dadaístas costumavam recortar jornais e livros de poesia, e criar novos poemas tirando esses recortes aleatoriamente de um chapéu; da mesma forma, o artista que faz recortes comportamentais usa tesoura e cola em textos pessoais ou sociais, reconfigurando aspectos comuns da vida de formas extraordinárias.


Um recorte comportamental é mais um meio de se partir para território inexplorado do que uma aleatorização da vida; e como tal, pode ser preciso um planejamento cuidadoso. Escolher os ajustes mais promissores a se fazer é uma ciência rigorosa, talvez até uma ciência exata.


Para uma nova experiência musical, você pode tocar a sua música favorita de trás para frente abrindo uma fita cassete com uma chave de fendas e colocando o rolo de fita de trás pra frente. Melhor ainda, grave-a noutra fita no terceiro ou quarto canal de um gravador de quatro canais, e então escute ao outro lado da segunda fita. Se você possui um computador, é possível também, com o programa certo, inverter as suas MP3s.


Na forma mais básica de recorte comportamental, você estipula algo a mais para um aspecto mundano da sua vida: por exemplo, você decide que não vai pagar por comida durante um mês inteiro, ou irá se dedicar a subir em todos os carvalhos do seu distrito, ou se comprometer a enviar todo dia um cartão postal para a sua família durante um ano inteiro. Essas estipulações trazem um novo olhar a assuntos com os quais você já estava habituado, aguçam a sua percepção, dão flexibilidade à sua auto-consciência e revelam novas possibilidades. Ao se aventurar fora do circuito da sua vida diária, você entra temporariamente em um mundo paralelo no qual você é uma pessoa diferente, e aprende todas as coisas que são banais para esta pessoa, mas novas para você.


Recortes comportamentais não são tão incomuns quanto o seu exótico nome faz parecer. Em tradições que vêm desde a aurora da civilização, guerreiros e xamãs os têm praticado como uma forma de jornada visual: imitando animais, uso de tóxicos em rituais, danças frenéticas, nudez em público e outros tabus, rituais de exaustão, privação e dor ― estas são técnicas de experimentação psíquica e social que ganharam respeito com o passar do tempo. Mesmo na nossa era prosaica, as pessoas ainda praticam atividades similares, em vários níveis: jejuar durante o mês do Ramadan, construir um forte com almofadas na sala-de-estar e recusar-se a sair durante toda a noite, ir para uma festa de dia das bruxas vestido de Fidel Castro e passar toda a noite a caráter, tudo isso são recortes comportamentais, por menos originais ou conscientes que sejam. Muitas pessoas têm experiência em primeira mão com simples recortes alimentares: tornando-se vegano, por exemplo, passamos a dar mais atenção à comida, transformando interações sociais e frequentemente resulta num interesse maior por culinária ou jardinagem. Só é preciso que desenvolvamos uma prática deliberada de recortes comportamentais sem outros objetivos, como uma ferramenta para a educação, inspiração e libertação.


Recortes comportamentais não precisam ser grandiosos; na verdade, os mais poderosos raramente parecem interessantes antes de os colocarmos em prática. Pode não parecer uma grande mudança de vida se comprometer com algo trivial como iniciar uma conversa com um estranho toda manhã, mas os efeitos cumulativos podem ser surpreendentes. Recortes comportamentais mais extremos podem colocar você em conflito com seus concidadãos ― de fato, o outro significado de "recorte" é comportar-se mal ― mas a longo prazo, esses conflitos servem para tornar a vida interessante para todos.


Recortes comportamentais podem soar como território de artistas performáticos e outras pessoas da classe privilegiada, mas é um erro descartá-los assim. Quando levado a sério, o recorte comportamental é um exercício de auto-expansão, uma prática tão essencial para revolucionários quanto apoio mútuo e auto-defesa.


Alguns Recortes Comportamentais para Quem Quer se Iniciar

Faça duas listas: coisas que entediam você e coisas que o apavoram. A primeira deve ser bem fácil de compilar, enquanto que a segunda pode ser difícil de admitir até para você mesmo. Aleatoriamente selecione um item de cada lista. Invente algo que combine os dois: por exemplo, se você pegou "usar o transporte público" da sua lista de coisas tediosas, e "falar em público" da lista de coisas assustadoras, você pode se fazer o desafio de discursar toda a manhã no metrô. Mantenha um diário das suas experiências e interações.


