Unus Mundus
Jung costuma ser severamente criticado pelos alquimistas tradicionais, como Eugene Canseliet, Titus Burckhardt ou Julius Évola, por causa de sua hipótese de que os alquimistas projetavam sobre a matéria os conteúdos de seu inconsciente.
É essa hipótese, apresentada em Psicologia e Alquimia, que justifica a utilização que Jung faz do simbolismo alquímico para elucidar os sonhos e fantasias de seus pacientes. Reciprocamente, é ela também que serve de base para a interpretação dos textos alquímicos nos termos da psicologia analítica. O que os alquimistas não gostam nessa visão é que ela pressupõe uma ingenuidade por parte do alquimista que, sem saber o que estava fazendo, exteriorizaria o desconhecido em si mesmo (a psique inconsciente) sobre o desconhecido no mundo (a estrutura da matéria).
A objeção de um Canseliet ou um Évola é que os alquimistas sabiam muito bem o que estavam fazendo.
Com exceção dos sopradores, que é como os alquimistas conhecem os enxeridos que se metem no laboratório sem nenhum conhecimento concreto e se metem a experimentar a torto e a direito, freqüentemente com resultados desastrosos, os filósofos herméticos sempre tiveram plena consciência da dimensão espiritual do opus. O que lhes permitia agir sobre as substâncias materiais a fim de transformar sua psique era a premissa de que existe uma unidade fundamental entre psique e matéria e, conseqüentemente, uma correspondência entre os elementos físicos e a natureza psicofisiológica do ser humano.
É uma crítica pertinente. Qualquer um que se debruçar sobre a literatura alquímica terá a impressão de que os alquimistas podem ser tudo - maliciosos, sutis, enganadores - menos ingênuos. Ao mesmo tempo, curiosamente, é uma crítica que erra o alvo, porque trai um conhecimento superficial da psicologia junguiana.
Esse desconhecimento é compreensível. Jung não é um autor fácil. Seu estilo denso, carregado de alusões e referências, que servem para fundamentar um raciocínio tortuoso, não-linear, transforma os textos junguianos em um labirinto quase tão impenetrável quanto os livros de Fulcanelli, uma selva repleta de armadilhas nas quais, não raro, os próprios junguianos mergulham de cabeça, levados pelo afã de sistematizar um pensamento não-sistemático. Seria pedir muito que, além do trabalho de decifrar as obscuras parábolas de um Irineu Filaleto ou um Basílio Valentim, o estudioso de alquimia também se dedicasse a elucidar os meandros da teoria junguiana. Se o fizesse, porém, perceberia que a visão que Jung tinha da alquimia está bem mais próxima da alquimia tradicional do que parece à primeira vista.
Participação Mística
Jung dizia que os alquimistas projetavam os conteúdos do inconsciente sobre a estrutura da matéria, mas o que é essa projeção? Para responder essa pergunta, a gente abre o capítulo das definições em Tipos Psicológicos, procura o verbete Projeção e encontra lá o seguinte: "Significa transferir para o objeto um processo subjetivo. (É o oposto de introjeção, v.) A projeção é portanto um processo de dissimilação em que é tirado do sujeito um conteúdo subjetivo e incorporado de certa forma ao objeto." Até aqui, estamos no terreno psicológico convencional, nada que abrande as críticas dos hermetistas. Mas continuamos lendo e descobrimos o que torna a projeção possível:
"Baseia-se a projeção na identidade (v.) arcaica entre sujeito e objeto, mas só se pode denominá-la projeção quando aparece a necessidade de dissolver a identidade entre sujeito e objeto." Jung manda consultar o verbete Identidade. Obedientemente, vamos até lá e lemos: "É uma característica da mentalidade primitiva e o autêntico fundamento da 'participação mística' que nada mais é do que o resíduo da primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto, portanto do estado inconsciente primordial (...)." E, já que estamos com a mão na massa, abrimos em "Participation mystique", um termo que Jung pegou emprestado do antropólogo Lucien Lévy-Bruhl para designar "uma espécie singular de vinculação psicológica com o objeto" que, segundo a crença dos antropólogos da época, caracterizaria o homem primitivo: "Consiste em que o sujeito não consegue distinguir-se claramente do objeto, mas com ele está ligado por relação direta que poderíamos chamar identidade parcial. Esta identidade se baseia numa unicidade apriorística de objeto e sujeito. A participação mística é, portanto, um resíduo desse estado primitivo."
