Religião de rua e Magia da Matrix
em sua primeira tentava de crackear uma base de dados de grande porte pelo programa de segurança mortalmenteperigoso que circunda o sistema. No momento mesmo em que seu sistema nervoso está para ser apagado parasempre, aparece uma voz de lugar nenhum, acompanhada pelo “espírito” de uma jovem mulher, cuja intervenção osalva da morte no úlmo minuto. Isso pode ser chamado de uma experiência para-digital.
É também um evento misterioso e estranho no futuro hi-tech de Gibson. Extremamente perturbado, Bobby logo seráposto sob a proteção dos superiores de seu receptador, dois elegantes negros que querem entrar em contato com oespírito feminino através dele (eles a chamam de Vyèj Mirak, Mãe Maria, Virgem dos Milagres, Elizi Freda). Elesposteriormente explicam a Bobby sobre o que estão falando. Nas vizinhanças conectadas, que antes eram as Cohabs(2) nas quais as pessoas negras pobres viviam, uma comunidade auto-sustentável surgiu gradualmente. Seu sucessoestá baseado na combinação de ritos vodus tradicionais e alta tecnologia. Ou, mais precisamente: os ritos vodus sãoo modo de comunicação da comunidade com os poderes na Matrix.Isto signica que os dois cavalheiros, Lucas e Beauvoir, embora pareçam maosos ou homens de negócios, são hougans , a designação para os sacerdotes da religião vodu haiana. Aqueles que se deram ao trabalho de descobrirmais sobre vodu (3), vão car impressionados com a apresentação unilateral dada por Gibson desta rica tradiçãoreligiosa. Ele realmente menciona um lugar santo, um lugar comparlhado, sagrado, onde vários pos de árvorescrescem, cada uma a favorita de vários loas (4), ou seres sobrenaturais. No entanto, em lugar algum ele menciona um houmfo . O houmfo é o lugar onde os crentes, sob a liderança de um hougan ou sacerdosa mulher ( mambo ) buscacontato com os loas, habitantes de Guiné, a África míca de seus ancestrais. Cada houmfo é devotado a umadivindade padroeira, mas outro loa também pode entrar em contato com o sacerdote, seus assistentes e crentes. Nomeio do espaço está um pilar ricamente decorado, que serve como uma espécie de antena conduzindo poderessobrenaturais.
Quando um loa busca contato com um mortal, ele assume o corpo do mortal. A maneira pela qual estas pessoascaem num transe, seus movimentos, expressão, as palavras que elas proferem ou as coisas que apanham enquantono transe, podem servir para indicar que loa está se mostrando. É impossível aqui enumerar as várias famílias de loase sua divisão em espíritos brandos e benécos puramente africanos ( rada ) e espíritos mais perigosos, envolvidos commagia, poder e riquezas (
petro
). Mas Gibson aplica uma distorção fundamental: enquanto o vodu haiano na nossaépoca (como a santería e outros) é em grande parte uma questão de comunidades cujas principais avidades sãorituais de devoção, benção de casamentos, casas e bebês recém-nascidos, cura e prevenção de má-sorte e doença,Gibson enfaza os aspectos de pior reputação do vodu, a saber, os hougans que “trabalham com ambas as mãos”, ouque também trabalham magia e tratos com loas perigosos, ou mesmo que se dedicam exclusivamente ao maisdemoníaco entre eles. Estes hougans são mais magos que sacerdotes.Esta apresentação sinistra, criminosa, dos ritos vodus tem tudo a ver com a Matrix. Os rituais de devoção nos quartosdos fundos são deixados de fora da descrição, por que os loas se mostram por meio da Matrix. Eles não habitam maisas montanhas, como no Hai, ou num país míco, mas no ciberespaço. A Matrix é uma realidade que não contémcuras, rituais de devoção, benção de casas ou bebês recém-nascidos. É a concentração de todo poder, riquezas ecrimes no planeta, e simplesmente não há lei ou jusça nesse universo. Cada grupo se mantém como umaorganização no eslo da Máa, lidem eles com arte, ou dirijam uma companhia de informáca, pretendamsimplesmente sobreviver ou sejam eles uma organização genuinamente criminosa. Na verdade, isso é inevitável naausência de um estado, um corpo de leis e governo e mesmo qualquer forma de democracia. A única estrutura dasociedade se deriva da luta de poder entre gangues, companhias, milícias e exércitos. Cada um desses grupos usa osmeios antes disponíveis apenas para o estado: tribunais, espiões, polícia, armas. Sem um conjunto de leis, todopoder é criminoso.