Escolha uma atividade que sempre lhe pareceu absurda ou injusta e recuse-se a participar dela, não importa quão complicado isto seja. Isto pode lhe sensibilizar para tragédias que antes eram invisíveis ― alguns meses sendo vegano, você entra em um mercado de couro e sente-se em um bazar de violadores de túmulos ― ou revelar os excessos da nossa sociedade aos seus concidadãos, como no caso do asceta que leva consigo todo o lixo que ele produz.


Dê a si mesmo uma relação especial com um lugar, associando ele com uma atividade específica. Por exemplo, você pode decidir que sempre que você estiver na Alemanha, você será um maratonista que acorda ao nascer-do-sol para correr pela cidade.


Se a sua aparência externa sempre lhe deu o privilégio de fazê-lo passar por um ser humano "normal", pinte ou tinja a sua pele, ou raspe o seu cabelo e sombrancelhas, ou vista-se com um saco. Não faça nenhuma tentativa de se explicar se você quiser todos os benefícios do que é a vida daqueles que atraem a atenção para si quer queiram ou não.


Passe um tempo sem algo que você sempre teve como certo. Por exemplo, aprenda a reconhecer todas as plantas comestíveis e medicinais que crescem na sua região, e passe uma temporada vivendo fora de casa, subsistindo delas. Recuse-se a colocar o pé em qualquer prédio neste período.


Pegue uma ferramenta bem conhecida ― neste exemplo usaremos uma torradeira ― e transforme-a de volta em um objeto. Tire-a da cozinha, leve-a talvez ao cume de uma montanha ou um silo abandonado. Diga o seu nome continuamente por trinta minutos: diga rápido, devagar, soletre, cante-o com a melodia da canção favorita da sua infância. Agora leve-a consigo até o banco. Use-a como um sapato. Corra um quilômetro com ela. Exausto, enrole-se com ela e tire um longo cochilo. Retire um dos seus painéis brilhantes e escreva uma carta sobre ele para um amigo com quem você perdeu contato. Invente diversos outros usos para ela, e utilize-os até que você se acostume com eles e que uma torrada nela pareça algo estranho.


Você pode entrar em contato e controlar os seus medos através de diversos rituais: tente ficar pelado com seus amigos e depois com conhecidos menos familiares, ficar íntimo com alguém do sexo oposto ao que você está acostumado a tocar, caminhar vendado por lugares conhecidos e desconhecidos, conversar sinceramente com estranhos, subir as escadas de caixas d'água ― nada pode multiplicar tanto suas capacidades quanto confrontar as limitações que você estabeleceu para si.


Quebre leis sociais que nunca são ditas em voz alta sobre a utilização do espaço. Okupe um desses enormes supermercados 24 horas por alguns dias. Faça experimentos, jogue jogos, alimente-se da comida na sua "despensa", encontre um canto silencioso para dormir. Pegue uma categoria esquecida de itens (coisas verdes de plástico, parafernália de insegurança, materiais não produzidos por trabalho escravo) e, carregue seu carrinho e em diversas viagens, crie uma nova seção para eles. Use o setor de papelaria para escrever cartas para amigos, use o telefone para convidá-los. Organize uma festa ― os convidados não precisam trazer comida nem presentes. Tire uma câmera descartável da prateleira; depois de tirar umas fotos incomuns, coloque-a de volta na embalagem para o seu futuro proprietário. Adicione isto à sua lista de coisas a fazer enquanto os dias passam e você vai ficando mais perturbado.


Torne-se um guru. Vá para um espaço público onde você possa armar um acampamento, e estabeleça uma presença constante lá. Tenha um projeto. Terá que ser um projeto que crie ondas de notoriedade ― rumores devem se espalhar sobre a sua presença. As pessoas virão com histórias para você: dê-lhes tempo, escute-as. Você, mais que os amigos íntimos, ouvirá sobre injúrias, segredos, dilemas, desejos. Não tente resolver os problemas ou dar conselhos: a sua tarefa é guardar as histórias como se você fosse um esconderijo. Os seus visitantes irão retornar para remexê-las, para fazer correções e novos depósitos, para revisitar as velhas. Elas lhe oferecerão comida. Ocasionalmente elas perguntarão sobre a sua vida ― mas lembre-se, elas só fazem isso por educação e por costume, pois elas sabem que você é uma pessoa mágica, você tem um projeto. Quando crescerem as suas relações, as suas necessidades serão cada vez mais supridas pelas oferendas dos seus visitantes. Estes presentes levam consigo o poder de lançar feitiços por eles. Cure-os, faça-os ficar bem.


