Rumo a um novo Feudalismo?
A exigência da liberdade nasce com a vida. Por isso, o anarquismo como postura mental é inerente a toda história; porém, como movimento consciente e organizado tem uma trajetória relativamente breve, que começa com a Ilustração e a Revolução Francesa. E, nestes últimos dois séculos, os inimigos da liberdade pessoal foram o capitalismo burguês e o Estado, sempre aliados contra as reivindicações populares, embora rivais por alguns momentos, ou, pelo menos, com relações recíprocas tensas, seja por motivos fiscais, seja por certa forma de controle que o Estado queria exercer sobre os investimentos ou as trocas. Surgiu, assim, um novo significado da palavra “liberalismo”, estendendo à empresa capitalista a liberdade pessoal que o liberalismo clássico havia sempre reivindicado frente ao Estado. Deste modo, a liberdade relativa ganha com o esforço de todo o povo contra o absolutismo que serviu essencialmente para consolidar o capitalismo; porém, a tensão entre o poder político e o econômico, mesmo dentro da aliança contra a pressão popular, ajudou a manter por muito tempo a democracia burguesa, em cujo seio e contra a qual o socialismo nasceu e, apesar de tudo, cresceu.
Quando seu crescimento chegou a representar uma ameaça para as classes dirigentes, estas abandonaram a democracia e estabeleceram uma nova forma de absolutismo que se chamou “fascismo”. Nele, o Estado onipotente tratou de domesticar o grande capital, burocratizando-o em seu seio como antes havia feito com a nobreza feudal, enquanto a revolução popular socialista, triunfante na Rússia, desembocava em uma tentativa de socialismo estatal ultra-autoritário, que, através de uma mudança das pessoas de classe dirigente e de um processo de burocratização, chegava a um resultado bastante semelhante.
Esta tentativa de fusão de poderes, no entanto, fracassou. A ardorosa oposição popular, de um lado, e o desejo de autonomia das grandes forças do capital, de outro, fizeram com que se voltasse ao jogo democrático. Os dois fatores desse retorno, o burguês e o popular, manifestaram grande resistência a misturar-se na Segunda Guerra Mundial (o bombardeio inglês em Milão em plena revolta antifascista é um exemplo desse divórcio). O totalitarismo dito socialista custou mais a dissolver-se, porque, na guerra, havia pertencido ao grupo dos vencedores e porque ali a classe endinheirada, a burocracia, tinha origens recente e estava mais ligada ao Estado.
Durante toda essa turbulenta história, que fez com que tantas pessoas sofressem crises ideológicas e mudasse seu discurso, o anarquismo socialista seguiu definindo-se contra o capitalismo e o Estado e se manteve em dia com os acontecimentos.
Agora, neste fim de século tão profundamente distinto de seus inícios, começamos a perguntar-nos se esta definição não é demasiado limitada. Se nossa meta é a máxima liberdade e a máxima justiça para todos, pode ser que tenhamos de lutar por elas também contra outros inimigos.
Houve épocas na história, como a feudal, em que a liberdade estava mais limitada do que agora e a desigualdade social era maior, sem que existisse o capitalismo, nem propriedade privada propriamente dita e com um Estado extremamente débil. O sistema de vassalagem fazia com que o individuo se encontrasse preso em uma rede de dependências pessoais, desde o imperador, no cume, dono teórico de tudo, até os “servos da gleba”, na base da pirâmide, que deviam trabalhar para o senhor e não podiam deixar sua parcela de terra. Eram terrivelmente explorados e oprimidos pelo titular do feudo, e não pelo Estado. A moeda circulava muito pouco. Os impostos ao senhor e o uso dos serviços comuns (forno, moinho, pastos) eram pagos com produtos da terra. Contudo, o senhor feudal não era “proprietário” de seu feudo. Sua posse era precária e condicionada a seus deveres de vassalo, porém, implicava jurisdição sobre seus habitantes. O feudo podia ser perdido por não cumprimento das obrigações, podia ser conquistado com a guerra, ou podia ser adquirido como recompensa por serviços prestados, porém, não se podia compra-lo nem vendê-lo. Entre os pequenos artesãos e os pequenos comerciantes dos núcleos urbanos encravados nos feudos encontravam-se os restos da economia de mercado e circulava, de forma muito anêmica, a moeda.
Quando o mundo feudal entrou em crise, especialmente devido aos enormes gastos ocasionados pelas Cruzadas, a economia urbana ressurgiu. As cidades enriquecidas compraram sua liberdade dos senhores feudais endividados e se constituíram em comunas autônomas. Houve então dois séculos, o XII e o XIII, em que se praticaram várias formas, muito interessantes, de democracia direta, baseada geralmente nos grêmios. Nesse primeiro momento, o uso da moeda e a consolidação paulatina da autoridade do rei sobre a nobreza feudal ajudaram a recuperar a liberdade pessoal.