Lucas e Beauvoir cam irritados quando Bobby leva a palavra religião muito a sério e compara seu vodu com o Islã oua cientologia de sua mãe. Eles sublinham que não é a crença, mas resolver as coisas o que importa. A superioridadedo vodu está baseada em seu potencial mágico: é a maneira, por excelência, de rar pardo no mundo real do poderocultado pela Matrix. Beauvoir descreve a diferença entre monoteísmo e vodu. “Vodu é como a rua. Um lixeiro qualquer fura sua irmã., você não vai car acampado na soleira da Yakuza, vai? Nem fudendo. Então você procuraalguém que possa resolver as coisas. Certo?” (5)
O vodu é um culto de sobrevivência, uma religião de rua e a impaciência de Beauvoir demonstra que ele estápensando imediatamente na dicil história dos escravos libertos do Hai, que adaptaram a religião da Áfricaocidental às suas novas, severas circunstâncias.
Analogia Vodu
Legba (Elegbá, Exu) ocupa um lugar especial no vodu haiano. Este deus masculino se originou nas religiões africanasocidentais do Daomé (atual Benin), de Gana e da Nigéria. Lá, ele é um po de Hermes, que permite a comunicaçãoentre deuses e espíritos, mas também entre eles e seres humanos mortais. Este deus põe em movimento o poder e
conhecimento do mundo divino e o faz uir - ele é o deus das redes (networks). No vodu haiano, é o primeiro a serchamado, antes que o contato com o outro loa seja feito. Assim, mantém sua função como deus da comunicação.Governa estradas e intersecções, portas, portões e fechaduras. Seu aspecto foi despojado de qualquer nobrezaafricana ocidental; no Hai, é um velho homem inválido de muletas. Veste-se com andranjos e fuma um cachimbo.
Ele não é das deidades mais elevadas, mas como sua permissão é necessitada para o contato com o mundo dos loas,ocupa um lugar central. Ele regula o acesso ao mundo sobrenatural. Todo ritual de devoção é iniciado com a seguinteinvocação, tal como se conrma um login: “Abô-Legba, l`uvri bayé pu mwê, agoé! Papa Legba, l`uvri bayé pu mwê.Pu mwê pasé “ (Abon Legba, abre a barreira para mim! Papa Legba, abre a barreira para mim. Para que eu possapassar) (6). A salvação de Bobby por Elizi Freda, a meiga loa dos amantes, signica que ele foi escolhido por Legba,por mais que Beauvoir o ache um garoto branco ingênuo e estúpido.
Gibson não deixa dúvidas de que depois da fusão das duas grandes Inteligências Arciais (Wintermute eNeuromancer) - uma espécie de Queda do Homem com a qual termina a primeira parte da trilogia - coisasgenuinamente estranhas acontecem na Matrix, coisas sobre as quais não apenas os hougans estão falando. Um saltoqualitavo foi dado depois da soma da potência super calculadora ( Wintermute era uma mente de colmeia,tomadora de decisões, causando mudanças no mundo lá fora ) e da personalidade, imortalidade ( Neuromancer) (7).
