Teses sobre a Comunidade Terrível

De Protopia
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Da Miséria nos Ambientes Subversivos
Tiqqun
Original em francês


Génese

ou história de uma história


há qualquer coisa da pobre e breve infância,
qualquer coisa da felicidade perdida que
não se reencontra, mas também qualquer
coisa da vida activa de hoje, da sua pequena
vivacidade incompreensível porém sempre
presente, e que não se saberia como matar.
F. Kafka


...deita rosas no abismo e diz: “aqui está o
meu agradecimento ao monstro que não
me conseguiu engolir”
F. Nietzsche, Fragmentos Póstumos


1.

“AQUILO QUE NUM TEMPO foi compreendido num tempo foi esquecido. Ao ponto em que já ninguém se apercebe de que a história não tem época. De facto nada acontece. Já não existe o evento. Existem só notícias. Olhar os personagens que chefi am os impérios. E arruinar o mote de Espinoza. Nada a compreender, só a chorar, ou a rir”

Mário Tronti, La politica al tramonto

1 bis.

ACABOU O TEMPO dos heróis. Desapareceu o espaço épico do conto que nos agrada contar e que nos agrada escutar, que nos fala daquilo que poderíamos ser mas não somos. O irreparável é agora o nosso ser-assim, o nosso ser-ninguém, o nosso ser Bloom[1].

E é do irreparável que devemos partir, agora que o nihilismo mais feroz passou para o lado dos dominantes. Devemos partir porque “ninguém” é o outro nome de Ulisses, e porque não deve importar a ninguém alcançar Ítaca ou naufragar.

2.

NÃO É AGORA O TEMPO de sonhar aquilo que seremos, aquilo que faremos, agora que podemos ser tudo, que podemos fazer tudo, agora que nos é concedida toda a nossa potência, com a certeza de que o esquecimento da alegria nos impedirá de a dispersar.

É aqui que ocorre abandonar-se ou morrer. O homem é verdadeiramente algo que deve ser superado, mas para isso deve antes ser ouvido naquilo que tem de mais exposto, de mais raro, para que aquilo que resta não se perca na passagem. O Bloom, resíduo irrisório de um mundo que não pára de o trair e de o exilar, exige fazer as bagagens: exige o êxodo. Mas, frequentemente, quem parte não encontra os seus e o êxodo transforma-se em exílio.

2 bis.

DO FUNDO deste exílio surgem todas as vozes, e neste exílio todas as vozes se perdem. O outro não nos acolhe, reenvia-nos ao outro que há em nós. Abandonamos este mundo em ruínas sem remorsos e sem piedade, empurrados por um vago sentido de pressa. Abandonamo-lo como os ratos deixam um navio, sem necessariamente saber que está ancorado a um porto. Não há nada de “nobre” nesta fuga, nada de grande que possa ligar-nos uns aos outros.

No fim estamos ainda sós com nós próprios, porque decidimos não combater mas conservarmo-nos. E isto não é ainda uma acção, mas uma reacção.

3.

UMA MULTIDÃOS DE HOMENS que foge é uma multidão de homens sós.

4.

NÃO SE ENCONTRAR é impossível: os destinos têm o seu clinamen[2]. Mesmo no limiar da morte, na ausência de nós próprios, os outros não param de chocar no terreno limite da fuga.

Nós e os outros: separamo-nos por desgosto, mas não nos conseguimos unir por escolha. E no entanto encontramo-nos unidos.

Unidos e fora do amor, ao descoberto e sem protecção recíproca. Assim éramos antes da fuga. Assim somos desde sempre.

5.

NÃO QUERÍAMOS apenas fugir, ainda que tenhamos deixado este mundo porque nos parecia intolerável. Sem covardia: fizemos as malas. O que queríamos não era lutar contra um qualquer, mas com um qualquer. E agora que não estamos mais sós, silenciaremos esta voz que vem de dentro, para alguns seremos companheiros, não seremos mais os indesejáveis.

Será necessário o esforço, será necessário silenciar, porque se até agora ninguém nos quis, agora as coisas mudaram. Não fazer perguntas, aprender o silêncio, aprender a aprender. Porque a liberdade é uma forma de disciplina.

6.

A PALAVRA faz o seu avanço, prudente, preenche os espaços entre as solidões singulares, dilata os agregados humanos em grupos, empurra-os juntos contra o vento, o esforço reúne-os. É quase um êxodo. Quase. Mas nenhum caminho os mantém juntos, senão a espontaneidade dos sorrisos, a crueldade inevitável, os acidentes de paixões.

7.

ESTA PASSAGEM, parecida com aquela dos pássaros migrantes, ao murmúrio das dores errantes, dá pouco a pouco forma às comunidades terríveis.

Efectividade

da razão pela qual a esquizofrenia
é mais do que uma doença
e de como, mesmo sonhando com o êxtase,
se chega à endovigilância.
1.

“Dizem-nos: o esquizofrénico também tem um pai e uma mãe? Lamentamos responder que não, que não os tem enquanto tais. Tem somente um deserto e as tribos que lá habitam, um corpo cheio e multiplicidades que se atacam entre elas”.