Prepare e realize os seus próprios ritos de passagem. Invente uma série de jogos para jogar com seus amigos, e anuncie um mês durante o qual vocês mudarão suas vidas em preparação para os próximos anos onde mudarão o mundo. Você pode começar com elaboradas buscas por materiais, e concluir com uma sequência de desafios: começando ao meio dia de sexta-feira na casa de Danielle no tranquilo bairro nobre, quem consegue ser preso antes? (Este exemplo em particular foi criado sob medida para os privilegiados filhos dos burgueses; existem equivalentes). Quem consegue escrever a história mais fantástica? (Foi assim que Frankestein, de Mary Shelley, foi escrito ― foi seu primeiro livro). Se o mundo fosse acabar amanhã, o que você faria hoje? Ok, conte até três, faça. O que você teme mais de tudo? Como exame final, confronte isto, sobreviva. Aqueles que sobreviverem estarão prontos para qualquer coisa.


Relato

Scwabisch Hall, na Alemanha estava do outro lado do mundo, mas quando saímos de casa levamos juntos nossas roupas. Nós levamos a nossa linguagem e amigos com quem falá-la; e como levávamos tudo isso, não tínhamos como esquecer nossos hábitos, personalidades e histórias. Nós arrastamos nossas desavenças, contrabandeamos as nossas paixões. Na pista de decolagem, o avião lutava para ganhar velocidade, a sua barriga estufada com nossa bagagem.


Enquanto eu olhava pela janela, a viagem começou a parecer menos um viagem inimaginável e mais como uma visita ao fundo do oceano dentro de um submarino. Ficou claro que para que toda a promessa da viagem se desenrolasse, precisaríamos de mais de um lugar inimaginável como a pequena cidade na Alemanha para a qual estávamos indo; nós mesmos teríamos que ser inimagináveis. Depois de refletir um pouco, me ocorreu: "Na Alemanha, eu sou um maratonista." Selma pensou que era uma boa ideia ― e como eu, ela tinha a vantagem de não ser uma maratonista em nenhuma outra parte do mundo. Então fizemos um pacto de nos comportarmos como se fôssemos maratonistas desde o dia em que chegássemos até o dia do retorno, duas semanas inteiras.


Na manhã seguinte, pela primeira vez nas nossas vidas, acordamos às quinze para as oito e começamos uma corrida de uma hora. Depois, exaustos, sentamos com papel e caneta para fazer mapas. Embora nossos dois mapas fossem do mesmo trajeto, eles pouco se pareciam, mas ambos mostravam a cachoeira. Nós havíamos tomado uma trilha longa e esquecida a oeste da cidade. Bem quando eu estava louco para voltar, o ar ficou misteriosamente fresco; o som de água corrente tirou minha concentração do sofrimento e os meus olhos dos meus pés. A cachoeira era verde e brilhante, cheia de musgo, que guiava a água que caía e fazia o pequeno morro parecer um gnomo barbudo. Sem fôlego para falar, deixamos a cena lavar as nossas palavras e a nossa dor. Sim! Nós viajamos.


Estar em um local desconhecido é estar desorientado, inspirado, exaltado pelo desconhecido. Mas estar receptivo ao desconhecido significa tornar-se desconhecido. Viajar à Alemanha se mostrou ser uma oportunidade para eu me livrar da inércia, me liberar daquela parte de mim mesmo que só percebe o que eu espero perceber e só faz as coisas que eu sei que faço. O que eu estava procurando lá era um eu possível, uma versão de mim que, naquele caso, corria toda manhã. Naquele local estranho eu percebi o que ele percebia e pensei os seus pensamentos. Eu descobri um cachoeira em um caminho emaranhado, um túnel coberto por trepadeiras e grafite, as ruínas de um castelo, uma manhã com neblina na qual, no auge da nossa corrida, os cumes das montanhas pareciam ilhas. Eu descobri o meu corpo se reinventando para novos desafios.


Ao ir para a Alemanha, eu podia ter parado de falar, eu podia ter decidido dançar nas ruas sem reservas, eu poderia ter ficado preso a uma cadeira de rodas, eu poderia ter me tornado um poeta ou um comediante. Eu só posso imaginar aonde tais experimentos teriam me levado. Eu sei que existem pessoas que vivem e morrem em Schwabisch Hall sem jamais ver as coisas que vimos. Eu também sei que existem tantas cachoeiras, santuários e castelos em Pittsburgh ― eu simplesmente ainda não fui o maratonista que as descobre.