Os loas com o qual hougans como Beauvoir e Lucas fecham seus contratos fausanos realmente existem, mas só nomundo complexo, misterioso, da Matrix. Ela se transformou de uma rede de comunicação e máquinas deprocessamento de dados numa criação um mundo compreendido melhor usando a abordagem da realidade como ofazem os seguidores do vodu.Por quê, exatamente? Porque é tão somente lógico que o culto vodu devesse ser o único fenômeno religiosoimportante na trilogia de Gibson? Primeiramente, devido à analogia estrutural: o hougan tem seus hounsis ou assistentes, aqueles que são possuídos pelos loas. Mas em vez de uma cerimônia em torno do pilar no houmfo , háuma sessão no deck, ao logar na Matrix. O caos do mundo dos espíritos é um reexo do caos da Matrix; a inconávelmistura de bem e mal, a acumulação de poderes em conito uns com os outros: o mundo dos loas é uma perfeitaanalogia para a Matrix. Uma coisa é certa: se algo misterioso e aparentemente sobrenatural acontece na Matrix, ossistemas lógicos da religião monoteísta são inadequados para compreendê-lo.
Em segundo lugar, há o caráter uido e efêmero do culto vodu. Não há textos sagrados e mesmo o inventário domundo loa está sujeito a connua mudança. Figuras históricas lendárias ou grandes hougans podem se tornar loaspor seu próprio direito, ou “disfarces” de outro loa. Os ritos, encantamentos e vevés (símbolos mágicos desenhadosno chão), todos mudam com o passar do tempo. O ponto crucial é a permanente comunicação entre o mundo dosseres humanos e aquele dos loas, sem um procedimento padrão ou corpo dominante de leis, uma comunicação queocorre em grande parte através de imagens, sonhos, símbolos e presságios, não através de palavras e conceitos. Issoé ainda uma outra analogia com a Matrix, ela mesma uma representação gráca de conhecimento, informação ecomunicação.
Cada crente e cada membro do grupo em torno de um hougan está sozinho ao carregar o peso de suas escolhas e osriscos em jogo. As consequências para conitos com o loa não acontecem no além, mas aqui mesmo na Terra, equase imediatamente. Aqui, pode-se também facilmente encontrar uma analogia espiritual na comunicação comuma Matrix que se tornou um segundo mundo predominante.A terceira razão é a ausência de qualquer forma de universalidade, lei ou ordem políca na trilogia de Gibson. Todomodo de vida é uma forma de sobrevivência fora da lei, em primeiro lugar, o estado de natureza tal como concebidopor Hobbes no qual seres humanos são lobos de seus pares. Qualquer po de comunidade, dessa forma, seassemelha a uma gangue ou organização no eslo da Máa. Nada que seja universal é concebível, além da luta detodas as facções, muitas das quais desconhecem a existência das outras. A chance de sobreviver é então, em grandeparte, uma questão de posse de informação, de acesso aos dados do outro, e da velocidade com a qual estes podemser decifrados e usados. Pois todo conhecimento será usado como uma arma na batalha por poder, riquezas esobrevivência e nada mais. Este é precisamente o modelo do vodu: a questão central é o acesso ao mundo dospoderes que governam a vida, a realização de tratos, o acerto de alianças temporárias e a obtenção deconhecimentos sobre o futuro. Todo o “conhecimento espiritual” tem valor práco, se não imediatamente, entãomais tarde ou obliquamente. É a práca da magia. Soware “Espiritual”
O enredo de Gibson acrescenta algo mais à analogia entre as relações dos afro-americanos com a Matrix e o voduhaiano. Assim como a fusão das duas IAs signica um salto qualitavo para a frente e assim a quebra de um limite,uma outra “ruptura” é incorporada por Angela Mitchell, ou seja, o limite entre o hardware eletrônico e o biológico. Opai de Angela é o ciensta que teve sucesso ao criar uma substância biológica digitalmente programável. Ele
planejava escapar das garras de ferro da companhia que o nanciava, Maas Neotek. Ele comete suicídio, mas temêxito em fazer sua lha Angela sair clandesnamente do super vigiado laboratório.Ele nha implantado lamentos em seu cérebro contendo sua invenção. Ela é visitada por sonhos que estãoconectados com eventos na Matrix. Seus sonhos retratam ações e conitos com consequências assustadoramentereais. Numa palavra, ela tem uma conexão direta com os loas e é uma mambo extremamente poderosa sem opercebê-lo. Legba pode usá-la diretamente como “terminal”. Quando ela está segura na companhia de Beauvoir eseu grupo, eles dizem que querem serví-la. Ela é a primeira de um novo po de seres humanos.