G. Deleuze, F. Guattari, Mille Plateaux
1 bis.

A COMUNIDADE TERRÍVEL é a única forma de comunidade compatível com este mundo, com o Bloom. Todas as outras comunidades são imaginárias, não impossíveis mas possíveis só a momentos e, de qualquer modo, nunca na plenitude da sua actuação. Emergem nas lutas e são então heterotopias, zonas opacas ausentes de qualquer cartografia, perpetuamente em acto de constituição e em vias de desaparecimento.

2.

A COMUNIDADE TERRÍVEL não é só possível; é já real, está já em acto. É a comunidade dos que sobram. Nunca existe em potência, não tem devir nem futuro, nem fins verdadeiramente exteriores a si, nem desejo de se transformar em outra coisa, só desejo de persistir. É a comunidade do atraiçoamento, luta contra o seu próprio devir: trai-se sem se transformar nem verdadeiramente transformar o mundo à sua volta.

2 bis.

A COMUNIDADE TERRÍVEL é a comunidade dos Bloom, porque no seu interior nenhuma desobjectivação tem direito a existir. De fora, para lá entrar é preciso primeiro meter-se entre parêntesis.

3.

A COMUNIDADE TERRÍVEL não existe, senão nas dissensões que momentaneamente a atravessam. No resto do tempo, a comunidade terrível simplesmente é, eternamente.

4.

APESAR DISTO, a comunidade terrível é a única a encontrar-se dado que o mundo, enquanto lugar físico do comum e da partilha, desapareceu e dele não resta mais do que uma quadrícula imperial a percorrer. A própria mentira do “homem” já não encontra mais mentirosos para se afirmar.

Os não-homens, os já-não-homens, os bloom já não conseguem pensar, como podia acontecer em tempos, porque o pensamento era um movimento no interior do tempo e a consistência do tempo alterou-se. Para além disso, os Bloom renunciaram a sonhar, habitam distopias organizadas, lugares sem lugar, interstícios sem dimensão da utopia mercantil. São planos e unidimensionais porque, não se reconhecendo em lugar algum, nem em si próprios nem nos outros, não reconhecem nem o seu passado nem o seu futuro. Dia após dia a sua resignação apaga o presente. Os já-não-homens populam a crise da presença.

5.

O TEMPO da comunidade terrível é espiraloforme e de consistência viscosa. É um tempo impenetrável no qual a forma-projecto e a forma-hábito se penduram sobre a vida deixando-a privada de profundidade. Podemos definí-lo como o tempo da liberdade ingénua, no qual todos fazem aquilo que querem. Porque é impossível querer algo para além do que já existe.

Podemos dizer que é o tempo da depressão clínica, ou o tempo do exílio e da prisão. É uma espera sem fim, um esticar uniforme de descontinuidades desordenadas.

6.

O CONCEITO DE ORDEM na comunidade terrível foi abolido para dar lugar à efectividade da relação de força e o conceito de forma substituído por uma prática de formalização que, não tendo controle sobre os conteúdos à qual se aplica, é eternamente irreversível. À volta de falsos rituais, falsos prazos (manifestações, férias, assembleias várias, reuniões mais ou menos festivas), a comunidade coagula-se e formaliza-se sem nunca tomar forma. Porque a forma, sendo sensível e corruptível, expõe ao devir.

6 bis.

NO SEIO da comunidade terrível a informalidade é o meio mais apropriado à construção inconfessada de impiedosas hierarquias.

7.

A REVERSIBILIDADE é o signo sob o qual se coloca cada evento que tem lugar na comunidade terrível.

Mas é esta mesma reversibilidade, com o seu séquito de medos e de insatisfações, que é irreversível.

8.

O TEMPO da reversibilidade infi nita é um tempo ilegível, não-humano. É o tempo das coisas, da lua, dos animais, das marés, não dos homens, e muito menos dos já-não-homens, porque estes últimos já não são capazes de pensar, enquanto os outros ainda conseguiam.

O tempo da reversibilidade não é mais do que o tempo daquilo que é irreconhecível a si próprio.

9.

PORQUE não abandonam os homens a comunidade terrível? – perguntar-se-à. Podemos responder que é devido ao facto de que o mundo já-não-mundo é ainda mais inabitável do que esta; mas cairíamos na armadilha das aparências, numa verdade superfi cial, porque o mundo é tecido da mesma inexistência agitada da comunidade terrível: há entre eles uma continuidade escondida que para os habitantes do mundo e para aqueles da comunidade terrível continua indecifrável.

Notas

  1. Bloom (blum): origem desconhecida; 1 - Stimmung final de uma civilização fechada sobre o próprio umbigo e que não consegue distrair-se do seu naufrágio, a não ser graças à alternância de curtas fases de histeria tecnófi la e de longos períodos de abstinência contemplativa; 2 - Forma de existência crepuscular, apesar de comum, dos singulares no mundo da mercadoria autoritária; 3 - Sentimento de ser póstumo. 4 - Acto de morte da política clássica; 5 - Acto de nascimento da política estática; 6 - A assumpção que determinou a formação de vários focos do Comitê Invisível, conjura anónima que, das sabotagens às sublevações populares, acabou por liquidar o domínio mercantil no primeiro quarto do séc. XXI. “Os espectadores fi xam-se quando o comboio passa”(K.)
  2. [nt] "Por Vezes," escreveu Lutécio, “em lugares e tempos incertos, o eterno e universal movimento dos átomos é perturbado por um leve desvio – o clinamen. O vortex resultante dá origem ao mundo e a todas as coisas naturais."


Textos

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