Recordei coisas já muitas conhecidas (e me desculpo por isso) para fundamentar o que quero sustentar com essas linhas: o capitalismo e o Estado não são os únicos inimigos da liberdade e pode chegar o memento em não sejam os principais.
Já Umberto Eco e outros agudos observadores da realidade, neste fim de milênio em mutação, haviam falado da possibilidade de um retorno a uma estrutura social de tipo medieval. Hoje o neoliberalismo e a globalização parecem confirmar, com novos sintomas, essas previsões, ou melhor, esses temores: estamos muito mais próximos da estrutura atomizada com aspirações à unidade mundial que caracterizou a Idade Média, com um poder cada vez menor dos estados nacionais, que se vão perdendo nos “mercados comuns” e um poder cada vez maior de organismos multinacionais que controlam economicamente determinadas áreas não necessariamente geográficas verdadeiras feudos transversais que começam a ter exércitos próprios, contratados entre as forças que a guerra fria deixou desocupadas (e quem diz exercito, diz jurisdição). Estes blocos econômicos formam pirâmides. Os grandes não são muitos e são conhecidos; porém, de cada um deles depende uma quantidade de blocos menores, que se movem dentro de sua órbita com as mesmas características. Toda essa rede em rápida formação tem fome de poder e pressiona, neste momento, para o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), que tende a deixar os governos nacionais legalmente desarmados frente aos investidores estrangeiros, mas que, ao mesmo tempo, coloca-os obrigatoriamente a seu serviço. Em muitos países, especialmente do “terceiro mundo”, este acordo tacitamente já se aplica.
Este processo não é fatal, nem anula nada de nossa luta tradicional. O ser humano é imprevisível e sua vontade conta nesta atormentada história: a vontade de todos, incluindo a nossa. Este panorama pode mudar, tem de mudar, porque o domínio do mercado nos leva a uma crise que pode terminar em morte coletiva.
Enquanto isso, no entanto, é preciso manter os olhos bem abertos, não somente porque estes novos inimigos podem requerer novos terrenos e táticas de luta, mas também para que não volte a acontecer o que se passou na Idade Média, isto é, que para nos proteger dos lobos soltos, tenhamos de nos refugiar novamente nos braços do Estado.
A nova tecnologia minimiza o esforço físico e ainda a tarefa administrativa que a produção requer. O empresário está se libertando assim do pesadelo das greves, enquanto o proletário (palavra que está caindo em desuso) sente que está perdendo a arma que esteve a ponto de faze-lo invencível. O desemprego aumenta e continuará aumentando e com ele, a violência, fruto mais do ócio que da fome, numa pobreza sem esperança por um lado e, por outro, fruto do medo dessa nova classe que está se formando e que vai caindo na marginalização.
A lógica perversa do mercado (viciada nas premissas) transforma essas vitórias do ser humano sobre a matéria, que poderiam conduzir à conquista do tempo livre para trabalhos “não-rentáveis” como a saúde, a educação, a arte, o espetáculo, em causas de desesperançada decadência para as maiorias, antes de provocar o esgotamento do sistema mesmo por escassez de consumidores. Cria-se um clima de medo, medo de perder o emprego, medo da violência difusa, medo dos perigos conhecidos e desconhecidos da nova tecnologia. Este medo começa a parecer-se com aquele provocado na Idade Média pela fome, pelos bandidos e pelas invasões, e que impulsionou os camponeses a entregar suas terras e sua liberdade ao senhor feudal em troca de proteção.
Ao lado de tudo isso, num momento de enormes conquistas por parte da ciência, ressurgem do subconsciente da história e em ato, impulsos irracionais de abdicação da vontade frente a uma hipotética divindade e a seus sacerdotes bem reais (a crença em Deus não é necessariamente antilibertária. A liberdade fica ameaçada quando se reconhece a outros homens a autoridade de falar em nome desse Deus). As correntes religiosas foram sempre fortes. De todos os modos, agora, o seu incremento, a maior audiência que têm os pregadores das distintas seitas, os vários fundamentalismos, que massacram em nome de Deus, contribuem para criar um clima semelhante ao da Idade Média da civilização ocidental.
O tema não é somente descritivo ou interpretativo. Penso que vale a pena ser discutido, porque implica certo deslocamento na tática e na linguagem.
Traduzido por Margareth Rago.