A indisnção de limites entre seres humanos e tecnologia não é uma questão de maquinaria, ou robôs eequipamento, mas deve ser encontrada na área de comunicação e de soware - o soware se torna “espiritual”.Estritamente falando, isso pode não ser nada transcendental, mas a capacidade humana para entender é insucientepara apreciá-lo em seu verdadeiro valor e deve considerar e lidar com ele da mesma forma que com um mundoespiritual impregnando o mundo real, usando um modelo mágico, o culto vodu. O mundo da Matrix cou tãoavançado que aparece para as pessoas como uma natureza animada, muito embora seja originalmente de fabricaçãohumana. Um inevitável horror ante as agora-sagradas capacidades da Matrix. Eis uma imagem diverda e revoltantedo futuro.A distopia a sangue frio de Gibson é inequivocamente sarica e, assim, de caráter implicitamente moralista. Aescolha de ritos vodus como um veículo para retratar a forma na qual a comunidade, neste caso a comunidade negrana América, se mantém no perigoso futuro contém não apenas um elemento sarico, mas também esperançoso.Cito Metraux para ilustrar: “O leitor desejará saber se o vodu é uma religião moral ou imoral. A questão não deveria ser enquadrada nestes termos, uma vez que o vodu não é um sistema religioso com corpo doutrinário bem denido; no entanto os espíritos, sendo concebidos à imagem do homem, realmente agem em conformidade com as leismorais que regem a sociedade
haiana. O ‘bom loa’ não pode aprovar o crime e o ‘mau loa’ só pode procurar assisr pos sombrios. Os loas são amigos que intercedem na vida privada e que frequentemente agem como intérpretes daopinião pública. Um loa pode muito facilmente reprovar seu ‘cavalo’ por um comportamento que seus vizinhosconsideram repreensível e o condenam por algo que ele pensa que ninguém sabe. É neste sendo que os loas têmuma exigência de serem respeitados como os guardiões da moralidade pública” (8).
De todos os grupos e comunidades na trilogia de Gibson, aqueles nas Cohabs são os mais humanos e vívidos, osmenos mulados pelo desaparecimento de toda a ordem social. Isso contém uma idéia marxista clássica, isto é, deque a comunidade com a maior experiência com sobrevivência numa situação sem lei será a mais invenva e jovialna adaptação para a nova ordem mundial sem lei e, assim, a mais bem sucedida em manter sua dignidade. Sob esteaspecto, a Matrix vodu de Beauvoir e sua gente “lá das Cohabs” é um modelo de sobrevivência social elegante egenuíno num sendo espiritual. Uma forma pós-industrial de paganismo, à qual pertence o futuro, no sendoambíguo de profecia e aviso que caracteriza toda a cção cienca.
Notas:
1. Console cowboys ou cowboys do ciberespaço, como traduzido no Brasil, em Neuromancer (São Paulo, Ed. Aleph, 2003), sãohackers do futuro que não respeitam nada, e só vivem pelo frenesi de invadir perigosos sistemas de segurança de computadores.Case, protagonista do romance, é o clássico cowboy do ciberespaço. (Nota do Tradutor).2 . Projects são conjuntos habitacionais das periferias, normalmente habitados por afro-americanos, lanos e outras minoriasétnicas. O termo Cohab, por seu uso corrente e de forte signicado para a comunidade negra brasileira, é empregado aqui comoum equivalente. (N. do Trad.)
3. Alfred Metraux, Voodoo in Hai (transl. Hugo Charteris), Deutsch, London, 1959.
4. Loas, lois , lwas ou loás, são endades do panteão da religião vodu, equivalentes aos orixás no candomblé brasileiro. (N. doTrad.)
5. William Gibson, Count Zero , Ace Books, NY, 1986, p. 77.6. Metraux, p. 101.
7. William Gibson, Neuromancer , Ace Books, 1984, p. 269.
8. Metraux, p. 36.