Sonora Denúncia do Surrealismo

De Protopia
Ir para navegação Ir para pesquisar
Comunicados da Associação Pró-Anarquia Ontológica
Hakim Bey


(Para Harry Smith)


Na Mostra de Cinema Surrealista, alguém perguntou a Stan Brakhage sobre o uso que a mídia faz do surrealismo (MTV etc.); ele respondeu que era uma vergonha danada. Bem, talvez seja e talvez não seja (a kultura popular ipso fato carece de toda inspiração ?) - mas, partindo-se do princípio que, em algum nível, a apropriação que a mídia faz do surrealismo é de fato uma vergonha danada, vamos acreditar que não havia nada no surrealismo que permitisse que esse roubo acontecesse?


O retorno do reprimido significa o retorno do paleolítico - não um retorno à Idade da Pedra, mas um movimento espiral em torno de um novo nível da órbita. (Afinal, 99,9999% da experiência humana são de caça e coleta, sendo a agricultura e a indústria uma mera mancha de óleo no profundo poço da não-história.) O paleolítico equivale ao pré-Trabalho (sociedade de lazer original). O Pós-Trabalho (Trabalho-Zero) equivale a Paleolítico Psíquico.


Todos os projetos para a libertação dos desejos (surrealismo), que permanecem emaranhados na matriz do Trabalho, podem levar apenas ao mercantilismo do desejo. O neolítico começa com o desejo por bens (excedente da agricultura), caminha para a produção do desejo (indústria) e termina com a implosão do desejo (propaganda). A libertação surrealista do desejo, apenas dos seus feitos estéticos, não vai além de ser um subconjunto da produção - daí a rendição em bloco do surrealismo ao partido comunista e sua ideologia pró-trabalho (para não mencionar sua misoginia e homofobia). O lazer moderno. Por sua vez, é simplesmente uma subdivisão do trabalho (daí seu mercantilismo) - então não é por acaso que, quando o surrealismo fechou sua fábrica, os executivos de publicidade foram os únicos clientes da liquidação.


A propaganda, usando a colonização do inconsciente feita pelo surrealismo para criar desejo, leva à implosão final do surrealismo. Não é simplesmente uma vergonha danada e uma desgraça, não é uma simples apropriação. O surrealismo foi feito para a propaganda, para o mercantilismo. O surrealismo é, na verdade, uma traição ao desejo.


E, no entanto, dos abismos do significado, o desejo ainda se levanta, inocente como uma fênix recém-nascida. O dadaísmo inicial de Berlim (que rejeitou o retorno da arte-objeto), apesar se suas falhas, fornece um modelo melhor para se lidar com implosão do social do que o surrealismo jamais seria capaz de fornecer - um modelo anarquista, ou talvez (em jargão antropológico), um modelo não autoritário, uma destruição de toda ideologia, de todas as correntes da lei. Assim como a estrutura do Trabalho/Lazer sucumbe no vazio, como todas as formas de controle desaparecem na dissolução do sentido, o neolítico também parece estar destinado a desaparecer, com todos os seus templos e celeiros e polícias, para ser substituído por algum retorno à caça e coleta em termos psíquicos - uma re-nomadização. Tudo está implodindo e desaparecendo - a família edipiana, a educação, até mesmo o próprio inconsciente (como disse Andre Codrescu). Não vamos erroneamente tomar isso como o Armagedom (vamos resistir à sedução do apocalipse, à conclusão escatológica) - não é o mundo chegando ao fim - são apenas as palhas vazias do social pegando fogo e desaparecendo.


O surrealismo deve ser lançado ao lixo junto com todos os outros belos restos das primárias artimanhas clericais e os enfadonhos sistemas de controle. Ninguém sabe o que está por vir, que miséria, que espírito de selvageria, que alegria - mas a última coisa de que nós precisamos em nossa viagem é outro grupo de comissários - papas de nossos sonhos - pais. Abaixo o Surrealista...


Naropa, 9 de julho de 1988


Comunicados da Associação Pró-Anarquia Ontológica
Contra a Reprodução da Morte Sonora Denúncia do Surrealismo Por um Congresso de Religiões Esquisitas