Alguém pode me dizer qual a diferença entre a "unicidade apriorístia de objeto e sujeito" que Jung descreve e a unidade fundamental entre psique e matéria que serve de premissa para a alquimia?
É verdade que o texto de Tipos Psicológicos permite ler a participação mística como um fenômeno ilusório, resultado da suposta falta de desenvolvimento da consciência do homem primitivo, que é a conotação que Lévy-Bruhl dava ao termo. É provável que o próprio Jung atribuísse essa conotação ao fenômeno na época em que redigiu Tipos Psicológicos e talvez até mesmo ao escrever Psicologia e Alquimia. Mas, mesmo nessa época, Jung alertava que, para que a projeção ocorra, é preciso haver o que ele denominou de gancho, alguma analogia entre o conteúdo psíquico projetado e o objeto que serve de suporte à projeção, e que não é muito diferente das correspondências que a alquimista estabelece entre os elementos materiais e as estruturas correspondentes na alma do alquimista. E, desde Tipos Psicológicos, muita água rolou por baixo da ponte que Jung construiu entre psicologia e alquimia.
Os Três Encontros de Jung
Nominalmente, aconteceram três coisas que, sincronisticamente, ocorreram mais ou menos ao mesmo tempo, como os Três Encontros do Buda, e que lançam uma nova luz sobre a relação de Jung com a alquimia.
A primeira delas foi a descoberta da própria sincronicidade, o estranho paralelismo entre a realidade psíquica e a realidade física, que pressupõe que o arquétipo, mais do que um fenômeno meramente psicológico, é uma estrutura fundamental da própria realidade. Os eventos sincronísticos levaram Jung a redefinir o arquétipo como um fator psicóide, algo que não pertence nem à psique, nem à matéria, mas que é capaz de produzir efeitos em ambos os níveis.
O segundo encontro foi com o físico Wolfgang Pauli, um dos pioneiros da geração de físicos que, nessa mesma época, estavam construindo a mecânica quântica. Na verdade, Pauli é o paciente cujos sonhos servem de fio condutor a Psicologia e Alquimia.
Jung e Pauli mantiveram uma copiosa correspondência ao longo dos anos, na qual o psicólogo discutiu com o físico a natureza da sincronicidade e, em troca, o físico instruiu Jung sobre os últimos avanços da mecânica quântica. A conclusão a que os dois cientistas chegaram é de que, por trás tanto da matéria quanto da psique, existe um nível mais básico, que não é nem material, nem psíquico, mas anterior à diferenciação entre psique e matéria. Jung comparou esse nível fundamental da realidade ao pleroma gnóstico e denominou-o de psique objetiva, um termo que substitui a expressão "inconsciente coletivo" que, de repente, começou a lhe parecer inadequado. É aí que se localizam os arquétipos.
Finalmente, Jung deparou com os escritos alquímicos de Gerhard Dorn, um discípulo de Paracelso que desenvolveu o conceito de unus mundus. A idéia básica de Dorn é a mesma a que Jung chegara em sua correspondência com Pauli, a de que o que chamamos de corpo e o que chamamos de espírito nasce da decoerência (para utilizar o termo quântico correspondente) de um estado anterior, no qual ambos formam uma coisa só e não existe separação alguma entre sujeito e objeto.
Já disse algumas vezes aqui que, para entender Jung, é preciso lê-lo diacronicamente, levando em conta não só tudo o que ele escreveu, mas também as etapas do desenvolvimento de suas idéias.
Por mais difícil que seja ter essa visão de conjunto, ela é imprescindível. Fazendo isso, freqüentemente nos surpreendemos de como seu pensamento difere da vulgata junguiana ou do quanto ele aponta em direções insuspeitadas. É o que acontece com a projeção alquímica. Se essa hipótese de fato começou com a pressuposição da ingenuidade dos alquimistas, ela acaba desembocando em algo bem diferente, a saber, na percepção de que a alquimia tinha uma concepção sobre a natureza da realidade muito mais profunda do que a nossa, uma concepção que a ciência contemporânea mal começa a tocar.
Canseliet, Burckhardt e Évola não teriam do que reclamar.